Dívidas tributárias acumuladas ao longo de décadas deixaram ao Rio Grande do Sul uma herança dúbia. À beira do colapso financeiro, o Estado tem mais de R$ 36 bilhões em dívida ativa, nome que se dá aos débitos de pessoas e empresas com o governo, a maioria por não pagar impostos ou por questioná-los na Justiça.
Em teoria, a cifra seria suficiente para colocar as contas do Palácio Piratini no azul. Mas a realidade é outra. A média anual de recuperação, até 2015 (data original de publicação desta reportagem), era de R$ 1,1 bilhão, o equivalente a 2,8% do passivo – valor insuficiente para amenizar a situação de penúria do Estado. O problema é que dois terços do passivo, segundo a Receita Estadual, já estão perdidos. Com registros que começam em 1965, não passam de papelada envelhecida.
— Lamentavelmente, essa parcela da dívida acabou se tornando incobrável em face do tempo que passou. É fácil alardear que a solução da crise passa pela recuperação desses valores, mas não podemos simplesmente expropriar bens. Não temos esse poder. Fazemos o que é legalmente possível — diz o secretário adjunto da Fazenda, Luiz Antônio Bins.
Dos R$ 25 bilhões em moeda podre, mais da metade é objeto de ações que tramitam na Justiça. Integra o bolo processos envolvendo companhias como J.H. Santos, Imcosul e Hermes Macedo, que já não operam mais.
Mesmo em casos de falência, quando não restam bens penhoráveis, o juiz não pode simplesmente extinguir as ações. Pode, no máximo, suspendê-las. O prazo de prescrição dos débitos é de cinco anos, mas, enquanto o caso estiver suspenso, a contagem é congelada, e o Estado deve prosseguir nas buscas (por sócios, sucessores e valores que possam ser bloqueados). É por isso que processos antigos, com mais de 20 anos, continuam abertos e sem solução. Acabam em uma espécie de limbo jurídico, inflando artificialmente a dívida.
— Muito do que restou do passado tem a ver com a questão tecnológica. Tudo era mais lento. Hoje, existe preocupação em agilizar os processos — diz a juíza Alessandra Abrão Bertoluci, da 6ª Vara da Fazenda Pública, na Capital.
Em 2010, por iniciativa da Procuradoria-Geral do Estado (PGE), foi aprovada lei que autoriza o órgão a desistir das causas inviáveis.
Desde então, todas elas (cerca de cem mil) estão sendo reavaliadas, e mais de 10 mil foram extintas nos últimos três anos.
— Decidimos fazer um filtro. O que queremos é que o Judiciário coloque todo o empenho nos processos de maior viabilidade. Do contrário, os que realmente têm chance de retorno acabam sendo prejudicados — diz o procurador-geral adjunto para Assuntos Administrativos da PGE, Cristiano Xavier Bayne.
Mas quanto, afinal, ainda pode ser recuperado? Via tribunais, cerca de R$ 9 bilhões. Via Receita, outros R$ 2 bilhões. A soma nem de longe é desprezível. A título de comparação, equivale a 28 vezes o valor aplicado em investimentos em 2014, com recursos do Tesouro estadual. É o dobro do déficit (quando o gasto é maior do que a receita) previsto para este ano.
Só que o retorno não é automático. Depende da celeridade da PGE e do Judiciário, que leva, em média, oito anos para julgar ações de execução fiscal, e da agilidade dos auditores da Receita Estadual, cujo número vem caindo devido a aposentadorias sem reposição.
Cobrança judicial é o último recurso e o menos eficaz
Os caminhos para recuperar o dinheiro devido são cheios de percalços. Tudo começa na Receita Estadual. Em caso de fracasso, a via judicial surge como a derradeira e mais demorada opção. Nos últimos anos, a cobrança administrativa tem sido mais eficiente.
— As pessoas acham que ficamos de braços cruzados, mas não é verdade. Assim que o imposto declarado deixa de ser pago, e antes mesmo de ser formalizada a autuação, já contatamos o contribuinte para alertá-lo — diz Lisiane Moraes de Azeredo, chefe da Seção de Planejamento e Programação de Cobrança, da Fazenda.
A recuperação na fase administrativa, em relação à média anual, passa de 80%. Em 2014, o índice representou R$ 1,1 bilhão, mesmo valor previsto para 2015. Para tanto, a Receita se vale de medidas restritivas como a emissão de Certidão Positiva de Débitos (que impede, por exemplo, a transferência de imóveis no nome do devedor).
Além disso, registra os maus pagadores no Cadastro de Inadimplentes do Estado (Cadin) e, desde 2012, nos arquivos da Serasa. Até o fim de 2015, deve iniciar o protesto dos débitos em cartório. A medida já é adotada em prefeituras, como a de Porto Alegre, e tende a melhorar os resultados.
— Em geral, os contribuintes têm interesse em regularizar a situação — diz o subsecretário da Receita, Mario Wunderlich dos Santos.
O desafio, segundo ele, é chegar aos grandes devedores, os chamados "contumazes". Aqueles que, propositalmente, ficam inadimplentes por no mínimo oito meses no ano. Correspondem a 1,5% dos contribuintes e são responsáveis por 40% do ICMS declarado e não pago. Inevitavelmente, acabam na Justiça.
A via judicial tem seu ponto de partida na Procuradoria-Geral do Estado (PGE). Cabe ao órgão ajuizar as "ações de execução fiscal", que se arrastam por anos.
Em 2015, o objetivo da PGE era recuperar R$ 200 milhões, projeção próxima do que foi resgatado em 2013 e 2014. O valor é a metade do que falta ao Tesouro todo mês para honrar os compromissos em dia, como os salários dos servidores, mas os procuradores divergem de quem acha pouco.
