O dia ainda está amanhecendo, e a poeirenta estrada de chão batido que liga Três Coroas a Canela, na serra gaúcha, já está coalhada de centenas de ônibus e mais de mil carros.
Placas mostram gente vinda de lugares como Itaara, São Pedro do Sul (RS), Curitiba, Cascavel (PR). Os veículos buscam vaga, numa procissão ruidosa. Os passageiros querem mais, muito mais. Querem sorver as palavras do goiano João Teixeira de Faria, o João de Deus, que aparece apenas três vezes por ano no Rio Grande do Sul. Desejam cura para seus males.
Em três dias, João de Deus, 68 anos, atende milhares (12 mil, nos cálculos dos seus discípulos). A alguns, dá passes. Outros recebem cirurgias espirituais — invisíveis, mas nas quais os pacientes acreditam piamente. A uns poucos escolhidos, o médium opera fisicamente. Usa instrumentos toscos e técnicas que não estão nos compêndios de Medicina.
Quem é João? Ex-alfaiate radicado em Abadiânia (GO), afirma incorporar espíritos desde que tinha nove anos, quando previu a destruição de 65 casas numa enchente. Não parou mais de fazer previsões. Delas, passou para passes, cirurgias, conversas por escrito com gente que já morreu. Atende anônimos e famosos — estes últimos devotam a ele cartas de recomendação, guardadas com carinho num caderno mostrado a visitantes.
São políticos, industriais, delegados, como o ex-secretário da Segurança Pública José Francisco Mallmann. Gente importante, capaz de tirar João da cadeia, caso ele venha a ser preso por exercício ilegal da Medicina, como aconteceu algumas vezes.
A luta contra a paralisia
João age como se fosse um novo Zé Arigó, o mais famoso dos curandeiros brasileiros, mineiro morto em acidente de carro em 1971. Arigó, como não poderia deixar de ser, é uma de suas inspirações. Mas não só ele. O pai de todos os médiuns, Chico Xavier, está presente em gravuras espalhadas por toda a Casa Dom Inácio de Loyola — nome do templo espírita gaúcho onde João de Deus despeja suas bênçãos aos romeiros do sul do Brasil.
Chico não aparece apenas em pinturas, mas em fotos, sorridente, ao lado de João. É como uma credencial, exibida pelo mais novo médium-fenômeno brasileiro, a afiançar a todos que o procuram: não, não sou um charlatão.
Com a mesma velocidade com que conquista adeptos, João de Deus coleciona polêmicas. A Polícia Civil de Goiás registra dois inquéritos sobre venda de minério (provavelmente, água mineral extraída sem licença), ocorrência de ameaça e um suposto assédio contra uma paciente.
Lógico que essas questões passam longe dos milhares que o procuram no sítio, em Canela. Eles vão para ver algo em que já acreditam. Alguns estão de retorno, para agradecer graças que atribuem a João.
É o caso do curitibano Gláucio Santos, 37 anos. Ele trouxe ano passado o filho Gabriel, quatro anos, que sofre de leucodistrofia, uma doença que leva à paralisia gradual dos músculos. Ela fica no colo da mãe, na impossibilidade de andar. Até engolir a criança não conseguia mais. Após a consulta com o médium e litros de água fluidificada, Gláucio garante que o filho voltou a deglutir, inclusive papinhas.
O radialista Luiz Carlos Nunes, 68 anos, de Novo Hamburgo, pega o microfone para relatar que estava desenganado pelos médicos. Em 2000, teve câncer no cérebro detectado. Dia 17 de outubro daquele ano, procurou o médium João de Deus.
— Ele retirou meu tumor, passei aquele ano me tratando e estou aqui, de cara lisa — discursa.
E os relatos se sucedem. O palco serve de templo para o batizado de João Eduardo Inácio Torres de Lima, nascido em 24 de julho. A mãe dele, Gisiele dos Reis Torres, jura que os médicos a tinham dito: tu és estéril, não vais engravidar. Ela procurou o médium e o bebê nasceu no mesmo dia do aniversário de João de Deus. Prova de que a medicina estava equivocada, comemora Gisiele.
