Chefe da Procuradoria-Geral da República (PGR) no auge do julgamento do mensalão, em 2012, Roberto Monteiro Gurgel Santos encara a Operação Lava-Jato sem surpresas. Sempre teve a certeza de que a ação penal 470 era "a ponta do iceberg", amostra de um esquema de corrupção ainda maior. O escândalo da Petrobras segue na linha da tese do antigo procurador.
Aposentado após três décadas de Ministério Público Federal, prestes a fechar os três anos de quarentena, Gurgel consegue ter uma visão clara e crítica do julgamento do mensalão. Ele, que pediu a condenação de 36 réus, considera que as penas impostas ao núcleo político ficaram pequenas. E teme que o mesmo ocorra no escândalo da Petrobras.
- Até o momento, quem está pagando o pato de forma efetiva são grandes empresários e operadores, já condenados - observa.
Cearense de perfil discreto e fala ponderada, Gurgel comandou a PGR de 2009 a setembro de 2013, quando passou o cargo ao amigo Rodrigo Janot. Ao lado de Claudio Fonteles e Antonio Fernando de Souza, eles integraram um grupo batizado na procuradoria de "tuiuiús". O apelido era uma referência à ave que demora para levantar voo. Nos governos tucanos, os quatro enfrentavam dificuldade para chegar ao comando da PGR. Os anos correram e a maldição acabou: todos alçaram voo e tornaram-se procurador-geral, indicados por Lula e pela presidente Dilma Rousseff.
No seu período à frente da PGR, Gurgel não ficou longe das polêmicas. Além do mensalão, apresentou denúncia contra o senador Renan Calheiros (PMDB-AL) e enfrentou desconfiança por ter suspendido a Operação Vegas, da Polícia Federal, que apontou os primeiros indícios da relação entre o bicheiro Carlinhos Cachoeira e o senador cassado Demóstenes Torres. Nesta entrevista concedida a Zero Hora, ele fala do episódio.
Aos 61 anos, radicado em Brasília, Gurgel divide o tempo entre palestras, o conselho da Rede Sarah e leituras que, por falta de tempo, não lhe eram permitidas no passado. É com sorriso no rosto desenhado pela barba branca e os óculos redondos - que lhe conferem a semelhança com Jô Soares - que ele confessa desfrutar cada aspecto da nova rotina.
Um marqueteiro do PT, Duda Mendonça, foi julgado na ação penal 470 e, agora, outro marqueteiro, João Santana, aparece na Lava-Jato com repasses de recursos no Exterior. Não se aprendeu nada com o mensalão?
Aparentemente, não. Basta observar que o ex-ministro José Dirceu, enquanto cumpria a pena pelo mensalão, já cometia novos crimes semelhantes àqueles pelos quais ele foi condenado pelo Supremo. O paralelo entre Duda Mendonça e João Santana pode ser feito, pois as condutas são similares. Lamento, aliás, a absolvição de Duda no mensalão, creio que foi um dos pontos em que o Supremo se equivocou.
Por que o STF teria se equivocado?
A prova apresentada era suficiente. O Supremo não condenou Duda levando em conta a alegação de que ele aceitava receber no Exterior ou não receberia. Essa afirmação não era crível, até pela influência e prestígio que o marqueteiro desfrutava junto à cúpula do PT e do governo.
Duda admitiu que recebeu o dinheiro pela campanha de 2002 no Exterior. Como a Lava-Jato vai provar que o dinheiro de Santana foi pago em razão da campanha petista?
Santana diz apenas que os valores recebidos no Exterior seriam de campanhas feitas lá. Para esse caso vale aquela velha máxima: basta seguir o caminho do dinheiro. Isso a Lava-Jato tem feito com muita competência. No início das investigações, já se sabe mais ou menos a trilha do dinheiro, por meio de offshores. Cada vez mais se aperfeiçoam os mecanismos de identificação do caminho dos recursos lá fora.
Dentro do PT surgiram críticas sobre uma espetacularização da prisão de João Santana. A conduta foi correta ou houve exagero?
A Justiça decretou a prisão temporária do marqueteiro, exatamente para facilitar o esclarecimento do que teria ocorrido, sob a ótica de João Santana. A prisão veio para facilitar e assegurar a produção da prova. Não há exageros.