— A meta é ousada se levarmos em conta o cenário de PIB recessivo — diz o coordenador da Procuradoria Fiscal, Cândido Martins de Oliveira.
Por conta dos inúmeros recursos, os resultados são demorados. Além disso, a PGE se vale de uma lei para ajuizar processos somente quando a dívida supera R$ 10 mil. A estratégia, segundo o coordenador-adjunto da Procuradoria Fiscal, Guilherme Guaspari, serve para evitar que os custos processuais superem as cifras em discussão. Mas a iniciativa é controversa.
— No conjunto, o Estado acaba perdendo mais do que ganhando com essa postura derrotista. Há uma tendência excessiva à conciliação com quem, evidentemente, não quer pagar — afirma o desembargador Túlio Martins, presidente do conselho de comunicação do Tribunal de Justiça.
A PGE discorda. Garante que a decisão, além de mais econômica, não livra os pequenos devedores das penalidades.
Foco nos "devedores contumazes"
Um dos principais objetivos da PGE, hoje, é atuar na "manutenção do crédito fiscal". Isso significa defender o Estado nos casos em que contribuintes contestam a cobrança de tributos na Justiça. O coordenador da Procuradoria Fiscal, Cândido Martins de Oliveira, destaca que 45% do valor em discussão envolve grandes companhias.
— Essas empresas não deixam de pagar ICMS por falta de dinheiro, mas porque querem discutir a cobrança. Isso é lícito. Focamos nesses casos porque, se a nossa tese vencer, como já aconteceu no Supremo Tribunal Federal, o volume revertido é enorme — diz Oliveira.
Segundo o procurador, há grupos empresariais que planejam o não pagamento do tributo de forma legal, a partir de interpretações alternativas da legislação. A validade é decidida na Justiça. Mas há, também, situações ilegais, e são estas as que mais preocupam a PGE. Trata-se de devedores contumazes que simplesmente deixam de recolher ICMS para se capitalizar e fazer concorrência desleal.
Há cerca de 10 anos, a procuradoria deparou com empresas que passaram a adquirir precatórios (títulos de dívidas do Estado reconhecidas pela Justiça) por 20% do valor na tentativa de utilizar 100% para compensar ICMS não pago. A manobra acabou barrada e levou muitas à falência. Para combater condutas desse tipo, a PGE está criando um núcleo de inteligência. A ideia é trabalhar em conjunto com órgãos como Polícia Civil e Ministério Público.
O que é a dívida ativa
- É o dinheiro que pessoas e empresas devem ao poder público. No caso do RS, 99,3% são tributos não pagos. O principal é o Imposto sobre Circulação de Mercadorias e Serviços (ICMS).
- O ICMS devido representa 98,2% do passivo. Os demais tributos que compõem a dívida são o Imposto sobre a Propriedade de Veículos Automotores (IPVA) e o Imposto sobre Transmissão Causa Mortis e Doação de Quaisquer Bens ou Direitos (ITCD).
Quem deve (dados de 2015)
- Empresas: 88,5 mil
- Pessoas físicas: 103,3 mil
- Total de créditos tributários: 764,2 mil
A dívida mais antiga
- É de 1965 e envolve o não pagamento do antigo Imposto sobre Vendas e Consignações. A cobrança ficou suspensa por anos na Justiça. Em 2012, o pagamento foi parcelado em 60 meses. Hoje, o saldo devedor é de R$ 37 mil. Como a empresa buscou a regularização, o Estado mantém a identificação em sigilo.
As desistências
- Desde 2010, uma lei estadual autoriza os procuradores do Estado a desistirem de ações consideradas inviáveis.
- Nos últimos três anos, foram extintos 10 mil processos. A intenção é ampliar o número para concentrar esforços nas ações de cobrança consideradas viáveis.
Os caminhos da cobrança
Existem duas formas de cobrança da dívida: a administrativa e a judicial. Entenda os caminhos possíveis
1- Determinada empresa deixa de pagar ICMS ou paga menos do que deveria.
2- Ao detectar o problema, a Receita notifica a empresa, com prazo de 60 dias para regularização. Depois disso, o crédito vira dívida ativa.
3- A fase de cobrança administrativa se estende, então, por até seis meses. Nesse período, a Receita exerce ações como a notificação do devedor e a inscrição da dívida no Cadastro de Inadimplentes do Estado (Cadin) e no Serasa.
4- Se a devedora pagar o que deve, o processo é encerrado. Se parcelar o débito, a Receita faz o acompanhamento até a quitação.
5- Caso não ocorra o pagamento, é gerada a Certidão de Dívida Ativa (CDA). O documento é enviado à Procuradoria-Geral do Estado (PGE), que entra na Justiça com ação de execução fiscal (cobrança judicial da dívida).
6- O juiz recebe a ação e avisa o responsável pelo débito para que pague ou apresente defesa.
7- Se ele se defender, cabe ao juiz julgar o caso. Se não se manifestar, o juiz ordena a busca de bens e valores do devedor para assegurar o pagamento.
8- Quando identificados, os bens vão a leilão e os valores são bloqueados. O dinheiro é revertido para o Estado. Quando não são, o processo fica parado, e cabe à PGE dar continuidade às buscas.
9- A dívida prescreve em cinco anos, mas a contagem recomeça sempre que há movimentação no processo. Há casos de ações que se arrastam por décadas.
10- Se o juiz entender que todas as tentativas de cobrança da dívida foram exauridas, ele suspende o processo.
11- Assim, a PGE pode desistir da ação. Se fizer isso, cabe à Receita "dar baixa" à CDA, e a dívida deixa de existir.