Um dos fundadores do PT, no início da década de 1980, Paul Singer é um caso raro de continuidade no Planalto: está desde 1º de janeiro de 2003 à frente da Secretaria Nacional de Economia Solidária, vinculada ao Ministério do Trabalho e Emprego. A permanência no cargo não impede o economista de 83 anos de fazer duras críticas ao programa de ajuste fiscal comandado pela chefe, a presidente Dilma Rousseff - com quem conversou pessoalmente apenas uma vez desde a eleição de 2010.
Nascido na Áustria, Singer veio para o Brasil com a família ainda pequeno, fugindo do regime nazista. Na juventude, atuou como metalúrgico e liderou a histórica greve dos 300 mil em São Paulo em 1953. Mais tarde, iniciou a carreira como professor da USP, publicando mais de 25 livros sobre temas como desenvolvimento econômico, classe operária e socialismo.
Na última segunda-feira, em breve passagem por Porto Alegre para participar do encerramento dos trabalhos da Subcomissão de Economia Solidária da Assembleia Legislativa, conversou com Zero Hora.
O senhor ajudou a fundar o PT no início da década de 1980. Um partido de oposição, combativo, de esquerda, que criticava a corrupção, as alianças de ocasião e as políticas que protegiam os mais ricos. O partido no poder decepcionou?
A pergunta é boa. Sem dúvida, o contrário. O governo Lula, foi, ao meu ver, autêntico. Fez o que se esperava de um governo do PT. Fez a economia crescer. Tivemos anos de pleno emprego, o que para a classe trabalhadora é o paraíso. O problema do desemprego não é só o trabalhador que fica sem emprego, mas a fila de gente desempregada que quer ficar no lugar do trabalhador empregado. Isso impede que ele faça greve, reivindicações. Eu tive essa experiência no Brasil e está acontecendo agora de novo, um enorme desemprego. Praticamente não há greve. Quando se tem pleno emprego, há mais greves porque os trabalhadores ficam muito mais seguros e muito mais exigentes.
O senhor se referiu ao governo Lula. E quanto ao governo Dilma?
O primeiro governo Dilma foi um grande governo, que levou várias das políticas que Lula começou bastante à frente. Foi uma boa sucessora do Lula, do ponto de vista do PT mesmo. Ela fez um excelente governo.
Mas o senhor tem criticado as medidas de ajuste fiscal. O PT não é mais o mesmo?
Este é outro governo, é outra Dilma. A mudança é total. Do doce para o azedo.
A mudança é um erro?
Não sei. É uma coisa que precisa ser verificada. Os efeitos imediatos são desastrosos. Estamos em recessão. O Brasil produz a cada ano menos e isso significa empobrecimento da população e cada vez mais desemprego. E isso Dilma não explica, o que é uma pena. Assim que começou o ajuste fiscal, a meu ver, a presidente deveria ter ido até a população e explicado por que é importante. Eu, que sou economista, não entendo. Mas ela tem um propósito, e tem dito isso. Ela quer ganhar a confiança da burguesia brasileira.
Haveria outra opção para colocar a economia nos trilhos a não ser fazer um ajuste nas contas?
O ajuste fiscal tira a economia dos trilhos. É totalmente negativo. Para colocar nos rumos é preciso que a burguesia brasileira comece a investir. Se a burguesia investir, a economia cresce. Mas isso não aconteceu ainda. O que aconteceu foram manifestações de figuras representativas da burguesia. As últimas que eu li e achei muito interessantes foram as do (Israel) Klabin (membro do conselho de administração da Klabin) e do (Roberto) Setúbal (presidente do Banco Itaú). Eles deram declarações elogiosas à política da Dilma. Aparentemente, em alguns lugares repercute. O que ela espera, e que eu também espero, é que façam alguma coisa, que ajam.
O governo adotou nos últimos anos diversas medidas para tentar reconquistar a confiança da iniciativa privada, concedendo, por exemplo, incentivos fiscais. Mesmo assim, o empresariado segue bastante reticente. Por quê?
Do ponto de vista da burguesia, a Dilma tem um grave defeito: é do PT. O PT é o partido antiburguês neste país. Foi assim desde a fundação e continuará sendo. Eles estão pedindo o impeachment da Dilma, não porque ela esteja fazendo algo que eles não querem, mas porque é o PT no governo.
Mas Lula é do PT e sempre teve um bom relacionamento com o empresariado quando esteve na Presidência. A iniciativa privada investia bem mais, não?
