Em tempos de hambúrguer gourmet e cachorro-quente chique, o coração de jovens, velhos, engravatados, artistas e estudantes com poucos reais no bolso bate mais forte pela simplicidade do bufê e o aconchego da "fast food caseira" servida há 30 anos na Lancheria do Parque.
Localizada bem na frente da Redenção, no Bom Fim, a "Lanchera", como é carinhosamente chamada, é parte da memória afetiva dos porto-alegrenses e virou tema de um curta-metragem que será exibido na TVCOM, neste sábado, às 22h.
Com depoimentos de frequentadores e funcionários, Osvaldo Aranha, 1.086 - Um Dia na Lancheria do Parque, de Guilherme Petry, venceu no Prêmio Histórias Curtas deste ano, projeto da RBS TV que financia e exibe curtas-metragens de realizadores gaúchos desde 2001.
- A ideia era mostrar o mosaico de pessoas que frequenta esse lugar tão querido pela cidade. Foi justamente esse carinho das pessoas pela Lancheria um dos motivos que ajudou a vencer no prêmio - explica Petry, 27 anos.
Guilherme Petry e Neomar
Foto: Tadeu Vilani
Fundada em maio de 1982, por Ivo Salton e Neuro Turatti, a Lancheria resiste a todas as mudanças no bairro e no perfil de frequentadores de bar. Sem televisão, sem ar-condicionado, sem sinal de celular e com um dos poucos bufês de comida caseira servido das 10h às 18h sem interrupções, o restaurante oferece café da manhã, jantar, almoço e também a cerveja antes da noitada. As poucas ocasiões em que a sinfonia das chapas de bife, dos pedidos aos gritos e do roncar dos liquidificadores cheios de fruta foram interrompidas deram-se em finais de Copa do Mundo e também no dia em que o filme foi exibido na TV.
- No dia em que o passou na RBS TV, o Ivo deixou colocarmos dois aparelhos para todo mundo assistir. Foi muito legal: eles orgulhosos do resultado, e a Lancheria lotada de gente de todas as idades - conta o diretor.
Foto: Mauro Vieira
O estabelecimento é um dos marcos que ainda lembram o que foi a Osvaldo Aranha em outras décadas. Foram-se expoentes da vida cultural do bairro, como o Bar do João, o Scaler e o cinema Baltimore. Os punks, músicos e estudantes que ocupavam a rua especialmente nos domingos hoje têm filhos ou até netos, mas o toldo vermelho no número 1.086 permanece e atrai tanto os antigos frequentadores da Osvaldo quanto os recém-chegados à Capital. O segredo? O primeiro cliente, atendido antes mesmo de a Lancheria abrir as portas, tem na ponta da língua:
- Nenhum outro lugar consegue manter ambiente familiar, horário flexível, comida farta, preço bom e uma equipe tão carinhosa e prestativa - resume Dan Levi, comerciante de 80 anos que não fica um dia sem o café e as brincadeiras dos "guris" de boné e jaleco branco.
Seu Levi, como é chamado pela equipe da Lancheria, veio da cidade turca de Izmir para o Brasil em 1956 e se instalou em Porto Alegre. Ele passava pela Osvaldo quando viu o novo estabelecimento e resolveu entrar:
- Não estava nem pronto, mas, como era do lado da minha loja e, na Turquia, a gente tem uma crença de que se a primeira venda é boa, dá sorte, eu insisti. Venho aqui até hoje - conta, abrindo um sorriso.
Patrimônio afetivo
Um problema com a documentação fez com que a Lancheria do Parque se estabelecesse na Osvaldo Aranha. Incialmente, o local pensado por Ivo Salton para abrir o bar e restaurante ficava na Rua Augusto Pestana, no bairro Bom Fim - o que poderia ter mudado completamente o perfil do estabelecimento.
- Estava tudo certo para comprar, mas não funcionou. Então, o Neuro (Turatti, que morreu em fevereiro deste ano) viu o ponto para vender e disse: "É aqui! Bem perto do parque, no meio de tudo" - conta Ivo Salton, 60 anos, chamado de "sócio presidente" pelos colegas.
Salton e Turatti trouxeram parentes e amigos de Encantado e iniciaram o negócio que acabou virando point.
- Meu irmão gostava de noite, de festa. Por isso, ele quis abrir aqui no meio do fervo que era a Osvaldo Aranha nos anos 1980. A gente começou mesmo como bar de trago. E foi gradativamente virando mais restaurante e lancheria - explica Neomar Turatti, 47 anos.
Foto: Mauro Vieira
O horário expandido, das 6h à 1h30min - especialmente nos anos 1980 e 1990, quando a vida cultural da Osvaldo era uma das mais pulsantes da cidade -, ajudou a diversificar o público. A Lancheria atraía tanto quem estava indo quanto quem estava voltando da noite ou do trabalho e passou a servir como segunda casa para muitos moradores do bairro.
- Tem um cliente nosso que, quando foi comprar apartamento, disse: "Só pode ser duas quadras antes ou depois da Lancheria. Eu não tenho geladeira e quero continuar assim" - brinca Mauri Fachini, 43 anos, 21 passados no número 1.086 da Osvaldo Aranha.
Os funcionários do bar acompanharam também o desenvolvimento de muitas das bandas da cena do rock gaúcho.
- Para falar de uma, vou deixar muitas de fora, e eles vão ficar tristes, porque são todos nossos amigos. Mas a Cachorro Grande, a Bidê ou Balde, a Comunidade Nin-Jitsu e mais um monte de gente são frequentadores - enumera Fachini.
Divulgado no boca a boca, o estabelecimento virou ponto turístico depois da exibição do curta na TV:
- Chego a ficar nervoso! Dia desses, veio uma caravana do Interior que queria conhecer a "Lancheria". Acredita? Agora, fica o compromisso de atender todo mundo melhor ainda - conta Ivo.
Dan Levi, 80 anos
Foto: Mauro Vieira
O Bom Fim vai mudar, velhos prédios vão desaparecer, os frequentadores levarão os filhos, mas, se depender de quem trabalha na Lancheria, vai tudo continuar como está, mesmo que mude:
- Seu Levi, nosso primeiro cliente, vai ter que sair aqui do lado. Venderam o prédio onde ele tem loja. Está todo mundo triste, mas a gente sabe que ele vai continuar vindo aqui, né? - pergunta Fachini ao senhor de 80 anos que está sempre com um cafezinho na mão.
- Claro! Não consigo ficar longe. Me sinto órfão nos poucos dias do ano em que a Lancheria fecha - responde Levi.