Um jogador sem preparo físico e com pouco - ou nenhum - conhecimento das regras do futebol dificilmente seria convocado para vestir a camisa da Seleção Brasileira. No meio político, o inverso disso ocorre a cada eleição: partidos recorrem às candidaturas de pessoas famosas e sem experiência político-partidária para angariar votos e aumentar suas bancadas.
A aposta nos chamados "puxadores de voto" é uma estratégia das legendas, já que o resultado das eleições para o Legislativo depende de um cálculo que leva em conta os votos recebidos por candidato, partido e coligação. Foi assim que o PSD, criado em 2011, conquistou uma cadeira e inaugurou, neste ano, sua bancada na Assembleia gaúcha: apostou na candidatura do ex-atacante do Grêmio Mário Jardel, alvo da Operação Gol Contra, do Ministério Público.
Suspeito de praticar crimes como concussão, peculato, falsidade documental, lavagem de dinheiro e organização criminosa, o ídolo gremista recebeu o passe de 41,2 mil eleitores gaúchos e, agora, está a um passo do rebaixamento. Há risco que o desfecho do caso seja o mesmo do ex-deputado Diógenes Basegio (PDT), acusado, assim como Jardel, de contratar funcionário fantasma e de fraudes para obter vantagens em ressarcimentos feitos pela Assembleia. O pededista renunciou, o que não impediu que o seu mandato fosse cassado por unanimidade dos votos - até mesmo de Jardel.
Especialistas consultados concordam: há uma teia de responsabilidades no caso Jardel que não pode ser ignorada. Partido, padrinhos políticos e personalidades que se engajaram na campanha deveriam fazer mea culpa. O ex-atacante filiou-se ao PSD em meados de 2013 por intermédio do amigo e ex-companheiro de Grêmio, o deputado federal Danrlei de Deus. O ex-técnico gremista Luiz Felipe Scolari também apoiou a candidatura e gravou uma mensagem usada em ações de campanha dizendo: "Assim como no futebol, agora Jardel será um grande deputado e fará muitos gols a favor do Rio Grande".
Para a professora Maria Lúcia de Freitas Moritz, da UFRGS, ao contrário do que prega o senso comum, os eleitores não deveriam ser apontados como os primeiros culpados quando um legislador se desvirtua. Segundo ela, são os partidos que não estão fazendo o seu dever de casa ao não investir na formação de seus quadros. A cientista política lembra que, nas eleições passadas, a única exigência para quem quisesse concorrer era a de que tivesse pelo menos um ano de filiação partidária. Com a minirreforma política, esse prazo caiu para seis meses, o que Maria Lúcia considera um retrocesso:
- Quem seleciona quadros e oferece ao eleitor um cardápio é o partido. O eleitor não pode ser crucificado, pois faz a escolha baseada no que está sendo ofertado. O partido deveria fazer uma peneira.
As legendas, conforme a professora, deveriam repensar sua forma de recrutamento e seleção de candidaturas. O sociólogo e cientista político Hermílio Santos, da PUCRS, concorda. Ele defende, inclusive, que haja algum tipo de punição para as siglas.
- O partido é responsável pelos atos de seus deputados. Todas as coisas boas que faz são em nome do partido.
As ruins também, não pode só ficar com bônus. Hoje, os partidos não têm motivo para cuidar dos filiados, pois sabem que vão sair ilesos, bastando, por exemplo, expulsar um deputado.
Casos expõem falhas em sistema de controle
Semelhantes, os casos de Mário Jardel e Diógenes Basegio, ambos suspeitos de desvio de dinheiro público, entre outros crimes, revelam falhas nos mecanismos de controle da Assembleia Legislativa, dizem especialistas. Nos dois episódios, as denúncias só vieram à tona porque ex-assessores dos parlamentares procuraram o Ministério Público.
- Há, de certa forma, uma proteção política para que esses delitos sejam acobertados. Então, eles têm recebido punição quando não é mais possível politicamente segurar o mandato desse deputado. É sintoma de um déficit de controle interno da instituição para detectar o problema e solucioná-lo a tempo - diz o sociólogo e cientista político Hermílio Santos, da PUCRS.
Professor de ESPM e Unisinos, o cientista político Bruno Lima Rocha acredita que uma das maneiras de evitar que problemas como esses venham a se repetir seria ampliar o número de servidores concursados, diminuindo a quantidade de cargos de confianças (CCs). Além disso, também poderiam ser aprimoradas as formas de pagamento das diárias e o controle sobre uso do combustível.
