Em março de 2019, quando a Organização Mundial de Saúde (OMS) decretou a pandemia do coronavírus, o planeta virou de pernas para o ar com o avanço dos casos e mortes de covid-19. Um dos segmentos mais afetados pelas restrições sanitárias foi o dos esportes olímpicos. De uma hora para outra, atletas de todas as modalidades tiveram de lidar com o cancelamento de competições, dificuldade de manter a rotina de treinos e as incertezas sobre o futuro dos Jogos de Tóquio.
O adiamento da Olimpíada para 2021 trouxe alívio a competidores dos cinco continentes e possibilitou um ano a mais de preparação para o maior evento esportivo do planeta. Em muitos casos, atletas ganharam mais tempo para se recuperar de lesões que ameaçavam a viagem à capital japonesa. Mas o vácuo no calendário também abalou o ânimo de quem, no auge da carreira, ficou inseguro em preservar a boa forma física e técnica por mais 12 meses.
A mudança de datas do evento, agora programado para começar em 23 de julho e terminar em 8 de agosto — impactou em especial jovens que alimentam o sonho de participar de uma Olimpíada pela primeira vez na carreira.
Desde 2018, a série Missão Tóquio, de GZH, acompanha a preparação de sete atletas — todos nascidos no Rio Grande do Sul e/ou representantes de clubes gaúchos — cotados para estrear nos Jogos deste ano. Um deles, o triplista Almir Júnior, já obteve o índice olímpico e está garantido na delegação brasileira que embarcará em julho para o Japão.
Antes de arrumar as malas, os judocas Daniel Cargnin e Rafael Macedo só aguardam o anúncio oficial da confederação brasileira da modalidade — ambos estão bem posicionados no ranking mundial e dificilmente perderão o lugar na equipe.
Até junho, porém, a nadadora Viviane Jungblut, a fundista Jaqueline Weber e o ginasta Luis Guilherme Porto ainda terão de batalhar por marcas ou apresentar bom desempenho para carimbar o passaporte. Já Saymon Hoffmann, 21 anos, considerado promessa do atletismo, abandonou o esporte e se desligou da Sogipa, clube onde treinava em Porto Alegre. Em contato com a reportagem, o especialista nas provas de lançamento de disco e arremesso de peso preferiu não explicar os motivos de sua decisão.
A seguir, veja como cada atleta se preparou durante a pandemia e o que projetam para os próximos três meses que faltam para a Olimpíada.
Covid tira gaúcha de seletiva da natação
Por meros oito centésimos (em um prova de mais de duas horas de duração), Viviane Jungblut, 24 anos, não conseguiu a classificação para os Jogos de Tóquio ainda em julho de 2019. No Mundial da Coreia do Sul, a nadadora do Grêmio Náutico União fez bonito nas águas de Gwangju, mantendo-se entre as primeiras colocadas durante boa parte dos 10km da maratona aquática, mas nos últimos metros perdeu posições e terminou em 12ª lugar na disputa que qualificou 10 atletas para a Olimpíada. Pelos critérios de qualificação que preveem limitação de participantes por país, como a baiana Ana Marcela Cunha fechou na quinta colocação, a gaúcha ficou sem chances de concorrer às demais 15 vagas, que serão distribuídas em seletiva mundial, numa espécie de repescagem.
- Foi bem frustrante. Foi a melhor prova de maratona aquática que eu fiz, cumpri tudo que havia programado. Fiquei muito chateada por ter sido por tão pouco - diz a nadadora.
Mas o sonho olímpico de Viviane não afundou no mar coreano. Versátil, a atleta lançou mão de seu plano B, as competições de longa distância nas piscinas. Tudo indicava que ela obteria, na próxima quinta-feira (a partir desta segunda-feira até sábado, será realizada a seletiva brasileira da natação, no Parque Aquático Maria Lenk, no Rio de Janeiro), uma das duas vagas do país nos 1.500m, prova que estreia no programa dos Jogos e na qual é recordista brasileira, com a marca de 16min22s48, 10 segundos abaixo do índice olímpico. Também tentaria a qualificação nos 800m, no próximo sábado.
O vírus que já infectou quase 14 milhões de brasileiros, no entanto, tirou a gaúcha de circulação. Na última quarta-feira, a nadadora testou positivo para a covid-19 e terá de permanecer em confinamento em um hotel da Barra da Tijuca durante a competição. Por sorte, Viviane ainda terá mais uma chance de conseguir lugar no Time Brasil. Exclusivamente para atletas impossibilitados de participar da seletiva por contaminação do coronavírus, a Confederação Brasileira de Desportos Aquáticos (CBDA) agendou para 12 de junho a última oportunidade de registro do índice.
Assintomática, Viviane evitou lamentar o infortúnio em conversa com a reportagem. Para ela, o mais importante agora é a saúde.
- Estou focada em voltar aos treinos com 100% das condições físicas, com acompanhamento médico.
A covid é mais um obstáculo a ser superado por Viviane em um período marcado por superações. Ela lembra da ansiedade que a pandemia gerou nos atletas no ano passado, até a confirmação do adiamento da Olimpíada.