Esse é um ponto importante. O crescimento no governo Lula foi nitidamente maior do que no período FHC, que foi um governo totalmente burguês. A economia brasileira nos anos do Fernando Henrique cresceu miseravelmente 2% ao ano, era a chamada herança maldita, da qual o Lula tanto falava. E Lula conseguiu que a economia crescesse na ordem de 5% a partir de 2004. Os últimos anos dele foram bons para os trabalhadores, foram bons para os empresários. Tanto que ele saiu (do posto de presidente) com aprovação de quase 80%.
Na academia - Em foto de 1998, enquanto professor da USP. Singer foi um dos principais articuladores dos programas econômicos nas campanhas presidenciais do PT (Foto: BD).
O ajuste fiscal tem sido muito criticado dentro do próprio PT. Essa situação pode levar a um enfraquecimento da base política e social do partido?
Temo isso. Não sei se vai chegar a tal ponto, mas se essa situação se prolongar muito, temo que o PT perca sua base social.
Como um partido que surgiu de baixo conseguiu chegar ao ponto de ter integrantes milionários, envolvidos em suspeitas de corrupção? O que aconteceu no caminho?
Você faz uma declaração que, para mim, é estranha. Quem é milionário hoje no PT?
Há vários nomes envolvidos em suspeitas de corrupção. O ex-ministro José Dirceu, por exemplo, e o ex-ministro Palocci também.
O José Dirceu é milionário assim? Ou está preso? E, até onde eu sei, não foi corrupção no caso do Palocci.
Com o passar dos anos, o PT fez uma depuração da esquerda (petistas como Chico de Oliveira, Marina Silva, Chico Alencar, Heloísa Helena, Luciana Genro, Plínio de Arruda Sampaio, entre outros, deixaram a sigla). O partido foi mudando ao longo do tempo?
Não concordo. Não houve depuração da esquerda e nunca houve direita no PT, até onde eu sei. O Palocci foi um ministro que fez uma política conservadora, isso eu estou de acordo. E Palocci aproveitou o fato de ter sido ministro da Fazenda e vendeu o seu know-how. Isso vale milhões. Como ele mesmo diz: a cotação dos ministros da Fazenda está altíssima. Mas, no caso do Palocci, pelo qual eu não nutro nenhuma simpatia, não houve acusação de corrupção. O caso do Dirceu foi uma decepção para mim, mas não está nada comprovado. E isso é uma coisa importante. Esta delação premiada, na verdade, leva as pessoas que estão presas a mentir, porque elas sabem o que aqueles que propõem a delação querem ouvir. Então, se elas têm alguma ideia de que o Dirceu estava de alguma maneira envolvido, vão dizer. Mas isso não prova nada. A delação pode ser verdadeira ou não. No que se refere especificamente ao Dirceu , não acredito que ele tenha sido o arquiteto de todo o esquema.
O PT passa por uma crise de imagem?
Crise de imagem sim, por causa da política de ajuste fiscal. O restante, se me permite, é porque a imprensa é totalmente anti-PT e repete isso incessantemente. E aí há uma crítica que quero fazer ao meu partido: nós não temos imprensa nenhuma. Não há jornal no Brasil que seja do PT ou simpático ao PT. A coisa está totalmente unilateral.
Temos visto nos últimos anos a ascensão da direita conservadora e, principalmente, do antipetismo no país. O senhor acha, então, que isso é reflexo da política econômica e não dos escândalos de corrupção?
Eu resisto a dizer que o PT entrou na corrupção. Nosso tesoureiro está preso, mas isso não prova nada. Ele não foi julgado e não pôde se defender. O Dirceu também. Está preso no Paraná, houve uma denúncia, mas ele não pôde se defender. Eu resisto à ideia de que o partido como um todo tenha feito corrupção. Que haja pessoas corruptas é lamentável, mas o partido tem 1 milhão e poucos membros, e é possível que uma parte seja desonesta.
O senhor acredita, então, que o ex-ministro José Dirceu é inocente?
Sim. Eu não vou dizer que sei que ele é inocente, porque eu não sei. Mas, se a única prova contra ele for uma delação premiada, não é suficiente.
Um dos nomes à frente do pedido de impeachment contra Dilma é de um fundador do PT, como o senhor. Como vê a atuação de Hélio Bicudo no caso?
