Público ou privado, o sistema de saúde do país está doente. O suplício de não encontrar um médico ou leito para internação deixou de ser uma lamúria restrita à população carente, usuária dos SUS. Com o avanço da renda na década, quase 16 milhões de brasileiros passaram a contar com um plano de saúde.
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A garantia de atendimento célere, entretanto, virou ilusão. Enquanto o número de clientes das operadoras aumentou 45%, a oferta de médicos pelas empresas não acompanhou a expansão e a estrutura de saúde. Na contramão, minguou. Pelo lado das entidades da categoria, há relatos até de descredenciamentos de médicos devido a queixas na remuneração dos planos - que seguem reajustados para os segurados, enquanto a qualidade do serviço cai.
- Em 10 anos, as mensalidades aumentaram 160% e os honorários, 50%. Há uma grande defasagem - reclama Márcio Bichara, secretário de saúde suplementar da Federação Nacional dos Médicos (Fenam).
Na saúde pública, repete-se o clamor por médicos e estrutura. Mas a raiz do problema não está na falta de profissionais, diagnóstico comum tanto das corporações médicas quanto de governos. Sustentam que apenas estão mal distribuídos, concentrados em grandes centros e ausentes no Interior e nas periferias - assim como a estrutura que permitiria um atendimento mais digno e rápido. Também admitem que há falta de vagas hospitalares e que o número tende a diminuir. Mas discordam em quase tudo no que se refere a soluções.
Os médicos tendem a defender melhores salários e a obrigação dos jovens concursados de irem ao Interior. Já o governo quer importar profissionais.
- Vários países importam médicos, qual o problema? É uma questão de oferta e procura. Mas as entidades de classe médicas são corporativas, querem apenas valorizar os ganhos dos seus representados, esquecendo que a saúde é um bem de todos - alfineta o diretor de Assistência Hospitalar e Ambulatorial da Secretaria Estadual de Saúde, Marcos Lobato, também médico.
Os governos entendem que a saúde básica deve ser reforçada, ao mesmo tempo em que os hospitais deveriam se especializar. Já a maioria das entidades de classe propugna aumento dos valores para internações, como forma de garantir a sustentação dos hospitais. E compra de aparelhos.
- Caneta e estetoscópio não significam atendimento. Qual médico gosta de trabalhar sem aparelhos, sem condições, tendo de fazer o paciente esperar meses? - diz Lobato.
SERVIÇO PRIVADO
PROFISSIONAIS
- DIAGNÓSTICO
Apesar de o usuário pagar pelo serviço, faltam médicos, segundo o Conselho Federal de Medicina (CFM). A entidade calcula que existem 170 mil médicos no país que atendem planos. O número é considerado insuficiente para suportar o crescimento de clientes. De dezembro de 2003 a dezembro passado, o número de usuários, segundo a Agência Nacional de Saúde Suplementar (ANS), passou de 33 milhões para 47,9 milhões. Uma alta de 45%, fruto da melhoria da renda e da tentativa de parte da população de fugir do SUS. Segundo Isaias Levy, do conselho nacional de saúde suplementar do CFM, no mesmo período o número de médicos que atendem por planos de saúde "não cresceu a metade disso". E há ainda uma busca por descredenciamento devido aos valores pagos pelas operadoras, que os médicos consideram baixos. Conforme o CFM, em média os planos pagam para os médicos até R$ 50, a tabela considerada referência pelos médicos indica R$ 81.
- RECEITA
Na avaliação do CFM, as operadoras deveriam elevar o número de médicos credenciados. Para a entidade, deveriam ser acrescidos no mínimo mais 30 mil profissionais ao quadro para chegar à marca de 200 mil. Para isso, no entanto, a entidade entende que deveria haver melhor remuneração, chegando aos valores estabelecidos pela Classificação Brasileira Hierarquizada de Procedimentos Médicos (CBHPM), considerado um parâmetro de honorários condizente com uma remuneração equilibrada ante o ofício e o custo de manutenção dos consultórios. Segundo o CFM, mais de 90% das operadoras não seguem a CBHPM. Outro ponto que traz contrariedade aos profissionais seria a tentativa de interferência das operadoras na autonomia dos médicos. Conforme as entidades de classe, os planos teriam de parar de pressionar para limitar o número de pedidos de exames, procedimentos e internações.
