Passados 48 meses da tragédia da boate Kiss não há previsão para o julgamento dos quatro acusados – que restaram entre os quase 30 responsabilizados no inquérito inicial – pelas mortes de 242 pessoas.
Na Justiça comum, a única pena até agora foi convertida em prestação de serviços comunitários. Além da perturbadora espera por punições, não há mais chance de gestores públicos serem penalizados por negligência na fiscalização que poderia ter evitado o incêndio de 27 de janeiro de 2013. Quatro anos depois, ninguém está preso.
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Enquanto a sensação de impunidade que angustia famílias não tem data para acabar, em outros locais do mundo, quatro anos após os fatos, casos semelhantes tinham condenações em processos que correram de forma mais ágil.
ZH pesquisou três episódios com características similares ao da Kiss – os incêndios das boates The Station (no Estado americano de Rhode Island, em fevereiro de 2003), República Cromañón (em Buenos Aires, na Argentina, em dezembro de 2004) e Lame Horse (em Perm, na Rússia, em 2009).
Em dois deles, pelo menos quatro agentes públicos haviam sido punidos até o quarto ano após a tragédia, incluindo o prefeito de Buenos Aires, Aníbal Ibarra, cassado dois anos depois. No caso Kiss, o Ministério Público isentou a prefeitura de Santa Maria. Nos três países, os julgamentos dos acusados – se já não estavam concluídos – ao menos haviam sido iniciados (confira ao lado). Ritmo distinto do processo da Kiss.
Tamanho do processo justifica demora, diz TJ
Em julho do ano passado, a Justiça determinou que os empresários Elissandro Spohr e Mauro Hoffmann, sócios da boate, e Marcelo de Jesus dos Santos e Luciano Augusto Bonilha Leão, da banda Gurizada Fandangueira, deverão ir ao Tribunal do Júri. Após ter recurso negado na primeira instância, a defesa apelou ao Tribunal de Justiça (TJ). Se a decisão for mantida, caberá ainda recurso ao Superior Tribunal de Justiça.
O desembargador e presidente do Conselho de Comunicação do TJ, Túlio de Oliveira Martins, estima que o recurso deve ser julgado em mais dois ou três meses. Segundo ele, a demora decorre de vários fatores: a investigação somou 96 volumes em 20 mil páginas, foram feitas perícias de engenharia, médica e de arquitetura e mais de 200 depuseram:
– Tudo isso levou a uma análise demorada, a instrução processual também demorou. Além disso, temos a legislação brasileira, outros países são mais evoluídos.
Na avaliação de Aury Lopes Jr., advogado e autor do livro Prazo Razoável do Processo Penal, a lentidão se justifica pela complexidade do caso. Ele aposta que o julgamento ocorrerá entre sete e oito anos após a tragédia, e ressalta que a série de recursos da Justiça brasileira permite essa tramitação:
– No Brasil não existe previsão de um prazo máximo do processo com sanção (para os julgadores) em caso de descumprimento.
Embora considere o tempo de processo até aqui adequado, o ex-procurador de Justiça e professor da Unisinos Lenio Streck avalia que, quanto mais o julgamento demorar, maior será a pressão sobre o Judiciário e o Ministério Público. Desgaste que, segundo Streck, independentemente do resultado do processo, está estabelecido:
– O Judiciário deveria fazer operação de redução de danos, pois já existe narrativa, considerada pela população como verdadeira, de que está havendo impunidade. E não importa se está ou não, ela (a narrativa) existe.
DIFERENTES COMPASSOS DA LEI
Zero Hora pesquisou três incêndios com características semelhantes às da Kiss para conferir a evolução dos processos criminais relacionados aos casos quatro anos após as tragédias.
The Station, Rhode Island, EUA
20 de fevereiro de 2003
100 mortos e 230 feridos
Antes mesmo da tragédia de Rhode Island completar quatro anos, já estavam definidas as penas das três pessoas às quais foram atribuídas às mortes das cem vítimas.
