O escândalo de corrupção é do século passado. O ano era 1997. A partir de uma denúncia de um empresário de Santa Maria, o Ministério Público (MP) abria, naquele ano, um inquérito para investigar denúncias de que um grupo de empresas do Estado estaria formando um cartel para superfaturar e vencer licitações de obras da antiga Companhia Rio-Grandense de Telecomunicações (CRT), entre 1993 e 1996.
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O tempo passou. Dezoito anos depois, a CRT nem existe mais, é apenas uma lembrança na memória dos gaúchos. Mas 6,5 mil dias depois, em 2015, o esquema de corrupção não foi esquecido. No último dia 11 de abril, a Justiça de Santa Maria condenou, em primeira instância, 11 dirigentes de empresas pelo crime de improbidade administrativa. Na ação civil pública, a juíza da 1ª Vara Cível Especializada em Fazenda Pública, Eloisa Helena Hernandez de Hernandez, determinou que os réus devolvam, aos cofres públicos do Estado, o valor equivalente ao pago em 41 licitações feitas pela CRT, além de multa de R$ 100 mil a cada réu, suspensão dos direitos políticos por oito anos e proibição de contratar com o poder público por cinco anos. Eles podem recorrer da sentença.
Os outros 16 réus, a maioria funcionários e gerentes da CRT na época, foram inocentados pela juíza, por não terem cometido atos de improbidade. Já a ação criminal teve sentença, em 2010, inocentando os sete empresários que respondiam à ação. O motivo: a prescrição dos crimes.
A Justiça Estadual alega que o grande número de réus foi um dos motivos para essa ação civil pública do cartel da CRT ter levado tanto tempo para ser julgada. Segundo a 1ª Vara Cível da Fazenda Pública, apesar de o inquérito no Ministério Público ter se iniciado em 1997, a denúncia foi entregue pelo MP à Justiça em dezembro de 2001, na época, à 4ª Vara Cível.
Réus não eram localizados
Segundo o Judiciário, a ação tinha 27 réus e foi difícil conseguir achar todos para intimá-los. Como alguns não foram localizados, foi preciso fazer a chamada notificação preliminar por meio de publicação de um edital, o que ocorreu em 11 de setembro de 2008. Só então foi possível iniciar o trâmite para eles serem citados. Todos os réus acabaram apresentando suas defesas até 27 de novembro de 2009. Em abril de 2010, a ação passou para a 1ª Vara Cível da Fazenda Pública e foi preciso ouvir testemunhas em outras cidades.
Todas as provas do processo foram entregues até 2 de maio de 2013, quando foi aberto um prazo para manifestações finais de 10 dias a cada réu e ao MP. Como havia 27 réus e o MP, foram 280 dias só para essa fase.
A ação acabou ficando conclusa para sentença em 26 de fevereiro de 2014, e a juíza levou mais de um ano para dar a sentença porque o processo todo tem mais de 8,2 mil páginas. Só em documentos do inquérito do MP, são 7 mil páginas que precisaram ser analisadas. Agora, os condenados têm prazo para recorrer.
OS CONDENADOS
Foram condenados diretores, na época, de construtoras de redes telefônicas
Luiz Carlos de Campos Sant'Anna (Santa Maria)
Paulo Roberto Fucks da Veiga (Santo Ângelo)
Marli Ribas da Luz (Santo Ângelo)
Gilmar José Cunha (Passo Fundo)
Luiz Serny Fernandes (Porto Alegre)
Valter Adão Silveira de Ávila (Santa Maria)
Francisco Stumpf (Porto Alegre)
Arlene Cristina Silva Figueira (Porto Alegre)
Ronaldo José Donato (Porto Alegre)
Rubilar do Nascimento Ferreira (Santo Ângelo)
Osmar Kuiawa (Estrela)
O que dizem
Luiz Carlos de Campos Sant'Anna: "A ação movida pelo Ministério Público tinha como objetivo evidenciar um esquema entre funcionários da antiga CRT e empreiteiros, o que não ficou comprovado ao longo do processo, razão pela qual 14 dos réus não foram condenados. Ocorre que ao longo do processo o sr. Sant´Anna não atendeu à notificação e posterior citação, motivo pelo qual foi considerado revel e, consequentemente, condenado. Importante dizer que o embasamento de sua condenação se dá exclusivamente pelo depoimento de uma única testemunha que tem sabida inimizade com o réu. Tendo em vista que não houve ilegalidade nos atos cometidos pelo sr. Sant´Anna, e que sua conduta estava adequada à legislação e contratos administrativos, bem como não houve qualquer condenação na processo penal, buscaremos a reforma da sentença." Ricardo Blattes e Giorgio Forgiarini, advogados de Luiz Carlos de Campos Sant'Anna
Paulo Roberto Fucks da Veiga disse, na sexta-feira, que estava em viagem e só poderia falar hoje.
Luiz Serny Fernandes teria falecido em fevereiro deste ano, em Porto Alegre, e sido enterrado em Caçapava do Sul, segundo consta no site de uma funerária da Capital. No prédio onde funcionava a empresa de Fernandes, um funcionário confirmou que ele morreu.
