Nestes momentos de perplexidade em relação às dimensões do escândalo envolvendo a Petrobras, são poucos os que ousam defender publicamente a privatização da estatal. Mais curioso é que a proposta seja feita pelo maior protagonista de um escândalo de grandes dimensões envolvendo a privatização de outra estatal brasileira, a Telebras. Luiz Carlos Mendonça de Barros, ex-ministro das Comunicações e ex-presidente do Banco Nacional de Desenvolvimento Econômico e Social (BNDES), foi o epicentro do chamado "escândalo dos grampos", que expôs tentativas de direcionar o leilão das teles (leia mais no quadro abaixo).
Hoje, diz estar tranquilo porque foi investigado, julgado e inocentado de qualquer dano ao patrimônio público. Mas confessa que precisou de um tempo para processar o caso nesta entrevista concedida em Porto Alegre no último dia 12, em uma das várias visitas que faz ao Estado como presidente da Foton do Brasil. A empresa investe em uma montadora de caminhões em Guaíba, no terreno que deveria ter recebido a Ford.
Um dos homens fortes do governo de Fernando Henrique Cardoso, apontado como neoliberal, Mendonça de Barros prefere se perfilar economicamente no "cinismo keynesiano". Descubra na entrevista o que ele quer dizer com isso e por que aposta no sucesso do ajuste fiscal liderado pelo ministro da Fazenda, Joaquim Levy.
Por que o senhor é otimista em relação à capacidade de o ministro da Fazenda, Joaquim Levy, fazer o ajuste da economia, enquanto cresce o ceticismo no mercado?
Tenho procurado manter uma análise que foge um pouco do curto prazo. Entendo que o Brasil vive, desde 2011, 2012, o que os economistas chamam de fim de um ciclo de expansão. O capitalismo é feito de ciclos de expansão, seguidos por alguma correção que prepara a economia para o ciclo seguinte de expansão. Quem explicava muito bem isso era o Keynes (John Maynard Keynes, economista britânico associado à defesa de maior participação do Estado na regulação da economia).
O que lhe faz ver o Brasil com certo otimismo?
É uma espécie de cinismo keynesiano. Tivemos um período de crescimento extraordinário entre Fernando Henrique (Cardoso, que governou de 1995 a 2002) e Lula (de 2003 a 2010), quando o Brasil cresce com inclusão social, mercado de trabalho mais formalizado e 100 milhões de brasileiros na classe C. É importante porque, quando o sujeito passa da informalidade à formalidade, muda como cidadão. Esse ciclo, que vai do Plano Real até 2011, esgotou a capacidade de crescimento.
Foi resultado de fim de um ciclo, não de erros no comando da economia?
Estou dizendo o seguinte: uma economia de mercado naturalmente manda sinais quando está chegando o fim de um ciclo. São sinais não muito claros, mas quem conhece, percebe. Esse é o grande erro, o grande pecado da presidente Dilma. No momento em que a economia mandava sinais de que precisava desaquecer - inflação, falta de mão de obra - ela fez o oposto, em vez de facilitar esse desaquecimento. Foi uma combinação de erro de diagnóstico com erro ideológico. Injetou crédito via bancos públicos, aumentou o gasto do governo. Conseguiu, num primeiro momento, que a economia voltasse a crescer, só que agravou a situação. Três anos depois, adota a direção correta, mas a dose de desaquecimento necessária agora é maior.
E o senhor está confiante de que será possível retomar a direção correta?
Lógico que vai, já está acontecendo. Saiu o dado das vendas a varejo de dezembro, caiu mais de 3%. Cada vez que sai isso, dou risada. E não é por masoquismo. O ministro, continuando por mais dois anos o que tem de fazer, coloca a economia numa recessão, mas uma recessão criativa.
O que é uma recessão criativa?
É um estágio natural. É preciso desaquecer para retomar o crescimento.
E o que ocorre com as empresas que quebrarem e as pessoas que perderem o emprego nesse processo?
