O desfecho do processo de impeachment, seja qual for, representará apenas uma etapa em uma série de desafios à espera da confirmação de quem comandará o Planalto até 2018. Caso Dilma Rousseff se mantenha ou Michel Temer assuma o leme do país, haverá um cenário semelhante de dificuldades econômicas e políticas poucas vezes visto na história brasileira: déficit fiscal, recessão profunda, crescente tensão social e necessidade de compor um novo governo de coalizão.
Se a atual presidente resistir à tentativa de afastamento, o maior entrave seria recuperar a governabilidade sem sustentação no Congresso e com baixíssima aprovação popular – 13% em abril, conforme pesquisa Datafolha.
– Caso Dilma sobreviva, será por margem muito estreita de votos. E como governar com 200 votos no Congresso? Não aprova nada significativo. Ela teria de ser a líder que ainda não foi – analisa o cientista político Lucas de Aragão.
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Já Temer enfrentaria o desgaste de assumir o cargo mais importante do país de maneira indireta, após articulações de bastidores, e sob a inconformidade de organizações populares.
– Temer, se assumir, não terá vida fácil.
A reação dos movimentos sociais é uma incógnita. Além disso, o PMDB tenta se desvincular de Dilma agora, mas esteve no governo desde o começo do mandato – afirma o cientista político Gustavo Grohmann.
Se há diferenças pontuais, o pano de fundo para Dilma ou Temer é o mesmo.
– A crise econômica é grave porque os níveis da dívida pública e do déficit fiscal são muito altos. Em qualquer situação, não há soluções de curto prazo – avisa o economista e professor da UFRGS Flavio Comim.
A busca de uma saída do poço econômico em que o país se enfiou será dificultada pelo tumultuado ambiente social, marcado pela polarização da sociedade e pelo descrédito atribuído pelos eleitores ao Congresso e aos partidos. Confira, a seguir, um resumo dos principais desafios que esperam o Brasil após a disputa pelo mandato presidencial.
Queda na indústria
Entre os diferentes setores econômicos, a indústria é a que apresenta pior desempenho desde antes de a atual crise se tornar aguda. Ainda no último trimestre de 2014, conforme o Banco Central, o peso das indústrias no PIB já havia encolhido 0,92%. A redução superou 6% ao final do ano passado. A crise pesa ainda mais sobre subsetores como o de bens de capital, responsável pela produção de máquinas e equipamentos, que caiu 46% em comparação a setembro de 2008, auge da mais recente crise mundial.
– Esse é um número arrasa-quarteirão – avalia o economista Flávio Fligenspan.
O setor de serviços também já sente os efeitos da recessão, embora em menor grau (queda de 2,6% em 2015), enquanto a agropecuária é a única área ainda positiva – o crescimento de 1,8% no ano passado, porém, não foi suficiente para manter a economia brasileira no azul.
Desequilíbrio fiscal
Um dos maiores desafios de quem assumir o leme do governo será enfrentar o desequilíbrio fiscal, ou seja, o tanto que o país gasta além do que arrecada. Em 2015, o déficit de R$ 115 bilhões representou quase 2% do PIB e foi o pior resultado da série histórica iniciada em 1997. Para agravar, o FMI estima que as contas públicas seguirão negativas até 2019. Além de desorganizar a economia, os déficits aumentam o peso da dívida pública em relação ao PIB – importante indicador da saúde econômica de um país.
– Para estabilizar a relação entre a dívida bruta pública e o PIB (hoje em 66%), precisaríamos de um superávit primário de cerca de 2% do PIB ao ano. Como hoje temos déficit de 2%, é preciso fazer um ajuste equivalente a pelo menos 4% do PIB, o que é muita coisa – analisa o economista Alexandre Schwartsman.
Ciclo de recessão
Economistas sustentam que será custoso reverter o atual cenário de recessão. O PIB despencou 3,8% no ano passado, e a expectativa do mercado é de que volte a tombar 3,7% em 2016, conforme o relatório Focus (conjunto de avaliações colhidas semanalmente pelo Banco Central). Segundo o professor de Economia da UFRGS Flávio Fligenspan, o desafio é romper o ciclo perverso que combina queda na renda e no consumo, elevação do desemprego e redução nos investimentos.
– Por inércia, vamos cada vez mais para o buraco. Ninguém gasta, o comércio não vende, a indústria não produz, o desemprego aumenta, é um buraco sem fundo. Não se quebra esse ciclo de uma hora para outra – diz Fligenspan.
O mercado estima que o PIB brasileiro volte a crescer em 2017, mas abaixo de 0,5% e após dois anos de queda, o que não chega a ser uma grande notícia.
Crise das megaempresas
A combinação da crise econômica com escândalos de corrupção e outros fatores pontuais atinge em cheio algumas das principais empresas brasileiras. Foco da Operação Lava-Jato, a Petrobras chegou a perder 85% do seu valor de mercado entre o momento de pico, em maio de 2008, quando foi avaliada em R$ 510 bilhões, e o começo deste ano. Empreiteiras de grande porte implicadas no pagamento de propinas, como Odebrecht, OAS e Andrade Gutierrez, e a Vale, envolvida no desastre de Mariana, também enfrentam dificuldades. As companhias brasileiras com ações na bolsa perderam US$ 333 bilhões em valor de mercado no ano passado, mas se recuperaram em 2016. A crise das grandes corporações produz um efeito dominó porque costumam empregar muita gente e subcontratar outras empresas. Quando enfrentam problemas, o impacto tende a se espalhar pela cadeia produtiva. A crise geral dificulta a recuperação.