Uns anos atrás, escrevi um artigo e recebi um monte de respostas malcriadas e irritadas. Eu chamei esse texto de "as raízes do ódio". Lá, eu dizia que, por erros ou não erros do PT, uma boa parte dos membros se decepcionou com o partido. Essa decepção com o tempo vira ódio. Poderia significar a pessoa sair do partido, fundar outro, coisas assim. Mas não. Há uma relação de decepção, a pessoa se sente traída pelo partido. Conheço o Hélio Bicudo, fomos colegas no governo Luiza Erundina (prefeita de São Paulo entre 1989 e 1992), ele como secretário jurídico e eu, do planejamento. Tenho muito respeito por ele, é uma espécie de herói para o próprio PT. Não o encontrei pessoalmente, não pude perguntar a ele. Mas é tão estranho. Ele, que é petista, que foi vice do Lula na primeira vez em que Lula foi candidato a alguma coisa (ao governo de São Paulo, em 1982). Ele se sente traído pelo que o PT fez ou pelo que acha que fez.
O senhor considera a atitude de Bicudo uma traição com o partido?
Claro que é. Eu nunca tinha pensado nesses termos, mas é. Alguém me disse que agora ele é tucano, não sei se é verdade.
Impeachment é golpe?
Sim.
O senhor acha que a presidente Dilma chega ao fim do mandato?
Não sei dizer, sinceramente.
Existe risco de não chegar?
Existe o risco. Até o risco de que ela renuncie, embora não haja nenhuma sinalização de que vá fazer isso. Está difícil a situação. Não creio que a Dilma seja tão culpada assim, mas o risco existe.
Encontro único - Na abertura da Terceira Conferência Nacional de Economia Solidária, em 2014, única ocasião em que Singer (E) se encontrou pessoalmente com Dilma (Foto: Palácio do Planalto, divulgação, BD)
Como é a sua relação com a presidente? Vocês conversam?
Não, mas não que estejamos rompidos. A única vez em que eu tive uma conversa com ela foi quando fizemos a terceira Conferência Nacional de Economia Solidária (em novembro de 2014). Ela compareceu à abertura, foi muito simpática, fez elogios a mim.
Eu gosto da Dilma. Não tenho nada contra.
Houve toda uma preocupação do PT em reeleger a presidente. Isso pode ter postergado a reação à crise econômica?
É verdade. Em todos os meus anos de PT, nunca ouvi dizer que precisa ser feito um ajuste fiscal. Sou economista do PT, conheço todos os outros. Quando a Dilma começou a fazer o ajuste, sem dar satisfação a ninguém, fiquei espantadíssimo. Pensei: meu Deus do céu! Ela acabou de ser reeleita. Tem que, no mínimo, explicar para o povo o que está fazendo.
Quando reeleita, a presidente passou a adotar medidas diferentes de tudo o que havia prometido na campanha, o senhor concorda?
Claro. Não é diferente. É o oposto. Está fazendo exatamente aquilo que disse que o Aécio faria.
E por que ela está fazendo isso?
Ela está com a preocupação de fazer a economia crescer. A economia não estava crescendo no seu governo. Ela lutou contra a miséria, foi uma boa presidente. Mas a economia não cresceu. Acho que agora Dilma está decidida a fazer a economia crescer com a participação daqueles que têm dinheiro.
A presidente precisa conquistar a confiança da iniciativa privada para aumentar o investimento, certo?
Mais ou menos isso.
Mas, para dar o voto de confiança, o empresariado pede o ajuste fiscal, não?
Tenho a impressão de que o ajuste fiscal é uma reivindicação fundamentalmente bancária. Não sei qual é o interesse nisso, mas a gente ouve mais do setor financeiro essa exigência, que é internacional. Na Grécia, vemos um problema igual ao nosso.
Valeu a pena o governo cometer as chamadas pedaladas fiscais?
Honestamente, não sei dizer. A lei de que o chefe do governo não pode pedir emprestado para o seu próprio banco é uma cretinice. Não tem nenhuma explicação para isso. Dilma estava precisando de dinheiro para pagar Bolsa Família e aposentadoria, e não ia pagar?
Mas a maior parte das pedaladas serviu para pagar incentivos fiscais a empresas e não para dar recursos aos programas sociais.
Pelo que eu sei, foi para pagar dívida social, Bolsa Família e outras coisas.
O senhor considera o Bolsa Família uma forma mascarada de clientelismo?
O que você entende por clientelismo, nesse caso?
Boa parcela dos eleitores que elegeu o ex-presidente Lula e a presidente Dilma incluiu as pessoas beneficiadas por programas sociais, como o Bolsa Família.
Sim, nisso você tem razão. Foi o Nordeste que elegeu Lula na reeleição.
Isso não foi uma forma de clientelismo?
Não acho. O PT precisava fazer isso de qualquer forma, mesmo que não ganhasse voto. É um compromisso moral.
Velhos companheiros - Paul Singer em evento oficial, em 2010, com Lula, de quem foi companheiro no movimento sindical e a quem ajudou a fundar o PT (Foto: Antonio Cruz, Agência Brasil, BD, 17/11/2010)
Como é a sua relação com o ex-presidente Lula?
