Por trás da missão de "prover soluções em tecnologia da informação e comunicação", a Companhia de Processamento de Dados de Porto Alegre (Procempa) se transformou nos últimos anos em um espaço marcado por suspeitas de abusos que consomem dinheiro público.
As possíveis irregularidades que levaram a um rombo financeiro no uso do plano odontológico da companhia, em 2011, são um dos exemplos de descuido com verba pública. Naquele ano, houve incremento na lista de dependentes, e o gasto somente com procedimentos dentários "extraplano", como implantes, saltou para R$ 1,4 milhão (no ano anterior, o valor fora de R$ 657 mil). Entre os beneficiários, não aparecem apenas dependentes diretos, como filhos.
Há sogras, sogros, sobrinhos, neto e pais de funcionários, de servidores com cargos em comissão (CCs) e até de ex-CCs. A Procempa pagou sem saber se todos esses beneficiários declarados realmente dependiam dos familiares lotados na empresa pública. Não houve investigação para detectar possíveis casos de declaração falsa de dependentes.
Outra rubrica pela qual estariam escoando recursos da companhia sem ligação direta com sua finalidade são os eventos. Servidores costumam chamar a Procempa de "central de eventos da prefeitura". O motivo: ela paga a conta de atividades festivas do Executivo municipal. A empresa diz ter gasto em torno de R$ 400 mil, de 2007 até hoje, e que a parceria com a prefeitura tem base em convênio.
Zero Hora teve acesso aos orçamentos executados da companhia. Só em 2008 e 2009, sob a identificação de "locação de equipamentos multimídia + outros eventos" foram gastos R$ 5,1 milhões. Em 2010, o custo com "eventos e patrocínios de terceiros" foi de R$ 1,1 milhão.
MP entrou com ação judicial
À reportagem, a Procempa se negou a rever os dados informados ou explicar os valores descritos em orçamento. Também não deu resposta sobre um caso em que a empresa contratada para prestar um serviço de R$ 79,9 mil era de propriedade do marido da assessora de projetos sociais da companhia que assinou a autorização do serviço.
A mais recente polêmica envolve o Sistema Integrado de Administração Tributária (Siat), criado para cruzar milhares de dados contidos em arquivos do Executivo, facilitando o cálculo e a arrecadação de tributos. A Promotoria de Defesa do Patrimônio Público ingressou na terça-feira com ação judicial contra o município, a Procempa e duas empresas envolvidas na implantação do sistema.
O histórico de problemas na Procempa levou o prefeito José Fortunati a determinar a abertura de sindicância. As conclusões devem ser anunciadas na primeira semana de junho. Até a quinta-feira, a prefeitura não havia sido notificada da ação do MP.
Gastos odontológicos dobram
Os funcionários ligados à Procempa desfrutam de situação diferenciada em termos de atendimento de saúde e odontológico. Além de terem os dois planos pagos pela companhia, os servidores, diretores e conselheiros ainda gozam de liberalidade para declarar seus dependentes. Basta uma ficha assinada para atestar a dependência.
Essa lacuna teria permitido gastos de R$ 1,4 milhão em procedimentos dentários "extraplano" em 2011 (contra R$ 657 mil no ano anterior). O Executivo não tem plano para seus servidores, que se tratam pelo SUS ou por meio de um convênio com a Associação de Funcionários. Outras duas empresas da administração municipal têm planos: a Carris e a EPTC. A diferença é que nessas duas empresas o benefício para dependentes só é dado mediante comprovação documental.
O gasto da Procempa em 2011 fez soar o alerta de que algo estava errado. A própria presidência da companhia constatou incremento na lista de dependentes e na quantidade de tratamentos "extraplano", ou seja, procedimentos mais complexos e caros, como implantes dentários e colocação de aparelho ortodôntico. Ainda assim, nenhuma apuração interna foi feita para verificar eventuais irregularidades e exigir devolução de valores.
O presidente da empresa, André Kulczynski, justifica que foi impedido de agir por causa de ação judicial do Sindicato dos Profissionais em Processamento de Dados do RS:
- Determinei que fossem feitos contralaudos (para analisar se o serviço prescrito era mesmo necessário) e pedi um recadastramento geral dos dependentes, com comprovação da dependência com base na lei. Mas o sindicato entrou na Justiça pedindo que seguisse valendo o que estava no acordo coletivo, e ganhou.
O sindicato diz que apenas quis manter valendo a previsão do acordo coletivo, mas que jamais foi contra qualquer apuração de responsabilidades.
Empresa financia eventos municipais
Embora exista um convênio de "mútua colaboração" firmado entre a prefeitura de Porto Alegre e a Procempa visando implementar e dar visibilidade a planos de governo, há contratações de serviços por parte da companhia que destoam da finalidade dela, a da tecnologia da informação.
