De um lado, decisões recentes do Tribunal de Justiça (TJ) condenaram a prefeitura de Santa Maria e o Estado a indenizar um sobrevivente e a família de um dos 242 mortos no incêndio da boate Kiss em 27 de janeiro de 2013, que completou quatro anos na sexta-feira. De outro, o Ministério Público (MP) arquivou os processos contra o então prefeito Cezar Schirmer – hoje secretário estadual da Segurança Pública –, ex-secretários e funcionários do município. Ao eliminar qualquer possibilidade de punição aos gestores públicos responsáveis pela fiscalização que poderia ter evitado o episódio, promotores causaram revolta entre familiares das vítimas. Mas afinal, o que explica as diferentes interpretações?
O subprocurador-geral de Justiça para Assuntos Institucionais do MP, Fabiano Dallazen, diz que o órgão não denunciou servidores da prefeitura porque a investigação não comprovou ligação deles com as causas diretas das mortes: a espuma tóxica, instalada pelos donos da boate, e o artefato incendiário, usado pela banda. Leia abaixo entrevista concedida por Dallazen:
As indenizações determinadas pelo Tribunal de Justiça (TJ) mostram descompasso entre os entendimentos das esferas civil e criminal?
Não. Porque são responsabilidades distintas. Nem tudo que gera indenização gera responsabilidade criminal. Na criminal, há necessidade de que aquela ação seja produzida por atitude dolosa ou, eventualmente, culposa, certo? O Ministério Público optou por imputar o incêndio aos donos da boate e aos integrantes da banda que sobreviveram por dolo. Então, se faço essa opção, só posso enquadrar na responsabilidade criminal do incêndio quem teve alguma ligação com as causas diretas da morte, que são a espuma – colocada lá por deliberação exclusiva dos donos da boate – e o acendimento daquele artefato que provocou o fogo na espuma e o gás que acabou levando as pessoas à morte pela inalação. Então, o que não estiver ligado dolosamente a essas duas causas, não tenho, tecnicamente, como imputar os homicídios.
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Mas a tramitação das concessões de alvarás pela prefeitura não estava errada?
Estava errada. Mas ninguém ali dentro fez dolosamente. Seguiram aquilo que estava errado e, por isso, não posso responsabilizar pessoalmente, criminalmente. Entretanto, quando vou tratar de responsabilidade civil, indenização, a lei diz o seguinte: tem o erro, esse erro veio de dentro do município e me causou um dano, o município tem que indenizar.
Então, os gestores não deveriam ter sido pelo menos denunciados?
Pelo homicídio? Não. Volto a dizer, tem um pressuposto. Quando acontece um crime, é doloso ou culposo. Ou denuncio todo mundo por dolo ou por culpa. E a opção foi essa, entenderam que é doloso. Tudo que não puder vincular à espuma, ao fogo, não puder vincular à intenção de produzir o resultado, não posso imputar a responsabilidade penal pelo homicídio. Posso imputar, no caso dos bombeiros, pela fraude nos alvarás. Posso imputar em relação àqueles que falsificaram a declaração de residência, pela falsidade ideológica.
Mas a conduta errada da prefeitura não merece algum tipo de punição?
A punição é o dever de indenizar.
As indenizações ordenadas pelo TJ não geram pressão para que o MP reveja a denúncia sobre agentes públicos?
Não. O MP tem segurança daquilo que fez quanto à questão criminal.
Não há inversão de valores em promotores processarem três pais e uma mãe de vítimas por calunia e difamação, já que é provável que esses casos sejam julgados com muito mais celeridade que o da Kiss? O senhor considera justo os pais serem penalizados antes dos réus da tragédia?
O processo termina primeiro porque é menos complexo, tem menos testemunhas. Não sei qual será o julgamento do
Judiciário. O que se tem é que promotores utilizaram dessa representação porque não suportaram (as ofensas). Não em relação a todos os pais, a esses pais. São três, porque um é uma ação privada de um ex-promotor. Então, posso responder por três. Eles não suportaram mais aquele dia a dia de reiteradas ofensas à honra deles pelo trabalho que fizeram, como uma forma de cessar. Agora, se é justo ou não, como é que vou te dizer? Aí tu me botas... Como é que vou dizer... Essa avaliação da conveniência foi deles.
Não foi exagero dos promotores processar os pais?
Talvez tenha havido, digamos assim, o exagero no ataque a eles (promotores).
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Exagero no ataque aos promotores?
Reiteradas vezes. Não foi uma, não foram duas, não foram três. Isso era contínuo, até o limite que não tinha mais. Eram insinuações de que estavam prevaricando, atingindo a honra. Reiteradas vezes. Foi isso. É o que posso dizer quanto a isso.
Mas é justo os pais, que já passaram por toda dor, serem processados por quem deveria estar do lado deles?
O MP continua processando quem são os responsáveis pela tragédia. Nunca estivemos contra as vítimas ou familiares das vítimas. Volto a dizer, tem três circunstâncias específicas. Todos os excessos foram compreendidos. Passou, segundo consta nos processos, todos os limites de suportabilidade. Não foi um fato, não foi uma ofensa, não foi uma agressão. Foram reiteradas. A forma de fazer parar é buscar a Justiça. Não tem outra.
O senhor acredita, então, que o exagero foi dos pais?
Assim, vai botar uma palavra na minha boca. Se tu vais me dizer que vou te dizer “bah, os pais exageraram”, daí amanhã cai o mundo na minha cabeça. Os pais ofenderam reiteradamente a honra deles (promotores). Reiteradamente a honra deles. É um direito deles procurar a Justiça. É um direito deles. Foi o que eles fizeram.