Pelos casos de Duda e Santana passa a discussão do custo das campanhas. Vai funcionar o modelo de financiamento sem empresas, ou crescerá o caixa 2?
É uma grande dúvida. No Brasil, a gente tende a achar que a lei resolve tudo. Faria muito bem à lisura dos pleitos eleitorais que não fosse possível financiar campanhas por pessoa jurídica, mas é preciso ver se haverá a necessária firmeza para fiscalizar e impedir a generalização do caixa 2. Sou otimista, acho que a gente vai caminhando. O fato de não admitir formalmente a doação empresarial vai aumentando as dificuldades para que isso ocorra.
O mensalão pode ser considerado o embrião do Petrolão?
A Lava-Jato é muito mais ampla do que o mensalão, mas em uma parte dela pode-se dizer que o mensalão foi o embrião disso tudo. Quando se compara os dois casos, como na questão dos marqueteiros, vemos uma série de condutas semelhantes.
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A marca da Lava-Jato é a delação premiada. Por que não foi um instrumento recorrente no mensalão?
As delações premiadas que acontecem em grande volume são, de certa forma, efeito das condenações do mensalão. Quem realmente está pagando a conta é Marcos Valério, o operador do esquema, e o chamado núcleo financeiro: Kátia Rabello e o pessoal do Banco Rural. Para o núcleo político saiu extremamente barato. Diante da decisão do Supremo, que discordo, mas respeito, de afastar o crime de quadrilha, o núcleo político teve penas desproporcionais diante da gravidade dos delitos cometidos. A sensação que veio foi a seguinte: quem está pagando o pato foi o financiador e o operador.
Apostou-se na impunidade no julgamento?
É por aí mesmo. Naquela época, ficava claro que se achavam improváveis as condenações. A nossa tradição, que está mudando, era não considerar aceitável tentar responsabilizar penalmente pessoas situadas nos estratos mais elevados da sociedade, e algumas dentro de um palácio presidencial. Isso era considerado impossível.
As condenações foram um marco?
Exato. Na época do julgamento (2012), virou um lugar comum entre os advogados e outros defensores dos réus, falar que o mensalão era um delírio do Ministério Público, algo absurdo. Sabe-se que delírio não leva a lugar nenhum.
Por que o senhor critica o tamanho das penas dos políticos?
Saí muito satisfeito do julgamento, mas poderíamos ter ido além. Minha crítica é sobre o rejulgamento por ocasião dos embargos infringentes. Considero que eram inadmissíveis, sendo que se apreciou a causa pelo mesmo órgão julgador, que afastou o crime de quadrilha, derrubando o tamanho das penas. A Corte exigiu uma dedicação exclusiva ao crime de quadrilha, algo do tempo de uma criminalidade romântica, impossível hoje em dia. Exigir essa dedicação faz com que o crime de quadrilha fique naquela criminalidade que se desenvolve longe do colarinho branco. Espero que o STF reflita melhor e modifique o entendimento.
Com delatores, a investigação na ação penal 470 seria mais abrangente? O mensalão era maior do que foi julgado pelo STF?
Aquilo era a ponta do iceberg. Não tenho dúvida: o que foi objeto da denúncia oferecida pela Procuradoria-Geral da República era a ponta do iceberg. O mensalão era muito maior. Em vários aspectos as condutas da Lava-Jato são desdobramentos do mensalão.
A PGR definia José Dirceu como chefe da quadrilha. Em algum momento da investigação surgiram elementos que ligassem o esquema ao ex-presidente Lula?
Quando assumi a procuradoria (em 2009) a denúncia já tinha sido oferecida pelo meu antecessor, Antonio Fernando de Souza. A coisa poderia chegar perto do presidente, mas ficava no José Dirceu. Eu acompanhei a instrução da ação penal e ofereci as alegações finais, e, digo, que não aparecia qualquer elemento consistente em relação ao presidente Lula.
O senhor ficou surpreso ao ver José Dirceu no petrolão?
Nenhum pouco. Mostra que, infelizmente, parece que ele é daquelas pessoas vocacionadas para o crime. Tudo em que ele está envolvido é, de modo geral, algo ilícito. Observa-se isso até em alguns episódios pequenos e menores durante a execução da pena do mensalão, como a história de que trabalharia em um hotel, que depois se viu que era falsa. Quando aconteceu (Dirceu ser preso na Lava-Jato), foi a confirmação de que a acusação do mensalão era correta.
