Aos nove anos, uma menina que vive em um abrigo de Porto Alegre teve a família biológica julgada pela Justiça como sem condições de criá-la. Com a decisão, ela foi oficialmente tirada dos familiares e passou a ser filha do Estado, que deveria encaminhá-la à adoção. O Judiciário, entretanto, nunca teria incluído seu nome no sistema, e ela teve de comemorar o aniversário de 17 anos na instituição, sem ter a chance de ganhar novos pais.
A situação da garota não seria exceção na Capital: além dela, outras 39 crianças e adolescentes que vivem nessas casas e foram destituídos do poder familiar figuram fora do Cadastro Nacional de Adoção, segundo levantamento do Ministério Público (MP). Sem o nome no sistema, essas crianças não existem para os 33 mil candidatos a pais adotivos atualmente no país e são condenadas a crescer nos abrigos.
A falha no cadastro foi detectada no segundo semestre de 2014, quando o MP apontou a não inclusão de 129 crianças e adolescentes no sistema - número equivalente a 10% do total de abrigados em Porto Alegre. À época, a Justiça se comprometeu com a inclusão de todos os nomes apontados até o final de setembro.
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Seis meses depois, uma nova pesquisa do MP mostrou que 40 acolhidos ainda seguem fora do cadastro. Em nota, a Justiça afirmou que desconhece o problema apontado pelo MP e que "os encaminhamentos solicitados em setembro pelo órgão ministerial foram devidamente cumpridos".
Ainda em nota, o Judiciário informou que não recebeu nenhum requerimento do MP pedindo providências sobre esses nomes, mas que a Corregedoria-Geral da Justiça abriu um expediente para apurar "se há e quais são as crianças e adolescentes que estariam fora do cadastro". O órgão também acrescentou que, desde a implantação do cadastro, "realiza cursos aos servidores e atualiza os magistrados sobre a matéria", sendo constante a cobrança para o uso efetivo do sistema.
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A situação relatada pelo MP é tratada como descaso com as crianças por Maria Rosi Marx Prigol, presidente do Instituto Amigos de Lucas, organização de apoio à adoção em Porto Alegre.
- Quanto maior a demora na atualização do cadastro, menos chances essas crianças têm de conseguirem pais adotivos, já que a preferência é por crianças pequenas - argumenta.
Mesmo assim, 35% dos candidatos a pais habilitados atualmente no Cadastro Nacional de Adoção aceitam filhos com mais de quatro anos, o que reforça a necessidade de inclusão de todos os nomes, conforme Maria Rosi.
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No ano passado, a Corregedoria-Geral da Justiça afirmou que a falha no cadastro aconteceu devido a "um entendimento pelo não cadastramento" da equipe técnica da época, anterior à lei que inseriu a obrigatoriedade do cadastramento, em 2009. A justificativa era de que havia "casos de situações de crianças com faixa etária fora do perfil desejado ou com graves problemas de saúde".
- Todos os destituídos do poder familiar têm o direito de estarem no cadastro de adoção, independentemente da idade ou da condição de saúde. Não cabe ao Judiciário decidir se os pais vão querer adotar ou não, os nomes têm de estar lá para serem consultados - reclama Rosi.
A vice-presidente do Instituto Brasileiro de Direito de Família (IBDFam), Maria Berenice Dias, denuncia ainda que a demora pela atualização do cadastro não atinge apenas as crianças, mas também os candidatos a pais.
- Tenho clientes que estão há dois anos esperando pela habilitação para a adoção, enquanto as crianças ficam lá nos abrigos, escondidas - lamenta.
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Em 2014, apenas 40 crianças foram adotadas em Porto Alegre, conforme o MP. O número representa 16% das crianças incluídas no cadastro na Capital.
- Quando o cadastro não é atualizado, as crianças e os candidatos a pais ficam esperando, o que os entristece e desmotiva. Além disso, as condições dos abrigos são péssimas, enquanto esses casais estão ansiosos para oferecer amor e conforto às crianças - conclui Maria Berenice.