ZH teve acesso a notas de serviços de 2007 e 2008 que indicam que a empresa contratou, por exemplo, empresas para fotografar eventos, fazer sonorização, montar palco, produzir iluminação, instalar banheiros químicos, locar mesas e cadeiras, entre outros serviços.
Em um dos casos, consta uma situação que seria ilegal: o dono de uma empresa contratada para realizar um serviço de R$ 79,9 mil era, na época, marido de uma funcionária da Procempa.
Luciana Manfroi Solassi assinou a autorização do serviço em 2007 como assessora de projetos sociais da Procempa. A empresa que realizou o trabalho tinha como sócio o marido dela. ZH questionou a Procempa sobre a legalidade da contratação, mas não obteve retorno.
Também contatou Luciana, que hoje é coordenadora da assessoria de responsabilidade social da companhia, mas ela disse não recordar do evento e não comentou a contratação da empresa do marido.
Para explicar a requisição de pagamentos de eventos e de serviços pela prefeitura, o presidente da companhia, André Kulczynski, indicado para o cargo pelo PTB, destacou a facilidade que a companhia tem em fazer contratações:
- A prefeitura, como um ente de administração, tem sua complexidade, contratos precisam ser levados para o procurador-geral do município assinar. Essa complexidade muitas vezes inviabiliza qualquer apoio de iniciativas em eventos. A Procempa tem autonomia jurídico-administrativa que permite fazer isso. É essa leveza que a Procempa tem para poder gestar certas coisas dentro da burocracia.
Perguntada sobre o tipo de eventos que repassa para a companhia de dados pagar, a prefeitura não deu detalhes nem valores.
- A Procempa sempre é chamada a participar de eventos municipais ou que tenham relação com as finalidades da empresa ou para prover infraestrutura de informática e afins, sem esquecer que se trata de empresa que disputa mercado e precisa ganhar visibilidade através de patrocínios a eventos - explicou o assessor de comunicação da prefeitura, Flávio Dutra.
Serviço é repassado a consultoria privada
André Kulczynski diz que Procempa poderia desenvolver sistema
A prefeitura da Capital e a Procempa terão de dar explicações na Justiça sobre suspeitas de irregularidades nas contratações para a implantação do Sistema Integrado de Administração Tributária (Siat), ferramenta com custo total de cerca de R$ 10 milhões aos cofres do município. Desde o ano passado, quando foi instalado, o Siat vinha sendo alvo de críticas por parte de servidores que precisam utilizá-lo.
A presidente da Associação dos Agentes Fiscais da Receita Municipal, Eunice da Silva Brochier, atesta que por conta de erros e de falhas do novo sistema, 7 mil processos de IPTU deixaram de ser lançados nos últimos meses. A Secretaria da Fazenda confirma o dado e problemas em dois módulos do Siat. Dias antes de o Ministério Público Estadual (MP Estadual) entrar com a ação, o presidente da Procempa, André Kulczynski, dissera a ZH que o problema envolvendo o sistema era "ranço" de funcionários resistentes a mudanças.
O MP Estadual entende que não. Para as promotoras que assinam a ação, o Siat poderia ter sido desenvolvido pela própria Procempa. Questionada pela Fazenda em 2005 sobre se faria o sistema em 180 dias, a companhia atestou que o prazo era inexequível. Foi aberta, então, uma licitação. O processo se arrastou até 2009, quando a empresa Consult Consultoria e Informática Ltda foi contratada a um custo de R$ 5,7 milhões. O prazo para o trabalho, que para a Procempa era de seis meses, para a empresa privada saltou para 24 meses, prorrogáveis por mais 12. O que era uma urgência em 2005, até hoje, oito anos depois, não se resolveu totalmente.
- A Procempa poderia fazer, mas não no tempo que a Fazenda queria - afirma Kulczynski.
Em novembro de 2011, a pedido do Ministério Público de Contas, o Tribunal de Contas do Estado (TCE) suspendeu os pagamentos à Consult por atraso na implantação do sistema e por omissão da prefeitura na aplicação de multas por quebra do contrato. Com o contrato ainda sob análise do TCE, a Procempa fez em fevereiro deste ano uma nova negociação com a Consult e outra empresa a um custo adicional de R$ 5,6 milhões. Desta vez, para fazer a manutenção técnica e a evolução do Siat, consultoria e capacitação de pessoal.
O MP Estadual está pedindo a nulidade dos novos contratos, a devolução de pagamentos já feitos e que o primeiro contrato, o de 2009, que previa o desenvolvimento do sistema, seja concluído pela Consult. Procurada por ZH, a Consult não deu retorno às ligações.
Estão sob investigação do MP possíveis atos de improbidade, danos ao erário e eventual enriquecimento ilícito de administradores públicos ou terceiros envolvidos no negócio.