Defensores do ex-ministro diziam que não havia provas contra ele, uma crítica ao uso da teoria do domínio do fato.
Afirmava-se muito no mensalão a inocência dele. Eu sempre dizia que o líder da quadrilha não iria se expor. Não aparece recibo ou telefonema do líder. Você vê, pela velha história do domínio do fato, que tudo o que ocorria passava por José Dirceu.
O procurador-geral Rodrigo Janot solicitou ao STF o afastamento de Eduardo Cunha (PMDB-RJ) da presidência da Câmara. A Corte acatará o pedido?
Não há dúvida de que é algo muito drástico. O ministro Teori Zavascki pretende apreciar o recebimento da denúncia de um inquérito contra Eduardo Cunha, para depois analisar o pedido de afastamento. Se a denúncia for recebida, crescem as condições para afastá-lo.
Crescem as condições políticas ou jurídicas?
Acho que as duas. Claro que o Supremo vai examinar pelo enfoque jurídico.
O país pode ter os presidentes da Câmara e do Senado como réus no STF. O quanto é difícil investigar um político desta envergadura?
É muito difícil. Ofereci denúncia contra Renan em janeiro de 2013 (a PGR acusa o senador de usar notas frias para comprovar renda em um caso em que ele era suspeito de ter despesas pagas por um lobista) e até hoje ela não foi nem sequer recebida. O processo estava em pauta, mas a defesa alegou falhas e foi novamente retirado. Passaram-se mais de três anos e não tivemos nem o recebimento da denúncia, o início da ação penal.
Advogados criticaram a decisão do STF de permitir a prisão de condenados em segunda instância. Qual a posição do senhor?
É um passo muito importante. Li um artigo de um professor da FGV, chamado Ivar Hartmann. Ele diz que a protelação é elitista. Quem consegue protelar não é o criminoso comum, mas aquele que tem excelentes advogados, que recorrem aos tribunais superiores. Para o desvalido, a decisão do STF já acontece, ele é encarcerado com a decisão de segundo grau. Temos em Brasília o caso do ex-senador Luiz Estevão, condenado há muito tempo, mas que está solto graças aos recursos no STJ e STF. A sensação que passa, não apenas para sociedade, mas para quem é do ramo, é de impunidade.
O mensalão foi julgado em uma ação penal. Por ser fatiada em diferentes processos, a Lava-Jato terá condenações mais rápidas?
Em Curitiba já há uma série de condenações. Não sei como acontecerá no caso daqueles inquéritos de pessoas com prerrogativa de foro, que tramitam no Supremo. Temos grandes empresários processados e presos, mas por enquanto o mundo político está quase imune.
Que leitura o senhor faz da carta de advogados contra o juiz federal Sergio Moro?
Tenho muito respeito pelo papel dos advogados. Acho que eles cumpriram o seu papel, já que estão tendo dificuldades nos autos. Eles acharam uma tentativa de exercer uma pressão, até em termos de opinião pública. Estava no arsenal de medidas que a defesa pode lançar mão.
Há similaridades na forma de atuar de Sergio Moro e do ministro Joaquim Barbosa?
Não necessariamente. O juiz Sergio Moro é um especialista muito firme. A grande virtude de um juiz é não ter medo de decidir responsavelmente. Ele tem o perfil de firmeza, que nesse aspecto é igual ao do ministro Joaquim Barbosa. Como relator do mensalão, Barbosa ele teve uma firmeza rara, considerando os interesses e as pessoas envolvidas.
O senhor vê motivo para o impeachment da presidente Dilma Rousseff?
Confesso que não tenho simpatia pela coisa do impeachment, a não ser que houvesse elemento do envolvimento direto da presidente, que ainda não existe. Tivemos uma eleição extremamente disputada, em que a presidente Dilma saiu vitoriosa. Você tentar, logo depois, forçar uma situação de impeachment não é um expediente que honra muito a democracia.
O julgamento da ação penal 470 teve impacto eleitoral?
Creio que não. Na época do julgamento, um jornalista me perguntou se eu achava que deveria ter influência nas eleições, e eu respondi que deveria ter grandes influências. O PT caiu batendo. Parece que não teve. Se teve, foi muito pequena.