Em 10 de maio de 2006, Daniel Biechele, empresário da banda de rock Great White, que acendeu o sinalizador que provocou o fogo no teto da boate, foi condenado a quatro anos de prisão. Mas deixou a cadeia menos de dois anos depois, em 19 de março de 2008.
Os irmãos que eram donos da boate, Michael e Jeffrey Derderian, foram julgados em 11 de setembro de 2006 em reunião privada com promotores e um juiz: Michel foi condenado a quatro anos de prisão e Jeffrey, a três anos de liberdade condicional e 500 horas de serviços comunitários. De sua sentença, Michael cumpriu apenas dois anos e nove meses em regime fechado.
No quarto ano da tragédia, o procurador-geral do Estado de Rhode Island, Patrick Lynch, divulgou o lote de provas contendo 34 mil documentos, quase 3 mil fotografias e 100 horas de arquivos de áudio e vídeos digitais. Conforme as transcrições, apenas os irmãos que eram donos da boate e o empresário da banda poderiam ser culpados. Isto evitou o indiciamento do inspetor dos Bombeiros que vistoriou a casa noturna, Denis Larocque. Nenhum agente público foi punido. Também no quarto ano da tragédia, os irmãos Derderian lançaram um fundo para arrecadar dinheiro para crianças que perderam os pais no incêndio da boate.
Após a tragédia na The Station, a legislação de Rhode Island foi alterada para tornar as regras do código de prevenção de incêndio do Estado mais rigorosas. Com aplicação mais severa e sanções rápidas em caso de descumprimento, o novo código entrou em vigor em 2004 – um ano após o incêndio.
Como estava em 2007
- condenados no processo principal: 3
- agentes públicos penalizados: nenhum
- pena mais alta: 4 anos
República Cromañón, Buenos Aires, Argentina
30 dezembro de 2004
194 mortos e 1.432 feridos
Quando a tragédia de Cromañón completou quatro anos, em dezembro de 2008, o julgamento em primeira instância estava ocorrendo havia quatro meses e 95 pessoas tinham testemunhado em juízo, dos quais 87 sobreviventes. Na época, havia a discussão entre a defesa dos acusados e das vítimas sobre se elas, tendo interesse no resultado da ação, podiam ou não testemunhar. Desde agosto daquele ano, as sessões ocorriam três vezes por semana e o julgamento levou um ano. Em agosto de 2009, venceu a tese que classificava o incêndio como homicídio.
Oito meses após a marca dos quatro anos do fato, a primeira instância condenou por incêndio seguido de morte Omar Chabán, administrador da República Cromañón, Raúl Villarreal, gerente, Carlos Rubén Díaz, subcomissário da Polícia Federal argentina que recebeu suborno para ignorar irregularidades, e Diego Argañaraz, empresário da banda Callejeros, cuja performance pirotécnica resultou no fogo. Os músicos foram absolvidos e dois servidores públicos, condenados por descumprimento do dever.
Nos anos seguintes, em meio a recursos e novas decisões da Justiça, os integrantes da banda e mais um funcionário municipal entram para a lista de condenados. Os réus ficaram presos entre dezembro de 2012 e agosto de 2014, quando a Corte Suprema ordenou revisão do processo. Em novembro daquele ano, Chabán morreu sem que sua condenação estivesse consolidada.
Apenas em 6 de abril de 2016, a Corte Suprema rejeitou as apelações finais. Assim, 13 anos após o incêndio, os que ainda tinham pena a cumprir em regime fechado voltaram para a prisão. Em processo separado, Rafael Levy, dono do prédio da Cromañón, foi condenado a quatro anos de prisão.
– Se não tivéssemos lutado com unhas e dentes, teria ficado por isso mesmo – avalia Nilda Gomez, 59 anos, presidente da Asociación Civil Familias por la Vida, mãe de Mariano, morto aos 20 anos.