Eu diria inexistente. Sou velho amigo dele, militamos juntos. Quando ele era sindicalista, eu também era. Temos muitas coisas em comum. Mas, nos últimos anos, não temos nos visto.
O Lula de hoje preserva os mesmos valores do metalúrgico da década de 1980?
Eu não sei responder isso. Nos encontrávamos frequentemente em atividades políticas, mas não houve chance de conversar. Eu gostaria muito de conversar com Lula sobre o ajuste fiscal e essas outras coisas que estão acontecendo. Uma vez, eu tentei conversar com o Lula, ele ia me atender, mas teve dificuldades e acabou não acontecendo.
O senhor acha que ele deve voltar em 2018? Ele tem chance de se eleger?
Se ele quer ser candidato, tem todo o direito.
Ele é o melhor nome do PT hoje ou o senhor vê algum outro candidato em potencial?
Não vejo nenhum nome em potencial, o que não quer dizer que não haja. Tem uma porção de políticos no PT, mas nenhum se compara ao Lula e à Dilma.
O senhor está desde 2003 à frente da Secretaria Nacional de Economia Solidária. Desde lá, houve diversas trocas de ministros e, recentemente, uma grande reforma para acomodar aliados políticos. Qual é o segredo para se manter por tanto tempo?
(Risos) De fato, estou desde o primeiro dia do governo Lula. A economia solidária surgiu como reação às crises que tivemos no Brasil. Quem trouxe foi a Cáritas (entidade de atuação social ligada à igreja Católica), que começou a organizar a economia solidária com os desempregados. Como eu me dava bem com a comunidade católica, me convidaram para participar, em 1981, ainda no regime militar. Naquela época, havia grande desemprego no Brasil. Com a crise do petróleo, a indústria automobilística respondeu demitindo dezenas de milhares, semelhante ao que está acontecendo agora. As políticas sociais de que participei foram autênticas. Ajudaram pessoas que precisavam ser ajudadas. O que pessoalmente me toca é que o Bolsa Família paga para a mulher e garante que as crianças vão às escolas e passem de ano. Há um acompanhamento. A Controladoria-Geral da União (CGU) fiscaliza isso. E o que mais me comove é que à medida que essas famílias conseguem emprego, elas mesmas renunciam ao benefício. Por iniciativa delas.
Até que ponto a economia solidária é viável em grande escala?
Parece que quem cria a economia solidária são os trabalhadores, principalmente os camponeses, mas, na realidade, quem cria a economia solidária é o capitalismo, à medida que torna-se terrível. E está se tornando no mundo inteiro, não só no Brasil, principalmente com a juventude, que está sendo muito maltratada. O desemprego juvenil, em todos os países, é o dobro da média nacional. É uma coisa absurda. Alguns jovens têm, inclusive, diploma universitário e não conseguem trabalho.
Mas a economia solidária é viável nesse contexto de crise?
Não só é viável, é indispensável. Ela cresce à medida em o capitalismo faz o que faz com os jovem, as mulheres, os negros, os desempregados. O capitalismo cria vítimas em massa. E uma saída para essas vítimas é elas se organizarem e se ajudarem mutuamente. Esta é a essência da economia solidária. A palavra solidária no nome não é enfeite.
A economia solidária não está restrita a um pequeno nicho hoje?
A economia solidária no Brasil já não é nicho há muito tempo. Só para dar um exemplo, temos no país, hoje, a pequena agricultura, ou agricultura familiar, que alimenta 200 milhões de pessoas. A grande agricultura, muito maior em termos de recursos e terras, trabalha para o mercado mundial. A pequena agricultura trabalha para o mercado interno e alimenta o mercado interno. Esta pequena agricultura é toda economia solidária. Quase todos eles fazem parte de cooperativas, que não são uma coisa brasileira, aliás. No mundo inteiro, os pequenos agricultores se organizam em cooperativas: na Alemanha, na Itália, na Suécia. E há uma razão para isso: o pequeno agricultor compra e vende, como qualquer outra atividade econômica. Ele compra de grandes multinacionais a semente, o fertilizante, ou seja, é explorado. Ele tem que pagar o que essas grandes empresas alemãs, americanas cobram. É uma exploração e tanto. E, simultaneamente, o pequeno produtor vende o que produz para grandes indústrias. Ele é um pequenininho tentando ganhar dinheiro no meio de gigantes. A única saída que ele tem é se organizar politicamente. Um pequeno produtor é zero. Agora, 5 mil pequenos produtores não são zero, não.