É o custo. Estamos em um momento de desconforto para todos, mas é uma etapa necessária para que venha um crescimento de prazo mais longo. Já vi gente em quem confio projetando a inflação para 2016 em 5%, 5,1%. Se for verdade, um dos problemas caminha na direção certa. Com o medo do desemprego, está se retirando do trabalhador aquela segurança de que ele não só não perderia o emprego como o salário cresceria acima da inflação. Por isso, poderia se endividar que a vida daria conta.
Por que tem crescido o ceticismo sobre a possibilidade de fazer o aperto econômico?
Há um pressuposto de que o mandato do ministro Levy tem certa perenidade, pelo menos dois anos, e que tudo o que ele tem receitado será cumprido. Isso hoje é questionado porque o governo está com problemas. O Congresso não aceita, nem o PT. Mas é uma questão política. Do ponto de vista econômico, a terapia é a correta, aliás é a única possível.
E qual será o resultado?
Vamos colocar dois anos como o período do desconforto. A melhoria de alguns indicadores vai aparecer antes. A inflação, certamente, no início do próximo ano. O emprego vai piorar, as vendas também, mas você percebe que, talvez no final de 2016, a economia pode voltar a crescer. Não é uma certeza, é uma probabilidade, se o governo seguir a terapia recessiva do Levy. Não por coincidência, esse ciclo econômico que chegou ao fim trouxe como consequência o fim de um ciclo político. O do PT está umbilicalmente ligado ao ciclo de crescimento. Foi o que permitiu distribuição de renda maior. O que incomoda os tucanos, hoje, é que o governo do Lula foi um sucesso, do ponto de vista econômico e social. Todo mundo apoiava o governo porque estava todo mundo se dando bem. O ciclo econômico mudou de sinal, e o PT não percebeu. Mas, ao criar essa classe média nova, mudou o equilíbrio político da sociedade. A nova classe média paga imposto e percebeu que recebe do governo serviço de péssima qualidade.
Quando diz "incomoda os tucanos", refere-se a "nós" ou "eles"?
Evidente que, se tivesse de escolher um partido, seria o PSDB. Mas consigo enxergar as dificuldades. O PSDB tem de fazer terapia e aceitar isso: aconteceu no governo do Lula. Como o Plano Real ficou muito para trás, a sociedade não lembra mais. Também há a surpresa, no PT, de que a classe C não quer mais depender do governo. É outra agenda, mais à direita. O Brasil deixou de ser um país de centro-esquerda. Era assim porque faltava inserção social.
Tarifaços, como os da energia, não podem trazer descontrole de preços?
Não. Essas correções estão ocorrendo porque houve queda artificial de preços. Fazer a correção dos preços relativos no momento em que a demanda é pressionada para baixo evita que se retroalimente. A terapia recessiva será maior porque foi adiada. Se mantido o curso atual por dois anos, a economia brasileira, no começo de 2017, talvez seja um pouco menor do que é hoje, porque vamos ter PIB em queda, mas as tensões econômicas estarão quase normalizadas, o que é condição necessária para começar um outro ciclo de crescimento. Essa é, aparentemente, a lógica da presidente Dilma.
O senhor propõe a privatização da Petrobras?
Vamos ter de fazer a privatização. Não será uma privatização clássica, é um pouco mais sofisticada. É preciso tirar da Petrobras a missão de salvar a economia. Devolver maior controle aos minoritários, ao setor privado, ter quórum qualificado para certas decisões, não deixar o governo decidir sozinho. No caso da Vale (privatizada no governo Fernando Henrique), usamos o mecanismo da golden share (ação especial que a União mantém). O Estado fica com um voto qualificado em determinadas decisões estratégicas.
Há condições políticas para isso?
O escândalo está dando, porque é um absurdo. Não pode um gerente da Petrobras roubar US$ 200 milhões. São mudanças que devem ocorrer num futuro próximo. Em 2018, esse fim de ciclo político vai estar determinado. Quase aconteceu (nas eleições de 2014). E o Brasil vai caminhar para perfil político de centro-direita, o que abre espaço para reformas que a sociedade entende que têm de ser feitas.