Quem acusa ou julga em casos de grande repercussão costuma sofrer ataques sobre sua credibilidade. É difícil lidar com a situação?
É difícil, mas acho que isso faz parte do ofício. Você se habitua a ser atacado. O ideal seria que atacassem a sua denúncia, o seu trabalho, e não você pessoalmente. Infelizmente, na prática forense isso ocorre com muita frequência.
O senhor foi muito criticado pelo arquivamento de uma investigação sobre o ex-senador Demóstenes Torres.
Fui mesmo. Era um arquivamento temporário, uma estratégia. Em uma intercepção telefônica que tratava de jogos de azar, apareceu uma série de referências ao senador Demóstenes. O juiz de Anápolis remeteu os autos, examinei e vi que, sem dúvida, havia algum tipo de problema ético, de uma promiscuidade além do que seria aceitável entre ele e Carlinhos Cachoeira. Só que não havia algo penalmente relevante.
A investigação foi segurada de propósito?
Se eu arquivasse, teria de arquivar no Supremo e a investigação viria a público. Optei por segurar, o termo técnico seria sobrestar o inquérito, porque a investigação era promissora. Segurei a Operação Vegas e se desencadeia a Monte Carlo, com um papel e desdobramentos muito mais fortes, prova da correção da estratégia.
Nas sustentações orais do julgamento da ação penal 470 os advogados criticaram o senhor, alguns recitaram trechos de música, um disse que o senhor lembrava o Jô Soares. O senhor ficou incomodado?
A questão da semelhança com Jô Soares sempre foi muito apontada. Quando eu apanhava meus filhos na escola, era normal que gritassem "olha o Jô Soares". Eu me habituei. Lógico que o STF não era o local para esse tipo de comentário. A pessoa perdeu a compostura.
Há uma geração de procuradores disposta a assumir o papel de herói no combate à corrupção?
Já tivemos no passado mais problemas com isso. O messianismo não convém ao Ministério Público. Investigar, realizar as operações e atuar ao longo do processo é o nosso trabalho, nossa missão constitucional, sem jamais achar que vamos salvar o mundo.
A PGR tem servidores suficientes para conduzir as investigações em andamento? Há risco de faltar braço para apurar a Lava-Jato ou outros temas?
O Paraná trabalha em razão da Lava-Jato, isso é evidente. É uma questão de eleger prioridades. Neste momento se justifica que toda a atenção seja dada a Lava-Jato. Vale para a Polícia Federal também. Temos um excelente material humano. Como todas as instituições do sistema de Justiça, nosso quantitativo de pessoal precisa de mais gente.
Do seu grupo de amigos na procuradoria, quatro, incluindo o senhor (Claudio Fonteles, Antonio Fernando de Souza e Rodrigo Janot), tornaram-se PGR. Quem será o próximo?
Não tenho a menor ideia (risos). Independentemente de quem seja, dificilmente teremos algum retrocesso. Hoje, não se admite que o procurador não dê prosseguimento a determinada investigação. Entramos em um ritmo em que essa continuidade do trabalho está assegurada.
O quarteto era chamado de "Grupo dos Tuiuiús". Por que o nome?
O grupo como tal já não existe. O tuiuiú é uma ave do pantanal com corpo grande e muita dificuldade de levantar voo. Ele corre, corre, dá uns saltos e não levanta voo porque é pesado e tem asas pequenas. O Fonteles dizia nos almoços que éramos como o tuiuiú, porque queríamos chegar a procurador-geral e não levantávamos voo.
O senhor deixou o cargo de procurador-geral em 2013. O que fez nos últimos três anos?
Tenho dado palestras, sobretudo em cursos de formação de promotores no Ministério Público dos Estados. Sou do conselho de administração da Rede Sarah, o que me agrada muito. Ainda estou pensando no que fazer, minha quarentena termina em agosto. A advocacia é uma possibilidade, mas não tenho nada decidido.
Já se imaginou no plenário do STF na função de advogado?
Não é uma opção muito fácil, por isso considero a quarentena apropriada. Vivi a experiência de ver um ministro do STJ que, na quinta-feira estava votando, e na terça-feira, já aposentado, estava na tribuna sustentando como advogado. Chocava. Não é fácil, o cachimbo faz a boca torta. Passei quase 32 anos no Ministério Público.
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