E o inconformismo dos argentinos também teve impactos no Executivo de Buenos Aires. Em 2006, o então prefeito, Aníbal Ibarra, tornou-se o primeiro chefe do governo portenho a ser destituído pelo Legislativo e ficou inabilitado por 10 anos.
Como estava em 2008
- Condenados no processo principal: nenhum
- Agentes públicos penalizados: 1
- Pena mais alta: cassação de mandato
Boate Lame Horse, Perm, Rússia
5 de dezembro de 2009
156 mortos e 80 feridos
O incêndio na boate Lame Horse, na cidade de Perm, na Rússia, completou quatro anos com nove pessoas condenadas entre donos e gerentes do local, proprietários da empresa de fogos de artifício e agentes públicos.
Em 30 de abril de 2013, o dono da casa noturna Anatoly Zak foi sentenciado a nove anos e 10 meses de prisão. Ele permaneceu sob custódia da Justiça até o momento do julgamento. A gerente-executiva Svetlana Yefremova e o diretor de arte Oleg Fetkulov foram sentenciados, respectivamente, quatro anos e seis anos de reclusão.
O proprietário da empresa fabricante dos fogos de artifício Pirosve, Sergei Derbenev, e seu filho Igor receberam penas de quase cinco anos prisão, cada um, por violações das regras de utilização de materiais explosivos. As chamas que deixaram 156 mortos foram provocadas, como na Kiss, por faíscas de sinalizador em contato com o material que revestia o forro da boate.
Inspetores de controle de incêndio da província de Perm, Dmitry Roslyakov e Natalia Prokopyeva receberam, respectivamente, penas de cinco e quatro anos de reclusão por negligência e ficaram impedidos de ocupar cargos públicos. O ex-inspetor de bombeiros de Perm, Vladimir Mukhutdinov, foi condenado por abuso a pagar multa e impedido de ocupar cargos no governo por três anos.
Além disso, todos os acusados, exceto Mukhutdinov, foram obrigados a pagar indenizações por danos morais às vítimas, com valores definidos para cada um dos mortos e para os feridos conforme o grau de dano corporal sofrido devido ao incêndio.
A primeira condenação do caso havia ocorrido dois anos e meio após a tragédia, em processo separado, para um dos donos da boate que fugiu para a Espanha logo após o incêndio, mas foi extraditado em 2011. Em maio de 2012, Konstantin Mrykhin admitiu culpa e teve pena estabelecida em seis anos e meio de prisão. Ele ainda foi condenado a pagar U$ 6,6 milhões aos sobreviventes e familiares dos mortos.
Como estava em 2013
- Condenados no processo principal: 8
- Agentes públicos penalizados: 3
- Pena mais alta: 9 anos e 10 meses
Boate Kiss, Santa Maria
27 de janeiro de 2013
242 mortos e 623 feridos
A tragédia que marcou a história do Estado completa quatro anos sem que nenhum dos apontados pelo incêndio que resultou na morte de 242 pessoas esteja cumprindo pena.
A Polícia Civil indiciou 16 pessoas. No inquérito, apontou responsabilidade de 28, entre as quais o então prefeito de Santa Maria, Cezar Schirmer. Mas o Ministério Público (MP) denunciou apenas oito. Gestores públicos ficaram de fora. De lá para cá, só um dos relacionados na denúncia do MP foi condenado em processo secundário. Em paralelo, na Justiça Militar, dois bombeiros receberam sentenças. Mas todos recorrem em liberdade.
Acusados por homicídio doloso qualificado, os sócios da Kiss Mauro Hoffmann e Elissandro Spohr, o Kiko, e os integrantes da banda Gurizada Fandangueira Marcelo de Jesus dos Santos e Luciano Bonilha Leão foram pronunciados em 27 de julho de 2016 para ir ao Tribunal do Júri. Tiveram recurso negado na primeira instância e recorreram ao Tribunal de Justiça (TJ). Não há data para que a 1ª Câmara Criminal analise a apelação.
