Intimação do Banco Central (BC) exigindo explicações do Badesul, agência gaúcha de fomento, é contundente ao apontar que houve problemas como "inobservância ao princípio da garantia", "desconsideração do endividamento do cliente" e "renovação injustificada de empréstimo" nas operações com a Wind Power Energy e a Iesa Óleo e Gás.
Reportagens de Zero Hora revelaram que o Badesul flexibilizou normas bancárias para emprestar R$ 50 milhões à Wind Power e R$ 40 milhões à Iesa. Ambas entraram em recuperação judicial e não quitaram as prestações. Juntas, hoje, geram rombo de R$ 140 milhões ao banco gaúcho, considerados os encargos contratuais.
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Princípios de liquidez e garantia ignorados
O ofício 9.649/2016, obtido por Zero Hora, foi enviado pelo BC ao Badesul em 16 de maio deste ano. A agência estadual foi intimada a apresentar explicações para as duas operações, sob pena de aplicação das penas previstas no artigo 44 da lei 4.595.
As sanções podem alcançar o banco, dirigentes, conselheiros e ex-ocupantes desses cargos. Para a instituição, é prevista a cassação do direito de funcionar ou intervenção. Para os agentes públicos, são listadas a impossibilidade de ocupar cargos no setor, multas e detenção. Por ser a entidade máxima do ramo no país, o BC tem a prerrogativa de fiscalizar a gestão das entidades financeiras.
"Entre setembro de 2012 e março de 2013, o Badesul deferiu e conduziu operações de crédito de valores elevados, sem observar os princípios de garantia e liquidez. Em março de 2014, renegociou operações sem atentar para o princípio da liquidez. Ambos os princípios são recomendados pelas boas práticas de gestão e segurança operacional, e a irregularidade ficou caracterizada", conclui a nota técnica do BC.
Os episódios ocorreram durante a gestão de Marcelo Lopes no Badesul, no governo Tarso Genro (PT). Os antigos gestores do banco tiveram prazo de 30 dias para enviar as suas respostas à intimação e, agora, aguardam decisão do BC, que abriu investigação sobre os casos.
Questionado se já havia decisão sobre o processo investigatório do Badesul, o Banco Central limitou-se a responder, em nota, que “não comenta situações específicas de instituições reguladas”.
IESA ÓLEO E GÁS
O caso da Iesa Óleo e Gás é o primeiro esmiuçado pela intimação do Banco Central (BC) ao Badesul. A agência gaúcha emprestou R$ 40 milhões à empresa em três parcelas, em setembro, novembro e dezembro de 2012, com recursos próprios. O financiamento tinha o objetivo de contribuir com a instalação da Iesa no polo naval de Charqueadas, onde produziria módulos para plataformas de perfuração de petróleo.
A planta chegou a operar, mas a empresa acabou solicitando recuperação judicial, demitindo funcionários e acumulando dívidas. Uma delas com o Badesul, que não recebeu as parcelas do empréstimo.
O BC começou avaliando a questão das garantias bancárias. Ao receber a primeira parcela do financiamento, de R$ 20 milhões, a Iesa deu como salvaguarda o terreno em que se instalaria em Charqueadas, que ela recebeu como doação da prefeitura local. A área foi avaliada em R$ 3,9 milhões – valor pago a título de indenização aos proprietários anteriores –, mas, no ato da assinatura de contrato que inclui a área como garantia, o Badesul aceitou a valoração para R$ 13,9 milhões. A alta de R$ 10 milhões foi justificada pela construção de um atracadouro pela Iesa. O BC ressalvou que a benfeitoria não estava "averbada", o que significava que não foi registrada em cartório. Aceitar garantia nessas condições "contraria normativo interno da instituição".
O documento ainda ressalta que outras duas parcelas de empréstimo foram liberadas pelo Badesul à Iesa tendo o mesmo terreno de Charqueadas como caução.
"Os três empréstimos totalizaram R$ 40 milhões. A garantia real, no entanto, ficou em R$ 3,9 milhões, haja vista a inexistência de averbação do cais de atracação, ao qual foi atribuído o valor de R$ 10 milhões. Isso corresponde a uma relação de apenas 10% entre o valor da garantia real e o total das operações concedidas", relata o documento, indicando que a prática contraria regimentos.
Risco de calote foi ignorado
Pelas normas de mercado, as garantias bancárias devem ser de 130%. Ou seja, quem toma R$ 10 milhões deve apresentar salvaguardas de R$ 13 milhões. Elas serão executadas para evitar prejuízo do banco em caso de inadimplência. À frente do Badesul entre 2011 e 2014, Marcelo Lopes chegou a editar resolução interna para dizer que, caso a diretoria entendesse, não seria mais necessário exigir garantias de 130%.
"A instituição, portanto, agiu com desrespeito ao princípio da garantia", conclui a intimação. O BC ainda registrou que, no processo de análise de concessão do empréstimo, o Badesul não verificou a incapacidade da Iesa de pagar as prestações. Mensurar a chance de calote é atribuição dos bancos. Mas, naquela época, a direção do Badesul, via resolução, retirou os especialistas em análise de risco do Comitê de Crédito, penúltima instância de aprovação ou reprovação das transações.