A exemplo da moderna cartilha do politicamente correto, no oásis espiritualista de João de Deus, cadeirantes são prioridade. Encabeçam as filas de atendimento pelo médium.
Mulher segue sem enxergar
Maria Cecília Paiva Silva, 50 anos, veio de Porto Alegre porque está numa cadeira de rodas - cima do peso, com uma prótese de metal num joelho, tem dificuldades para se mover. Kardecista, admiradora de Chico Xavier, não tem dúvidas de que voltará a andar. Se não hoje, após uma série de consultas.
Nem que tenha de ir a Abadiânia, onde João de Deus dá consultas mediúnicas três vezes por semana. Trouxe junto a filha Andréa, disléxica, para ver "se consegue entender melhor as letras".
Maria Vanderlei, 70 anos, é um caso bem mais grave. Em decorrência da diabetes, está cega dos dois olhos. Enxerga apenas vultos. A doença forçou a amputação de parte do pé direito.
— Uma irmã, Doroty, está fazendo tratamento espiritual contra o câncer no sangue. Vou tentar também — explica a porto-alegrense Maria.
ZH aguarda Maria Vanderlei sair da consulta. Após umas duas horas de espera, ela retorna, conduzida pela filha. Tomou passe, fez cirurgia espiritual. Nada mudou, continua sem enxergar, relata, um pouco decepcionada. Mas logo dispara para a farmácia da Casa Dom Inácio de Loyola (sim, uma pequena farmácia vende ali produtos fitoterápicos).
Tem pressa em seguir a receita rabiscada de forma ilegível por João de Deus - fica depois sabendo que a recomendação é água fluidificada. Apesar da dúvida, mantém a esperança. Afinal, onde a medicina falhou, resta esperar um milagre.
Uma cirurgia sem anestesia
A tarde avançava quando João de Deus -para delírio dos fãs -entrou no palco em Canela. Pegou o microfone, liderou um Pai-Nosso e chamou os mais doentes para chegar mais à frente. Em seguida, colocou a mão direita sobre os olhos, respirou fundo e passou a falar com sotaque mineiro. Chamou uma mulher, que chegou amparada, olhos fechados.
João se aproximou por trás, afastou a gola da blusa da mulher e mexeu numa vértebra dela. Quem estava próximo notou que o sangue começou a brotar das costas da paciente, numa ferida. O médium mexeu no corte, depois tapou com gaze e reposicionou a blusa.
Por último, abriu um estojo metálico recheado de instrumentos cirúrgicos. Para arrepio dos espectadores, escolheu uma faca de cozinha. Ninguém mexia um músculo, o silêncio era cortante.
João puxou a cabeça da mulher para trás e, com destreza, enfiou a faca dentro do olho direito dela. Revirou, raspou. Depois enfiou dois dedos (indicador e polegar) no mesmo olho e retirou algo viscoso, que jogou numa bacia. Tapou o olho com gaze e encerrou a cirurgia. A paciente foi levada, em cadeira de rodas, para a enfermaria do centro espiritual.
Um médico assistiu à toda a operação e foi chamado por João para conferir o ferimento. É o pediatra Jair Haubrich, que chegou a iluminar com uma lanterna o olho da paciente. Nem ele mesmo sabe explicar o que assistiu.
— Só posso dizer uma coisa: sem anestesia, nenhum ser humano suportaria a dor causada pela faca e pelos dedos — assegura Haubrich, que considera fora do normal o que o médium faz.
ZH esperou quatro horas junto à porta da enfermaria até a paciente acordar. Ela se chama Helena de Castro, é comerciaria e vive em Tramandaí. Tem 58 anos e diz que é a segunda cirurgia feita com João. A primeira foi numa vértebra próxima ao pescoço, em razão de dores nas costas. Teve alívio. O corte aberto nessa tarde é sequência da operação inicial.
A segunda cirurgia foi no olho direito, "que estava perdendo a visão". Tudo sem anestesia. A parte branca do globo ocular está ligeiramente avermelhada, pálpebra inchada. E só. Nenhum sinal de corte, nem de machucado.
— Não senti nada, não sinto nada agora. Estou enxergando melhor — assegura.