Os demais não foram localizados pela reportagem
Empresário que denunciou está de "alma lavada"
Apesar de ainda caber recurso a essa sentença, a condenação em primeiro grau é considerada uma vitória pessoal para o empresário e engenheiro mecânico santa-mariense João Batista Veras (na foto acima), 54 anos. Na década de 1990, ele tinha uma empresa, a Eletro Engenharia, em Camobi, com 50 funcionários, que prestava serviços de ampliação de redes de telefonia e atendia à CRT. Segundo ele, tudo corria bem, até que as licitações feitas pela CRT começaram a ser fraudadas por outras empresas. Segundo ele e a sentença, no acordo entre os empresários envolvidos, haveria combinação nas propostas de preço para que, em Santa Maria, por exemplo, somente a Santana Telefonia (que não atua mais) apresentasse a menor proposta e saísse vencedora. Em troca, as outras empresas concorrentes ficavam com as obras nas demais regiões do Estado.
Como a empresa de Veras era concorrente da Santana Telefonia em Santa Maria, o denunciante diz que foi prejudicado pelo cartel e acabou tendo de fechar as portas da Eletro Engenharia. Segundo Veras, os integrantes do cartel iam com duas propostas de preços e, no momento da licitação, tinham em um envelope os valores superfaturados e no outro uma proposta de preço bem baixa, caso Veras ou outro empresário de fora do cartel aparecesse. O objetivo seria não deixar outras empresas ganharem as licitações. No processo, há conversas telefônicas que comprovam a fraude:
- Eu levei a segunda proposta, tá, eu perdi dinheiro, mas tu não ganhou, sabe por quê? Porque tu tá jogando contra mim - afirmou Luiz Carlos Sant'Anna, em uma conversa com Veras, por telefone, que foi gravada e está no processo.
Não quis participar do Cartel
Veras conta que chegou a ser convidado, mas se negou a fazer parte do cartel. Essa decisão, de fazer o que é certo e acabar denunciando a fraude, acabou custando um preço alto para ele:
- Custou a minha família e a minha empresa. Dos 35 aos 50 anos, minha vida se foi. Hoje, após a condenação (de 11 réus), eu me sinto com a alma lavada e com sentimento de dever cumprido. Hoje, meu filho é médico e se orgulha do pai.
Ele lembra que, na época, chegou a ser duramente criticado por não participar do cartel.
- Decidi não roubar. Poderia ter participado do esquema e ter ficado cheio de dinheiro. Amigos e pessoas da minha própria família diziam: "Tu és burro" - recorda-se.
Veras fez uma investigação por conta própria, sem o envolvimento da polícia e do Ministério Público. Sozinho, gravou as conversas que teve por telefone com diversos empresários que participavam da fraude. Eram donos de empresas de Santa Maria, Estrela, Porto Alegre, Passo Fundo e Santo Ângelo, que prestavam serviços para 220 cidades das regiões Noroeste, Centro e Fronteira do Estado. Nos diálogos, segundo o MP e a própria juíza, fica clara a intenção dos empresários acusados em combinar preços e definir que empresa ficaria com cada obra da CRT, fraudando a licitação e cobrando valores mais altos (veja abaixo alguns trechos da sentença e das conversas telefônicas).
Veras ficou conhecido na cidade em 2013 devido a outro caso, ao gravar um polêmico vídeo em que fazia acusações, responsabilizando pessoas e autoridades pela tragédia da Kiss.
Sentença
"No que se refere aos empresários, o extenso conjunto probatório é suficientemente seguro para confirmar a acusação inicial do Ministério Público: no período de 1993 a 1996, operou na regional da CRT em Santa Maria esquema de fraude nas licitações, no qual as empresas simulavam propostas de preços em concorrência com o feito de beneficiar a empresa Santana Construções Elétricas LTDA, que acabava por vencer a grande maioria das licitações. Em troca, as outras empresas eram favorecidas em licitações da CRT em outras regiões do Estado. Ou seja, as empresas 'partilhavam' entre si as obras da CRT em praticamente todo o Estado do Rio Grande do Sul. A prova mais contundente da formação de cartel são as gravações de conversas telefônicas efetuadas pelo denunciante João Batista Veras, e que foram transcritas em mais de 70 páginas..."
Confira um trecho de conversa telefônica
Veras (empresário denunciante) - Me diz uma coisa, então as licitações que sai aí, praticamente sempre tem um que já tem a obra pega?
Valter (empresário réu) - Não, não, isso aqui, sim por exemplo, a gente conversa né, lá o Santana, por exemplo, está trabalhando em Santa Maria, ele tem preferência por Santa Maria, né?
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Valter - Eu não sei, pois é o Santana que faz os contatos.
Veras - Ele que é o coordenador geral?
Valter - Ele é que faz os acertos aqui pra nós, claro que conversa e pergunta, te interessa aonde? Aqui, ali e acolá, então a gente combina e depois cota o preço.
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Veras - E essa obra de Alegrete, tu, tu pegou fazendo acordo com quem?
Valter - Essas aqui nós fizemos pela região
Veras - Tá, quem é que fez acordo contigo nessa obra?
Valter - É, nessa í, tudo nós combinamos com o Santana, não é? [...]