ESTRUTURA
- DIAGNÓSTICO
Enquanto o número de médicos não cresceu no mesmo ritmo da quantidade de usuários, na questão da estrutura o quadro ainda é pior devido ao fechamento de hospitais e à diminuição de leitos. Citando dados da ANS, o Conselho de Medicina demonstra que, em setembro de 2009, existiam no Brasil cerca de 144 mil leitos para planos de saúde. Em setembro de 2012, o número caiu para 127 mil. Ou seja, em três anos, 14 mil leitos deixaram de ser oferecidos, o equivalente a uma queda de 12%.
Enquanto isso, o número de usuários que adquiriam o seu plano de saúde aumentou em 5,5 milhões de pessoas, chegando a 47,9 milhões de usuários - quase um quinto da população brasileira.
Com maior demanda e menos estrutura para atendimento, as queixas da população aumentaram na ANS. Ano passado, foram 75,9 mil reclamações, quase quatro vezes mais do que uma década atrás.
- RECEITA
No caso da rede conveniada, a saída seria remunerar melhor por serviços e procedimentos. Com isso, seria possível aumentar o número de locais de atendimento e voltar a elevar o número de leitos disponíveis aos clientes dos planos de saúde.
Outra medida que começou a ser adotada e poderia ser ampliada é a construção, pelas operadoras, de hospitais, clínicas, laboratórios e centros de diagnóstico. Dinheiro parece não faltar para as empresas. Desde 2001 a receita dos planos de saúde cresceu, em média, 14% ao ano.
O faturamento pulou de R$ 22 bilhões para R$ 92 bilhões, em 2012. De 2000 até o ano passado, as mensalidades foram aumentadas em 170%.
O percentual supera com folga a inflação oficial do período - 126%, conforme o Índice de Preços ao Consumidor Amplo (IPCA), indicador utilizado pelo governo federal.
GESTÃO
- DIAGNÓSTICO
Parte da causa do problema que já chega ao atendimento por planos de saúde pode ser creditada à estrutura das empresas, incapaz de atender à demanda crescente dos usuários, avalia Libânia alvarenga Paes, coordenadora do Curso de Administração Hospitalar e Sistemas de Saúde. Conforme a especialista, os processos internos de autorização de procedimentos e gerenciamento e monitoramento de pagamentos, por exemplo, são muito lentos. Atenta às demoras no atendimento, a ANS suspendeu a comercialização de mais de 500 planos no Brasil. A oferta de recursos humanos qualificados dos mais variáveis níveis para atuar nas companhias do setor também é deficiente, diz Libânia. A aparente folga financeira das empresas nem sempre é verdadeira, afirma. A incorporação de tecnologia no setor, com exames e procedimentos cada vez mais modernos e caros - em número maior - estaria afetando as margens de lucros das empresas. O envelhecimento da população seria outro fator a pressionar os balanços das empresas.
- RECEITA
Para a especialista da FGV, uma melhor qualificação dos recursos humanos ajudaria a melhorar os processos internos das empresas e a celeridade no atendimento dos usuários. Libânia, no entanto, acredita que também passa por médicos e usuários a solução.
Os profissionais, diz, muitas vezes pediriam exames nem sempre necessários ou então mais complexos do que o caso precisaria.
"Há casos em que um ultrassom poderia resolver o problemas, mas o médico pede uma ressonância, que é mais rápida e muito mais cara", diz Libânia.
Para as entidades médicas, a solução também passa por uma fiscalização mais rigorosa da ANS para que as empresas cumpram as cláusulas dos contratos.
SERVIÇO PÚBLICO
PROFISSIONAIS
- DIAGNÓSTICO
l A população acha que faltam médicos. É o que mostra levantamento divulgado em 2011 pelo Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada (Ipea), no qual 58,1% dos entrevistados apontam a falta de médicos como o maior problema do SUS.
Mas a realidade é que o Brasil tem até mais médicos que o mínimo recomendado pela Organização Mundial de Saúde (OMS). Ela estabelece que o padrão mínimo satisfatório é de um médico para cada mil habitantes. Um estudo publicado pelo Conselho Federal de Medicina (CFM) mostra que existem dois médicos por mil habitantes no país, 55% deles no SUS. O problema é que estão mal distribuídos. Levantamento do Conselho Regional de Medicina (Cremers) mostra que 82 dos 496 municípios gaúchos estão na média preconizada pela OMS. E 157 não têm sequer um médico residente na cidade. Já Porto Alegre tem 8,73 médicos por mil habitantes.