Na denúncia original do MP, dois bombeiros foram acusados por fraude processual do inquérito sobre o incêndio. Em 1º de setembro de 2015, o major Gerson da Rosa Pereira, ex-chefe do Estado Maior do 4º Comando Regional dos Bombeiros (4º CRB), foi condenado a seis meses de detenção, convertidos em prestação de serviços comunitários. O outro denunciado, Renan Berleze, fez acordo e teve o processo suspenso.
Na Justiça Militar, houve duas condenações em 3 de junho de 2015 pelo crime de inserção de declaração falsa, relativo à concessão irregular de alvará para a Kiss. E em dezembro daquele ano, a segunda instância aumentou as penas e sentenciou um acusado que havia sido absolvido. Os três recorreram ao pleno do Tribunal de Justiça Militar (TJM), que, em outubro do ano passado, tomou a decisão mais recente. Moisés Fuchs, tenente-coronel da reserva e ex-comandante do 4º CRB, teve fixada pena de um ano e três meses, o capitão Alex da Rocha Camillo, um ano, e o tenente-coronel da reserva Daniel da Silva Adriano voltou a ser considerado absolvido. O MP pode recorrer. Enquanto isso, todos seguem livres.
Em novembro de 2016, o Conselho Superior do MP arquivou o inquérito que apurava responsabilidades de dois secretários municipais, dois servidores da prefeitura e de Schirmer. Ele agora é secretário Estadual da Segurança Pública.
Situação atual
- Condenados no processo principal: nenhum
- Agentes públicos penalizados: 3
- Pena mais alta: 1 ano e 3 meses
Na Romênia, impacto político foi imediato
Há pouco mais de um ano, o impacto imediato sobre as autoridades públicas após oincêndio da boate Colectiv, em Bucareste, na Romênia, chamou atenção do mundo. Em apenas quatro dias após a tragédia, que em 30 de outubro de 2015 deixou 64 mortos e mais de 100 feridos, a pressão popular provocou a queda do primeiro-ministro social-democrata Victor Ponta.
Assim como na Kiss, o fogo foi resultado de um show pirotécnico, da banda Goodbye to Gravity. Faíscas dos sinalizadores entraram em contato com a espuma de isolamento acústico do local, de material inflamável, espalhando chamas e fumaça rapidamente. A casa tinha apenas uma saída e um dos lados da porta de duas folhas estava trancado. Na debandada em pânico dos frequentadores da boate, muitas vítimas morreram pisoteadas.
O fato de o estabelecimento desrespeitar inúmeras normas de segurança foi interpretado como mais um sintoma da corrupção que dominava o país. Mais de 20 mil pessoas foram às ruas em manifestação contra a negligência do poder público, o que provocou, em 4 de novembro, a renúncia de Ponta. Além dele, também deixaram o governo o ministro do Interior, Gabriel Oprea, e o prefeito do distrito 4, onde ficava a boate, Cristian Popescu Piedone.
Julgamento se iniciou cinco meses após o incidente
Na época, o prefeito foi detido por abuso de poder e falsificação. Pelas mesmas acusações, foram presos o chefe e uma funcionária do setor de fiscalização e alvarás do distrito 4 da capital romena. Antes da tragédia completar seis meses, a Justiça aceitou a denúncia e começou a julgar, em abril de 2016, três proprietários da Colectiv, Alin George Anastasescu, Paul Gancea e Costin Mincu, além dos representantes da empresa que forneceu os artefatos pirotécnicos: Daniela Nita, Cristian Nita e Viorel Zaharia. Eles são acusados pelos crimes de homicídio culposo, lesão corporal, negligência e falsificação de documentos. Popescu e dois servidores da prefeitura também respondem por corrupção. Os processos seguem em tramitação.
No último sábado, um novo incêndio atingiu uma boate em Bucareste. O fogo na casa noturna Bamboo deixou mais de 40 pessoas feridas e está sendo investigado pelas autoridades locais.