Duas decisões proferidas pelo Tribunal de Justiça (TJ) do Rio Grande do Sul ao longo dos últimos dias – que responsabilizaram pela primeira vez governo do Estado e prefeitura no âmbito civil pela tragédia da boate Kiss – representam um novo capítulo para a longa disputa judicial dos familiares e das vítimas do incêndio que deixou 242 mortos e mais de 600 feridos em 27 de janeiro de 2013. Ao estipularem indenizações a serem pagas pelos órgãos públicos, elas abriram precedente para futuras decisões – que não devem ser poucas – e levaram, inclusive, os integrantes do TJ a pensar em estipular uma base para o cálculo para as indenizações.
– Afinal, ainda existem centenas para serem julgados, pois a quantidade de pessoas afetadas foi gigante. Esses recursos que foram julgados são de pessoas que entraram na Justiça lá no início – afirma o vice-presidente da Associação dos Familiares de Vítimas e Sobreviventes da Tragédia de Santa Maria (AVTSM), Flávio José da Silva.
A quantidade de ações é tanta que nem o TJ sabe estimar. A primeira das decisões foi proferida na quarta-feira passada, quando o tribunal ordenou que prefeitura e governo de Estado pagassem R$ 20 mil para uma sobrevivente do incêndio. Na última segunda-feira, o município de Santa Maria foi condenado a indenizar familiares de outra vítima.
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– Está se abrindo uma porta para que as pessoas e órgãos sejam realmente punidos. Com essas decisões, eles não terão como negar as indenizações para futuras ações – comenta Silva.
É o que acredita também o desembargador Túlio de Oliveira Martins, membro da câmara que julgou a ação divulgada na segunda-feira. Por unanimidade, ele, o desembargador Marcelo Cezar Müller e o relator, Jorge Alberto Schreiner Pestana, decidiram que os pais e o irmão de Ariel Nunes Andreatta devem receber quase R$ 200 mil por danos morais e materiais.
De acordo com Martins, além de criar uma jurisprudência, as decisões tomadas podem servir de base para o cálculo de indenização das demais ações que tramitam no tribunal:
– A tendência, a partir dos próximos meses, quando as ações começarem a ser julgadas em maior número, é se chegar a valores mais ou menos parecidos, de acordo com as características de cada caso, para que as indenizações não sejam muito diferentes umas das outras – explica.
As diferenças entre os valores e a responsabilização nas duas ações já julgadas – enquanto uma indenização é de R$ 20 mil e responsabiliza prefeitura e governo de Estado, a outra soma R$ 200 mil e atribui a responsabilidade somente ao município – ocorrem devido ao entendimento das próprias famílias sobre a culpabilidade, além da situação familiar e econômica de cada vítima.
– Hoje temos muitas famílias em situação de necessidade. Essas indenizações não vão aliviar a dor, mas pode ajudar a tocar a vida de uma forma mais digna – comenta o vice-presidente da associação.
De acordo com o desembargador Túlio Martins, alguns dos autores das ações entendem que a responsabilidade é do Estado, município e dos proprietários do estabelecimento, enquanto outros afirmam que o município não tem culpa, por exemplo:
– Além disso, existem outras variáveis, como as questões particulares de cada vítima. Se ela sustentava uma família, se tinha filhos, se deixou dívidas. Tudo isso deve contar para o cálculo.
Prefeitura afirma que entrará com recursos no STJ
Apesar de comemorada pelos familiares das vítimas, o resultado das ações ainda pode demorar para aparecer. Isso porque o prefeito Jorge Pozzobom (PSDB) afirmou que recorrerá das decisões judiciais. De acordo com o chefe do Executivo, é uma obrigação recorrer, já que há recursos públicos envolvidos.
– Temos uma lei federal que determina que qualquer órgão público que é condenado ou não concorde com uma decisão deve recorrer, pois se não o faz comete um ato de improbidade administrativa. Por isso, temos que ter esses cuidados. Mas, transitado em julgado o recurso, vamos cumprir com a decisão – explica Pozzobom.
Nestes casos, os recursos vão direto ao Superior Tribunal de Justiça (STJ). Para o desembargador Túlio Martins, as chances de o STJ negar estes recursos são grandes, uma vez que não houve conflito de decisões no Tribunal de Justiça do Estado.
– Não sei o que eles podem alegar, pois o STJ não reexamina provas. Mas, caso o recurso seja aceito, a ação ainda pode durar alguns meses – conclui.
Procurado por ZH, o Piratini ainda não se manifestou sobre a possibilidade de recorrer da condenação ao Superior Tribunal de Justiça (STJ).