Documento que pede a responsabilização do Estado brasileiro por omissão, negligência e descumprimento da lei no caso do incêndio que matou 242 pessoas na boate Kiss, em Santa Maria, em 27 de janeiro de 2013, foi encaminhado nesta quarta-feira à Comissão Interamericana de Direitos Humanos (CIDH), da Organização dos Estados Americanos (OEA).
A petição redigida pelo Instituto Juntos – Justiça, Cidadania e Políticas Públicas sustenta que a prefeitura de Santa Maria, o Corpo de Bombeiros e o Ministério Público (MP) tinham conhecimento de que a Kiss funcionava de forma irregular, mas "não adotaram medidas previstas em lei para a interrupção das atividades de boate".
– Passados quatro anos, a versão das vítimas não foi ouvida e não foi reconhecida pelo poder público brasileiro. A petição contém esta versão, de que diversos agentes públicos, tanto antes quanto depois do incêndio, tiveram conhecimento das irregularidades e não cumpriram a lei – afirma a advogada coordenadora do instituto e autora da petição, Tâmara Biolo Soares, mestre em Direito pela Universidade de Harvard e especialista em Direitos Humanos pela Universidade do Texas.
Ao levar o incêndio da boate à comissão, o Instituto Juntos busca agregar pressão internacional sobre autoridades brasileiras para apuração das responsabilidades de agentes públicos no caso. A entidade espera que a CIDH peça a reabertura dos inquéritos arquivados pelo Ministério Público contra gestores municipais e estaduais.
– Este é um sistema eficiente. A Lei Maria da Penha é uma lei que foi consequência de uma condenação do Brasil no âmbito da Comissão Interamericana. O sistema internacional não só é hoje a única alternativa de Justiça que resta às vítimas e aos familiares, como também é um sistema muito importante em fazer valer as obrigações de direitos humanos que o Estado brasileiro tem – afirma Tâmara, que já trabalhou como advogada na Corte Interamericana de Direitos Humanos.
Além da petição, foi protocolado pedido de medidas cautelares em favor de três pais e uma mãe de mortos na tragédia que foram denunciados por promotores por calúnia e difamação. A tentativa do instituto é de fazer com que a comissão obrigue o Brasil a arquivar esses processos de forma imediata e que "reconheça a importância do trabalho que estes pais têm realizado para a democracia brasileira".
Dezenas de familiares de vítimas, além de dois sobreviventes, acompanharam o envio, por e-mail, do documento à comissão, cerimônia que ocorreu no Instituto dos Arquitetos do Brasil.
– É uma luz, uma esperança de conseguir alguma coisa em prol da nossa luta – diz Marise Dias, mãe de Lucas, morto na boate.
De acordo com o presidente da Associação dos Familiares de Vítimas e Sobreviventes da Tragédia de Santa Maria (AVTSM), no entanto, a abertura de um novo caminho traz esperança, mas também tristeza.
– Continuamos procurando uma resposta, mas ficamos também um pouco mais tristes. Tristes porque temos de recorrer a uma corte internacional para tentar resolver um problema que não foi possível solucionar dentro do Rio Grande do Sul – comenta.
Não há um prazo para que a CIDH admita a petição. Caso o órgão venha a aceitar o pedido feito pelo instituto, ele denunciará o Estado brasileiro, que terá três meses para responder a uma notificação. Após, a comissão tentará uma "solução amistosa" entre as partes. Se não houver sucesso na tratativa, a CIDH poderá fazer recomendações ao denunciado. Quando uma recomendação não é cumprida, o caso é enviado à Corte, que pode condenar o país em caráter moral.
Os casos encaminhados à OEA levam, em média, 10 anos, até que passem pela comissão e cheguem à corte, o último estágio do órgão internacional. No entanto, de acordo com a dirigente do Núcleo de Defesa dos Direitos Humanos da Defensoria Pública do Estado (DPE-RS), a defensora pública Mariana Cappellari, há situações que surtem efeito com a atuação da própria comissão, logo na primeira etapa do processo.
– Para além da sentença final, no entanto, existe a sanção moral, que pode mobilizar o Estado a tomar atitudes. Se um caso chega à OEA, é porque o Estado está violando os direitos humanos. E isso faz com que o olhar internacional se volte para o país e cobre que algo seja feito – afirma a defensora pública.
Quinta-feira, às 22h, haverá vigília em homenagens às vítimas, em Santa Maria. Na sexta-feira, está prevista a soltura de 242 balões.
As responsabilidades descumpridas de cada órgão, segundo o Instituto Juntos:
– À prefeitura, gerida na época pelo atual secretário da Segurança Pública do Estado, Cezar Schirmer, o instituto atribui o descumprimento do dever de fiscalização.
– O Corpo de Bombeiros é acusado de levar adiante processo para liberação do plano de prevenção contra incêndio da boate mesmo diante de irregularidades no local.
– E o Ministério Público é apontado por descumprir seu "dever legal" ao arquivar ou deixar de propor ações para apurar responsabilidades dos agentes públicos