Mestre italiano que influenciou o cenário da arte moderna brasileira nos anos 1950, Giorgio Morandi (1890 - 1964) tem sua obra apresentada em uma retrospectiva na Fundação Iberê Camargo. Com abertura na quinta-feira e visitação a partir de sexta, Giorgio Morandi no Brasil conta com acervo do Museo Morandi, sediado em Bolonha, cidade onde o pintor e gravador passou toda a vida. Estarão em exposição as obras pelas quais o artista é reconhecido como singular e influente: as naturezas-mortas compostas por objetos como vasos, jarras, vasilhas e garrafas.
As curadoras Alessia Masi e Lorenza Selleri se dedicaram a buscar trabalhos incluídos nas três Bienais de São Paulo de que Morandi participou, além de outros que o próprio artista não conseguiu apresentar no Brasil.
Sete pontos importantes sobre a obra de Morandi:
O artista e a tradição
Pintor e gravador, Morandi é reconhecido como um dos principais representantes da arte moderna na Itália. Em termos históricos, deu sequência a uma longeva tradição artística iniciada no renascimento, com Giotto, Botticelli, Da Vinci, Rafael, Michelangelo e Ticiano, e seguida pelo maneirismo e pelo barroco, com destaque para o italiano Caravaggio, um dos pioneiros das naturezas-mortas.
Oportunidade única
A exposição Giorgio Morandi no Brasil será apresentada somente na Fundação Iberê Camargo, em Porto Alegre, até fevereiro. O projeto é uma parceria com o Museo Morandi, em Bolonha, no norte da Itália. Além de obras que fazem parte do acervo da instituição italiana, a mostra inclui trabalhos emprestados por acervos públicos e colecionadores particulares _ e, por isso, raramente vistos.
Carreira em perspectiva
Organizada em forma cronológica, a exposição busca apresentar o percurso de Morandi, de forma a revelar as mudanças e o desenvolvimento na obra do artista. As 40 pinturas e 15 gravuras contemplam desde o começo da carreira, na década de 1910, até os últimos trabalhos, nos anos 1960. Também será exibido o documentário La Polvere di Morandi, de Mario Chemello.
Reencontro com o país
Morandi participou da primeira Bienal de São Paulo, em 1951, e de outras duas. Em 1953, ganhou o prêmio de gravura. E, em 1957, venceu o grande prêmio de pintura e teve uma sala dedicada a ele. A mostra reúne obras que Morandi expôs nas Bienais e outras que o artista selecionou para 1957, mas não conseguiu apresentar.
Naturezas-mortas
Em gravuras e pinturas, a exposição destaca as naturezas-mortas pelas quais Morandi é reconhecido. A insistência na temática revela a busca por soluções modernas para questões de luz, cor e profundidade, reduzindo a escala de cores e superando a herança da perspectiva renascentista.
Trajetória solitária
Nascido em Bolonha, de onde pouco saiu, Morandi foi professor de gravura. Chegou a flertar com movimentos como o futurismo e a pintura metafísica, mas se voltou a uma trajetória solitária. Nesse isolamento, deu origem a uma obra individual e existencial.
Ambiente criativo
No estúdio, que também era seu quarto, Morandi criou uma obra considerada silenciosa e subjetiva. Com fotos em tamanho real, a mostra reconstitui o universo do artista nos anos em que produziu suas principais obras.
A influência do italiano é percebida em obras de brasileiros como Iberê Camargo
As 55 obras de Giorgio Morandi no Brasil serão apresentadas nos dois últimos andares da Fundação Iberê Camargo. No primeiro nível, a exposição O "Outro" na Pintura de Iberê Camargo permitirá verificar a influência morandiana a partir de semelhanças formais entre as naturezas-mortas de ambos os artistas.
Em cartaz desde junho, a mostra que apresenta um diálogo estético de uma fase de Iberê com a obra de Morandi foi prorrogada até março especialmente para oferecer a oportunidade de o público perceber aproximações e afastamentos.
A influência de Morandi sobre os artistas brasileiros se deu concretamente a partir das três Bienais de São Paulo, que apresentaram suas obras entre 1951 e 1957. Em uma época em que existiam poucos museus e eventos artísticos no país, a Bienal trazia os ares da modernidade europeia e americana, exercendo grande influência no cenário brasileiro. Milton Dacosta, Maria Leontina, Alfredo Volpi e Mira Schendel são alguns dos artistas que trabalharam com temas semelhantes aos de Morandi. Mas é em Iberê que se encontram as maiores relações.
O artista gaúcho conheceu a obra de Morandi no fim dos anos 1940, durante a temporada de estudos na Europa. Após voltar ao Brasil, Iberê teve uma hérnia de disco que o levou a usar um colete. Com recomendação médica para se resguardar, voltou-se a produzir na intimidade de seu ateliê, dando origem, a partir da metade dos anos 1950, a séries de naturezas-mortas em gravura e pintura. A exemplo de Morandi, que atualizou o gênero, Iberê passou a compor cenários, usando garrafas, bules e frutas.
- Por volta de 1956, Iberê já goza de prestígio como gravador. É quando, em quatro naturezas-mortas, submete alguns poucos objetos e frutas à extraordinária geometrização. Essas gravuras em água-forte formam um conjunto que sugere aproximações com as naturezas-mortas de Morandi - diz Maria Alice Milliet, curadora de O "Outro" na Pintura de Iberê Camargo.