- RECEITA
l O presidente do Sindicato Médico-RS (Simers), Paulo de Argollo Mendes, diz que todas as entidades médicas defendem que o médico recém-concursado seja obrigado a trabalhar nos rincões, antes de escolher seu posto de trabalho. Teria um plano de carreira, como juízes e policiais, e direito a mudar de cidade com o tempo. Ele é contra a importação de médicos e a favor de pagarem mais aos nacionais. Já o diretor de Assistência Hospitalar e Ambulatorial da Secretaria Estadual de Saúde, Marcos Lobato, diz que o Brasil deveria ter até mais médicos, superando o critério da OMS. "Padrão europeu, até porque nossa população está durando mais, precisa de mais atenção à saúde". E, para isso, ele defende importar médicos e aumentar o número de faculdades de Medicina, especialmente no Interior.
ESTRUTURA
- DIAGNÓSTICO
O número de leitos hospitalares no Brasil sofreu uma redução de 10,5% entre 2005 e 2012, segundo o Conselho Federal de Medicina (CFM). Em levantamento divulgado quinta-feira, o órgão aponta que, em sete anos, houve uma redução de 41.713 leitos hospitalares no SUS. Hoje são 323.157 leitos públicos, além dos 130.082 privados.
Cerca de 2,5 mil leitos do SUS foram fechados no Rio Grande do Sul no período, o que representa 10% dos 25 mil que existiam em 2005. Parte da explicação se deve aos baixos valores das Autorizações de Internação Hospitalar (AIHs) pagas pelo governo, bem menores que os das operadoras de saúde privadas.
Na maioria dos hospitais, especialmente no Interior, há também falta de equipamentos de última geração. Tomógrafos em condições são incomuns, por exemplo. E exames caros não são autorizados.
- RECEITA
O presidente do Sindicato Médico-RS (Simers), Paulo de Argollo Mendes, diz que só com remuneração melhor aos hospitais o brasileiro terá direito a mais internações. Ele lembra que por muito tempo o governo deixou que fechassem leitos, na ideia de que prevenir com saúde é melhor do que tratar doença.
"O problema é que a rede de prevenção não é boa, faltam médicos e equipamentos".
Argollo ressalta que o orçamento federal destina 4,4% para a Saúde e uma emenda, já aprovada pelo Congresso, prevê aumentar para 10% os gastos na área.
O diretor de Assistência Hospitalar e Ambulatorial da Secretaria Estadual de Saúde, Marcos Lobato, concorda que o fechamento de vagas tem de parar. E vem parando, informa. Ele diz que, após queda acentuada, o Estado teve reabertos mais de 500 leitos desde 2012, voltando a níveis de 2009. Ele defende que hospitais regionais sejam referência e concentrem especialidades, poupando recursos e atendimentos genéricos.
GESTÃO
- DIAGNÓSTICO
Nem a mais enfezada das entidades médicas critica a legitimidade do SUS. São raros os países que oferecem serviço universal de saúde, gratuito e de boa qualidade, como o Brasil - esta última, sim, questionada por alguns especialistas. O problema é o quanto se investe nisso. A própria presidente Dilma Rousseff admite que o Brasil investe menos per capita do que países vizinhos.
"Se você olhar, a Argentina investe 42% per capita em saúde mais do que nós, o Chile, 27% mais, e se você olhar o setor privado versus o setor público, o setor privado per capita está investindo duas vezes e meia mais", disse Dilma, no ano passado, ao falar que o setor enfrenta um "problema sério de gestão".
Criado em 1988, o SUS pretendia universalizar o atendimento. O dilema é a lentidão. Usuários enfrentam filas e esperam meses e até anos para conseguir realizar cirurgias não emergenciais. Até por isso, mais de 30% da população paga um valor extra por planos privados de saúde. Sem falar que é um sumidouro de dinheiro.
- RECEITA
Em matéria de dinheiro público, é preciso enrijecer a fiscalização dos gastos. É preciso fortalecer os conselhos de saúde, que exercem tal controle, afirma em um estudo Maria Fátima de Souza, coordenadora do Núcleo de Estudos em Saúde Pública da Universidade de Brasília (UnB).
Num outro flanco, o da prevenção, ZH ouviu especialistas e uma unanimidade na questão de gestão é a necessidade de cortar custos de internação. Isso seria possível com ampliação do programa Saúde da Família. Hoje apenas 60% das famílias brasileiras fazem parte do programa - o ideal seriam 80%. E apenas 5% das equipes têm médico especializado em Saúde Comunitária.