- Seria especulativo e até irresponsável afirmar que práticas como a exigência de parte do salário de servidores são corriqueiras. No entanto, para um deputado em primeiro mandato reproduzir uma prática é porque ela existe naquele meio - alerta Rocha.
Críticas e mensagens de apoio nas redes
Vergonha, decepção, corrupto. Esses são alguns dos termos que inundaram a página do deputado Mário Jardel no Facebook desde a segunda-feira passada. Foi a maneira que muitos gremistas e eleitores do ex-centroavante encontraram de manifestar sua indignação com as suspeitas sobre o ex-jogador.
Com cerca de 20 mil curtidas, quase metade da votação de Jardel, a página do político na rede social acabou servindo como uma espécie de válvula de escape. "Como se sentir sabendo que seu nome é homenagem ao ídolo gremista Jardel? Fez feio seu Mário Jardel!", escreveu o estudante de jornalismo Jardel Hillesheim, de Santa Rosa.
Entre as dezenas de comentários revoltados, um destoava dos demais. Era uma manifestação de apoio: "Força, meu deputado. Os gremistas não te abandonaram", escreveu o representante comercial Iuri Einar Becker, de Novo Hamburgo. Um dos 41.227 gaúchos que ajudaram a eleger o ídolo gremista, Becker admite ter se decepcionado com o que viu no noticiário nos últimos dias. Para o representante comercial, ele merece uma segunda chance, pois as práticas possivelmente adotadas não foram inventadas por ele.
- É a cultura política. A gente ouve falar que muitos deputados e vereadores também fazem isso (ficar com parte do salário de servidores), mas a Justiça é tendenciosa.
Contrapontos
O que diz a Assembleia
Superintendente-geral da Assembleia, Deoclides Vendruscolo rechaçou as críticas de que os mecanismos de controle da Casa são falhos. Segundo ele, o problema é que, se um parlamentar ou assessor resolver burlar o sistema, a assembleia não tem como impedir. Desde o ano passado, servidores estão submetidos ao ponto eletrônico, mas a regra não vale para cargos em comissão. Conforme Vendruscolo, essa é uma possibilidade a ser analisada. Há receio de que a adoção dê margem a um passivo trabalhista.
- As notas referentes a diárias, por exemplo, passam por três tipos de verificações, mas não temos como saber se a pessoa, de fato, esteve no local, a não ser que colocássemos um chip nela.
O que diz Jardel
O deputado não atendeu aos pedidos de entrevista. Advogado de Jardel, Amadeu Weinmann disse que ainda está analisando documentos e gravações, mas que já tem elementos suficientes para defender o parlamentar e manter o seu mandato.
- Há coisas extremamente graves. Estou diante de um tumor, recém peguei o bisturi. No momento em que espetá-lo, vai saltar pus para todos os lados - disse.
Weinmann explicou que o deputado está abalado:
- Agora, o Jardel porque foi craque, foi vencedor, não vai sentir, não vai sofrer, vendo a casa dele, como ele bem disse, estuprada, a família invadida?
O que diz o PSD
O segundo vice-presidente do PSD, Eduardo Olivera, lembrou que o partido decidiu suspender temporariamente o deputado Mário Jardel e instalar uma comissão de ética para averiguar as denúncias imputadas ao parlamentar. Conforme Olivera, o PSD foi "surpreendido com esse episódio da mesma forma que toda a comunidade gaúcha foi surpreendida". Olivera admite que Jardel não costumava participar de reuniões e eventos do partido. Questionado sobre os critérios para alguém ingressar na legenda, disse que "todo cidadão tem direito de se filiar e que seria discriminação proibir alguém de fazer isso".
- Não havia nada que desabonasse a conduta e a postura do Jardel na época em que ele se filiou ao partido e em que ele concorreu.
O que diz Danrlei
Procurado, o deputado federal informou que não irá mais comentar o assunto. Na última terça-feira, em entrevista ao programa Timeline, da Rádio Gaúcha, disse que o seu sentimento era de tristeza, mas que mantém a consciência tranquila, pois o que fez por Jardel "faria por qualquer outro amigo".
- Não tenho como comandar as escolhas pessoais das pessoas. Sei que vou acabar tendo um ônus (político). O que posso fazer é continuar fazendo meu trabalho de forma correta - afirmou.
Em abril, Danrlei rompeu com o Jardel. "Não quero relacionar-me publicamente com quem conduz seu mandato e sua vida da maneira como meu ex-colega demonstrou que vai conduzir", declarou à época, em nota.
O que diz Luiz Felipe Scolari
A reportagem não conseguiu contato com o técnico.