Se o tema e o estudo da composição arquitetônica e dos volumes o aproximavam do italiano, o tratamento dado à luz e às cores o distanciava.
- Tenho certeza de que Iberê apreciava o trabalho de Morandi, mas a distância entre os dois é bastante evidente - comenta a curadora italiana Alessia Masi. - Iberê manteve uma distância do mestre italiano no uso da cor, a qual é tonal e suave em Morandi, enquanto é mais forte em Iberê.
O posicionamento artístico também relaciona Iberê e Morandi. Os dois artistas tiveram carreiras solitárias, à parte dos grupos de vanguarda e dos manifestos modernistas do século 20. A atuação social de ambos se restringia ao ensino da pintura e da gravura. Voltados a uma atitude individual, criaram obras marcadas pela experiência existencial do estar no mundo. São, por isso, autores de produções melhor iluminadas pelas suas próprias biografias.
Morandi raramente saía de Bolonha e nunca teria ido à França. Iberê nasceu em Restinga Seca e só se sentiu de fato um artista após conhecer os museus da Europa e ter estudado com mestres como De Chirico, na Itália, e André Lhote, na França. Em seus processos pessoais, mantiveram-se neutros em uma espécie de terceira via. Morandi e Iberê trabalhavam com figuração, mas não seguiam a conotação ideológica e os conteúdos sociais - afastando-se do tom do modernismo brasileiro imprimido por nomes como Di Cavalcanti e Candido Portinari. E por estarem atentos aos aspectos construtivos e geométricos, Morandi e Iberê eram zona pacífica diante do programa artístico (e combativo) dos abstratos concretistas.
- Assim como Iberê, Morandi nunca pertenceu a nenhum movimento vanguardista do século 20. Apesar disso, acompanhou as tendências da arte moderna europeia. Ele pintou composições explicitamente cubistas, aproximou-se do movimento futurista e foi provavelmente o mais sutil entre os personagens da pintura metafísica. Quando começou sua própria investigação, utilizando técnicas como pintura em óleo, gravura, aquarela e desenho, desenvolveu um vocabulário artístico de simplificação refinada - finaliza Alessia.
Entre clássicos e modernos
Confira entrevista com Alessia Masi, curadora:
Zero Hora - Qual a abordagem desta mostra em relação a Morandi?
Alessia Masi - Estamos diante de um grande artista, que foi capaz de unir a tradição clássica com o espírito da arte moderna, propondo uma arte fora de um tempo e ou de limites geográficos. Esperamos que as pessoas vejam suas obras com novos olhos, atraindo-se pelo seu ponto de vista da percepção da realidade, entendendo o quão importante era sua arte para outros artistas.
ZH - Qual foi o ponto de partida para a seleção?
Alessia - Uma tentativa de propor uma exposição do passado em sua totalidade é muito árdua e quase impossível, mas pode ser um ponto de partida útil para procurar obras que nos mostram um Morandi que continua a solicitar o nosso olhar. A maioria das obras vem do acervo do Museo Morandi. Mas também foram envolvidos vários colecionadores particulares e importantes museus italianos. Começamos pelas pinturas que Morandi escolheu pessoalmente para a 4ª Bienal de São Paulo, de 1957. Um aspecto importante é que quatro delas, que não foram emprestadas na época pelos colecionadores privados por razões diversas, estarão em exposição. Quanto às gravuras, 15 foram selecionadas entre as que estiveram presentes na 2ª Bienal de São Paulo, em 1953, a fim de testemunhar a importância e o valor de sua obra gráfica.
ZH - A senhora poderia comentar a importância do espaço do ateliê na obra morandiana?
Alessia - O estúdio era a casa de Morandi. Viveu e trabalhou em uma sala de tamanho médio, com uma janela com vista para um pequeno quintal, assunto de várias de suas pinturas. Nessa sala, havia também sua cama, uma escrivaninha antiga, uma mesa de desenho, o cavalete e, ao redor, prateleiras estreitas e o acervo de objetos simples que vemos em suas naturezas-mortas: garrafas, recipientes, vasos, jarros, utensílios de cozinha, caixas. Nesse estúdio-quarto, o artista passou os dias de sua vida, e a ninguém era permitido entrar, nem a suas amadas irmãs. Era o lugar onde ele pensava, trabalhava e descansava. Ali, Morandi selecionava e escolhia os modelos para suas composições precisas, movendo os objetos com precisão, medindo as proporções corretas entre luz, cor e espaço.
ZH - É possível identificar o aspecto arquitetônico e o rigor moral na conduta artística de Morandi?
Alessia - Para Morandi, os objetos usados eram apenas pretextos formais para estudar os aspectos geométricos da composição, a fim de pensar sobre formas e soluções de espaço, luz e cor. Ele foi fortemente interessado na repetição de formas e no estudo das variações, como um modo de explorar novas possibilidades de expressão e simbolismo. Morandi tinha um método quase ritualístico: ele colocava vários objetos na mesa em seu estúdio e trabalhava com cada um deles até que se desse por satisfeito com as suas posições. Ele, então, marcava os objetos a lápis no papel. Ele fazia o mesmo com seus próprios pés no chão, de modo que ele seria capaz de achar novamente "o ponto de vista único". É esta relação íntima, silenciosa e misteriosa que Morandi estabelece com suas garrafas e seus vasos, que revela e propõe sua visão de mundo, sua interpretação subjetiva e reconstrução da realidade visual ligada a sua própria visão interior, um modo de intenção de prática artística com o mesmo rigor moral que ele viveu.