Consumo e desemprego
O país vive uma mistura infeliz: consumo em baixa, desemprego e inadimplência em alta. A queda de 4% no consumo das famílias, no ano passado, foi provocada por um coquetel amargo: juros altos, elevação da inflação, falta de crédito e piora nos indicadores de emprego e renda. O desemprego chegou a 9,5% no começo do ano e, conforme a Serasa, o número de brasileiros inadimplentes saltou de 57,9 milhões em dezembro para 60 milhões no mês passado – 41% da população com mais de 18 anos. Tudo isso inibe os gastos, o que esfria o comércio, faz cair a problema na indústria e realimenta o desemprego e a queda na renda (que ficou em 3,2% em 2015).
– Há previsões de que a renda no Brasil só será recuperada por volta de 2022. Mas o pior problema é que essa crise pesa justamente sobre os mais pobres e compromete o futuro de muitas pessoas – sustenta o economista Flavio Comim.
Falta de legitimidade
Temer ou Dilma terá uma dificuldade adicional para governar, além dos desafios da crise: questionamentos à legitimidade do mandato por parte de opositores. Durante a eleição, Dilma acusou Aécio Neves de planejar o aumento de impostos e o corte de investimentos. Ela mesma adotou a receita, o que motivou críticas de "estelionato eleitoral". Temer carregaria, em uma eventual ascensão à Presidência, a pecha de ter chegado indiretamente ao cargo e de ter conspirado para derrubar Dilma. Em pesquisa Datafolha de 9 de abril, 58% defenderam o afastamento de Temer (e 61% o de Dilma).
– Se o impeachment seguir as regras, não creio que terá um resultado ilegítimo. Mas uma eleição sempre dá um sentimento maior de legitimidade a quem governa e contribui para apaziguar a sociedade – avalia o cientista político e sócio da consultoria Arko Advice Lucas de Aragão. Em qualquer caso, uma solução definitiva só chegaria nas eleições de 2018.
Qualidade do Legislativo
Com qualquer presidente, o Congresso brasileiro seguirá o mesmo. E, na avaliação do cientista político Gustavo Grohmann, isso não é um alento na atual legislatura.
– Hoje, temos um legislativo bastante conservador e de baixa qualidade. Em qualquer país há troca de favores e corrupção em algum nível, mas quando tu tens uma elite política desqualificada, que olha para suas particularidades e não para a Nação, isso se agrava – avalia Grohmann.
Segundo levantamento da ONG Transparência Brasil, 53% dos deputados e 55% dos senadores são citados em processos na Justiça ou em Tribunais de Contas. Além disso, é frequente no Brasil a negociação com o Legislativo por meio da oferta de cargos, aprovação de emendas ou dinheiro vivo, como no caso do mensalão. Isso dificulta a implantação de projetos de governo, compromete a eficiência do setor público e estimula a corrupção.
Descrédito nos partidos
A sucessão de denúncias de corrupção envolvendo todas as principais siglas do país lançou um manto de descrédito sobre o atual sistema político-partidário brasileiro. Conforme o projeto Excelências, da ONG Transparência Brasil, no Congresso há
53 parlamentares do PMDB, 44 do PT, 39 do PP e 37 do PSDB envolvidos com processos na Justiça ou em Tribunais de Contas. Em razão dos escândalos, o nível de confiança da população nos partidos despencou de 30 para 17 entre 2014 e o ano passado, segundo o Ibope, em uma escala de zero a cem. Entre 18 instituições, o parlamento ocupa o último lugar do ranking liderado pelos bombeiros. Como resultado, nos últimos meses ganharam maior organização e visibilidade movimentos que defendem até o retorno da ditadura.
– Foi aberta a Caixa de Pandora, e ninguém sabe onde tudo isso vai parar – alerta o cientista político Gustavo Grohmann.
Relações entre os poderes
O ambiente entre os poderes também foi abalado pelo atual cenário de instabilidade. Enquanto parlamentares se queixam de supostas interferências do Supremo Tribunal Federal (STF) no Legislativo, ministros do STF criticam Legislativo e Executivo. Em um encontro com estudantes, no final de março, o ministro Luís Roberto Barroso criticou o PMDB como alternativa de poder ("Meu Deus do céu", declarou, em referência à foto de peemedebistas comemorando o desembarque do governo Dilma). E completou:
– O sistema político não tem o mínimo de legitimidade democrática. Ele deu uma centralidade imensa ao dinheiro e à necessidade de financiamento e se tornou um espaço de corrupção generalizada.
Já o presidente da Câmara, Eduardo Cunha, réu na Lava-Jato, chamou de "absurda" a decisão do STF de abrir processo de impeachment contra Michel Temer.
Divisão nacional
Um dos maiores desafios a quem conquistar o direito de chefiar o país será conciliar uma nação dividida entre o vermelho e o amarelo. O acirramento do debate político nos últimos meses, cristalizado no muro que separa a Esplanada dos Ministérios, promete se intensificar com qualquer resultado da votação sobre o processo de impeachment.
– Na época do Collor, não havia divisão na sociedade ou na elite política – compara o cientista político e professor da UFRGS Gustavo Grohmann.
Dilma teria de governar sem apoio no Congresso e com 63% de rejeição entre a população. Temer enfrentaria a mobilização de organizações sociais ligadas à esquerda, como CUT, MST e outros movimentos. Em qualquer cenário, deverão se prolongar os embates na sociedade – com que virulência, ainda é uma incógnita.