Então ministro das Comunicações, Mendonça de Barros acompanha pela TV o leilão de privatização do sistema Telebras, em 1998 (Foto: Divulgação, DB)
E qual será o limite da irresponsabilidade nessa privatização (em 1998, Mendonça de Barros comandava a privatização da Telebras e, em conversa grampeada e tornada pública, ouvia de Ricardo Sérgio de Oliveira, então diretor da área internacional do Banco do Brasil, que aceitar a carta de fiança de um dos candidatos equivalia a agir "no limite da irresponsabilidade")?
Foi uma resposta de um diretor do BB à minha proposta porque queríamos, em cada leilão, ter ao menos dois para concorrer e aumentar o preço. No caso da Telemar, um dos concorrentes tinha cooptado o outro, e transformado o leilão em um lance só. O que fiz era reavivar o outro concorrente, sem saber que havia arranjo de bastidores entre eles. Depois de anos de investigação, com vereditos de que não houve dano, não tenho de justificar mais nada. O limite da irresponsabilidade foi uma gozação bem-feita.
Para resistir ao desgaste, o senhor usava um pouco do que chama de cinismo keynesiano?
Foi muito chato. Uma das coisas que eu mais trago de marca é que minha mãe morreu logo depois, ainda com aquela imagem associada. Mas quando você vai para o governo, para uma ação política, tem de estar preparado para esse tipo de coisa. Não mata ninguém.
É uma sensação de vingança?
É um conforto saber que eles se estreparam. Vejo todo esse pessoal que me abolou muito agora passando por esse constrangimento. Mas isso fica pequeno. O mais importante sobre a Telebras é ver meu jardineiro com seu celular, ou aqui, em Porto Alegre, uma carroça com uma placa escrita toda errada com um número de telefone. E saber que o Brasil hoje tem um dos maiores mercados de telefonia do mundo - privado. Por que não a Petrobras? O setor tem condições particulares, mas você pode protegê-lo com mecanismos inteligentes, como esse de quórum especial. Não se pode deixar a liberdade que a Petrobras tem hoje de gastar o dinheiro. Há bandidos da pior qualidade lá.
Também não haveria bandidos da pior qualidade se candidatando a comprar a Petrobras? Sabendo como foi a privatização da Telebras, imagina que poderia ser um processo legítimo?
Não tenho dúvida. O problema da Telebras é que havia dificuldade técnica muito grande. As 12 empresas privatizadas não tinham passado. Tivemos de vender com dificuldade de projetar o futuro. Teve alto grau especulativo. A privatização da Petrobras terá de ser feita com muita cautela e muita engenharia inteligente. Não é possível manter do jeito em que está.
O senhor não considera a privatização da Petrobras uma hipótese, mas um desdobramento inevitável?
Vai acontecer. E não adianta o PT ter chilique, porque foi ele que provocou isso. Poderia ter feito uma gestão pública da Petrobras com mais competência e menos sacanagem. Não fez, vai pagar o preço. E qual o risco? Vender para quem pagar mais, o que não está certo. A primeira coisa a ser feita é dividir a Petrobras, que está grande demais.
Era a fórmula do Reichstul (Henry Reichstul, presidente da estatal entre 1999 e 2001, que propôs o nome Petrobrax para ter mais apelo diante de investidores internacionais). A privatização da Petrobras chegou mesmo a ser encaminhada no governo Fernando Henrique?
Os tucanos pensaram, mas não tinham coragem. O Fernando Henrique chegou a pedir para mim um projeto, e era esse: um pedaço de um terço do tamanho da Petrobras, e o outro, dois terços. Um terço privatiza 100% e o outro, mantém.
Separaria o que é mais ou menos estratégico, como a rede de postos?