"À época da concessão das operações, a Iesa já registrava endividamento global da ordem de R$ 251 milhões, sendo R$ 70 milhões junto ao Banrisul. Quando não levou em conta o endividamento já existente, a análise das operações não demonstrou ter adotado os devidos procedimentos para a avaliação da real capacidade de pagamento da empresa tomadora do crédito, deixando de observar esse requisito da boa gestão e da segurança operacional", diz o BC.
No trecho final a respeito da Iesa, a intimação aborda a renegociação do empréstimo junto ao Badesul em março de 2014. O expediente foi necessário porque a contratante, naquele ano, já não estava pagando o que devia à agência. O BC observou também que a Iesa descumpriu itens que ela mesmo propôs, como a quitação de parte dos atrasados.
WIND POWER
No caso da Wind Power, empresa de matriz argentina que se instalaria em Guaíba para construir módulos de geração de energia eólica, a intimação do Banco Central (BC) começa atacando a inexistência de garantias bancárias na operação com o Badesul.
A agência gaúcha emprestou R$ 50 milhões à empresa e, como salvaguarda, aceitou a citação imprecisa de supostos recebíveis de R$ 100 milhões que a Wind Power teria devido ao fornecimento de equipamentos para parques eólicos que geravam energia ao sistema da Eletrosul.
"Não foram identificados quaisquer documentos para comprovação da existência de contratos que garantissem à Wind Power direitos creditórios junto a subsidiárias da Eletrosul no momento em que o empréstimo foi aprovado", diz trecho da intimação ao Badesul.
No contrato de financiamento, o banco aceitou que a Wind Power apenas citasse parques eólicos que supostamente gerariam recursos futuros que poderiam ser revertidos em caso de calote. Só que as outras partes envolvidas – Eletrosul e subsidiárias – não foram comunicadas. Conforme as boas práticas bancárias, elas precisariam concordar com a engenharia financeira e confirmar a existência de recebíveis, que estavam sendo penhorados pela Wind Power. Da forma como foi feita, a garantia era frágil.
"Depois de formalizada a operação e liberados os recursos, o Badesul constatou que o principal elemento – os recebíveis – não existia. Os recursos haviam sido liberados para a Wind Power em 9 de maio de 2013, mas somente em 6 de setembro, ou seja, cerca de quatro meses depois, a agência tratou de notificar as subsidiárias da Eletrosul, dando-lhes conhecimento do penhor sobre os pagamentos a serem por elas efetuados", relata o BC.
Recebíveis aceitos como garantia não existiam
O arremate deste trecho da intimação é ainda mais contundente. O banco, meses depois de emprestar R$ 50 milhões, descobriu que a Wind Power não tinha nada a receber da fonte em que informou ter R$ 100 milhões em créditos.
"Na mesma oportunidade, a agência de desenvolvimento questionou-as (subsidiárias da Eletrosul) a respeito do saldo devedor ainda pendente de pagamento por elas à Wind Power. Em resposta, as subsidiárias informaram que não restavam parcelas de crédito devidas, em razão de inexistir saldo nos contratos com aquela empresa", conclui o documento.
Na sequência, o BC aponta problemas de outras duas tentativas da empresa de apresentar garantias reais a partir de uma fiança corporativa e um aval da argentina Impsa, sua controladora. Ambas se mostraram ineficazes ao longo dos anos, já que o Badesul continua amargando o calote milionário.
O BC aponta que a operação foi finalizada "em desacordo com os princípios de garantia e liquidez". A única forma de buscar ressarcimento encontrada pelo banco gaúcho até agora foi a venda do terreno em que a empresa iria se instalar em Guaíba. Foram arrecadados R$ 3,6 milhões, menos de 10% do montante de R$ 50 milhões entregue a Wind Power. O dinheiro do empréstimo, de origem pública, sumiu.
CONTRAPONTOS
O que diz a Iesa Óleo e Gás
Não respondeu e-mail enviado pela reportagem na segunda-feira.
O que diz a Wind Power
A Impsa, empresa argentina controladora da Wind Power, não respondeu e-mail enviado por ZH.
O que diz Marcelo Lopes, diretor do Badesul à época dos empréstimos
Por e-mail, afirmou: "Ao que tenho conhecimento, o Badesul prestou esclarecimentos ao Banco Central demonstrando a regularidade das operações".
O que diz Susana Kakuta, atual presidente do Badesul
Afirmou que a agência já respondeu ao Banco Central, que ainda não deu retorno sobre o caso:
"Todas as perguntas efetivas do Banco Central foram respondidas pela antiga diretoria. O que fiz foi a carta de encaminhamento, com ressalva da data de início da nossa gestão, no final de abril, e que a partir dessa data tomamos medidas saneadoras que tinham por objetivo mitigar os efeitos da fragilidade dos ativos do banco. Nem li (a resposta da diretoria anterior)".