Não, igual. Aí você pode comparar. Quando a privada for fazer uma exploração de petróleo, é possível ver quanto custa lá, quanto custa aqui. Aí, não se consegue fazer a sacanagem. E por que foi feita? Porque não tinha comparação. Se não houvesse as delações premiadas, não iríamos ficar sabendo.
Com advogado, Mendonça (E) comparece ao Ministério Público Federal, em 1998, para depor em inquérito sobre a privatização da Telebras (Foto: Fábio Motta, AE, DB)
Voltando ao caso da Telebras, o senhor renunciou ao ministério por causa do discurso do senador Pedro Simon (PMDB-RS), como se diz?
Não, deram muita importância. E o discurso dele foi muito inteligente. O que ele disse foi sai, porque esse pessoal vai ficar em cima de você enquanto você estiver aí. É quase um discurso de pai, de uma pessoa com mais experiência.
Foi assim que o senhor interpretou o discurso na época?
Na época, não. Mas tomei a decisão de sair quando vi, no Jornal Nacional, diálogos editados meus e do Fernando Henrique. Porque você tem de respeitar a opinião pública dentro do que ela é. Imagina o sujeito, sentado na sala de jantar, e aparece aquele Mendonça, você já usou a bomba atômica? e a resposta Não, presidente, não precisou ainda. Ele vai pensar que era o quê? A maior sacanagem do mundo...
E o que era a bomba atômica?
Era usar pressão sobre a Previ (fundo de pensão dos funcionários do Banco do Brasil) para não abandonar um consórcio (comandado pelo banco Opportunity, de Daniel Dantas). Você tinha dois consórcios, tinha investidores e fundos de pensão em ambos. Esse pessoal da rataiada (expressão usada por Mendonça de Barros para se referir ao consórcio que arrematou a Telemar, comandado pela Andrade Gutierrez, hoje envolvida no escândalo da Petrobras, no qual a empresa nega participação) pensou assim se tiver concorrência, vou ter de pagar um preço mais alto. Na madrugada, pegaram uns fundos que estavam no outro grupo e passaram para o seu, e o outro não teve condições de dar lance. Levaram pelo preço mínimo, US$ 1 bilhão a menos do que poderia ter sido. Também não é pecado mortal, porque esse tipo de conluio é feito diariamente. Nós, eu e o André (Lara Resende, na época presidente do BNDES) nos revoltamos e interviemos. Talvez eu não tenha sido o cínico que deveria ter sido, poderia ter deixado passar. Se tivesse ficado quieto, ninguém saberia. Mas nos revoltou a forma escancarada como foi feito.
E como alguém com sua trajetória se associou aos chineses para abrir uma montadora de caminhões no Rio Grande do Sul?
Como presidente do BNDES, tivemos muita relação com a China, na época em que não era a potência de hoje. Em 2010, a China já tinha crescido bastante, a Foton já era a maior empresa de caminhões do mundo e tomou a decisão estratégica de se tornar internacional. Segundo eles, para isso tinham de estar no Brasil. Veio uma delegação e trouxe meu nome. Começamos a discutir, mostrei os caminhos que poderiam ser trilhados, e me convidaram para ser sócio. Aceitei porque estava meio cansado do mercado financeiro. Sou uma pessoa que se realiza na atividade.
O senhor recebeu cobranças por, sendo tucano, ter gravado um depoimento para o petista Tarso Genro na campanha à reeleição?
Gravei porque o governador Tarso foi um parceiro importante, apoiou em tudo o que foi preciso. Aí tem de separar. Não era o tucano, era o homem de negócios. Depois, com a minha idade e a minha história, não tenho de dar satisfações. Para o Rio Grande do Sul, independentemente de partido, foi uma decisão correta. Já estivemos com o governador novo, que entendeu, não teve melindre. A vantagem de trabalhar com político é essa: é muito pragmático. Mafiosos e políticos são muito pragmáticos.
No ato que marcou o início das obras do complexo da Foton em Guaíba, em 2014, Mendonça (C)cumprimenta o então governador Tarso Genro (Foto: Caco Argemi, Palácio Piratini, Divulgação, DB)