- O começo foi bem difícil. De uma hora para outra, o clube teve de fechar as portas. Tive de treinar em casa para manter a forma, fiquei um mês sem colocar os pés na água. Quando Bento Gonçalves liberou os treinos presenciais, fui para lá treinar por duas semanas em uma piscina de 17 metros de uma academia e em outra de 12 metros do hotel onde me hospedei. Só depois consegui treinar em uma piscina de 25 metros, em Cachoeirinha - relata.
Viviane lembra que, ao retomar as atividades na piscina de 50 metros do União, em pleno inverno gaúcho, teve de nadar com traje de borracha porque o sistema de aquecimento do clube estava desativado. Logo, embarcou para Portugal com uma delegação de atletas montada pelo Comitê Olímpico Brasileiro (COB). No segundo semestre, a rotina começou a voltar a algo próximo da normalidade, inclusive com competições. Nas duas provas em que participou, uma delas já de volta ao Brasil, registrou tempos abaixo do índice olímpico nos 1.500m. Se tudo der certo, em junho, Viviane espera repetir esse desempenho e finalmente carimbar a vaga nos Jogos.
Já qualificado para Tóquio, triplista fará lapidação nos EUA
Com a vaga nos Jogos de Tóquio garantida desde junho de 2019, Almir Júnior viaja nos próximos dias para Chula Vista, na Califórnia (EUA), onde permanecerá até o final de maio treinando em um centro de referência de atletismo americano, no estágio final de lapidação em busca de seu grande objetivo de carreira: a medalha olímpica no salto triplo.
Depois de despontar em 2018 na prova que consagrou Adhemar Ferreira da Silva e João do Pulo - até então, era especialista no salto em altura -, com a prata no Mundial indoor de Birmingham, na Inglaterra, o triplista da Sogipa mudou de patamar no mapa esportivo brasileiro: atraiu patrocinadores, passou a receber benefícios do governo como o Bolsa-Pódio e entrou no guarda-chuva do COB, a partir de suporte técnico e custeio de viagens que só atletas de ponta têm acesso.
Quando projetava sua consolidação na elite do atletismo, Almir começou a amargar dissabores como sucessivas lesões e resultados frustrantes. No Pan de Lima e no Mundial de atletismo de Doha, em 2019, passou longe do pódio nas duas competições mais importantes daquela temporada. A maior frustração viria meses depois, com o adiamento da Olimpíada. Após mergulhar nos treinos a fim de aprimorar a técnica do salto e fortalecer musculatura e articulações para suportar os efeitos de uma prova de grande impacto para o corpo, inclusive abrindo mão das folgas e da convivência com a família no Natal e no Ano-Novo, na virada para 2020, o saltador levou um bocado de tempo para assimilar a mudança de datas dos Jogos:
- Estava na melhor fase da minha vida, nunca havia me preparado tão bem. Não sabia se conseguiria atingir de novo o mesmo nível. Fiquei quatro meses sem treinar, totalmente desmotivado. Não conseguia enxergar um objetivo a longo prazo.
Radicado há mais de uma década no Rio Grande do Sul, o mato-grossense de 27 anos foi pouco a pouco recuperando a motivação, em um processo de "busca de autoconhecimento e amadurecimento dentro e fora das pistas", como definiu:
- Aprendi a segurar um pouco a euforia, sou movido a emoção. Aprendi a diminuir o ritmo (de competições) e a fazer escolhas. A cabeça tem sido o meu ponto forte (para superar a ansiedade em tempos de covid).
Com a motivação restabelecida e a aproximação dos Jogos, a confiança do triplista voltou a subir a níveis pré-pandêmicos.
- Não consigo pensar em outra coisa. Estou muito bem preparado outra vez, meus treinamentos têm mostrado isso. Tenho parâmetros para mostrar que posso brigar por medalha. Já estou conseguindo saltar mais de 17 metros com apenas 12 passadas, nunca tinha conseguido isso (o normal seria dar pelo menos 18 a 20 passadas, para atingir maior velocidade) - afirma.
Antes de embarcar para os Estados Unidos, Almir participa neste domingo de uma prova em Bragança Paulista (SP). Será sua primeira competição oficial em mais de um ano.
Judocas ficam entre a empolgação e a "ressaca" olímpica
A fábrica de judocas da Sogipa deverá levar a Tóquio dois estreantes em Olimpíadas: Daniel Cargnin e Rafael Macedo. A dupla, que já foi campeã mundial júnior em suas respectivas categorias, está bem à frente de seus concorrentes domésticos pela única vaga por país em cada faixa de peso. No momento, Cargnin, 23 anos, é o 10º colocado no ranking olímpico dos meio-leves (até 66kg), com mais do que o dobro de pontos em relação a Willian Lima, 30º do mundo e segundo brasileiro mais bem colocado na lista da Federação Internacional de Judô (IJF). Macedo, 26 anos, ocupa a 18ª posição dos meio-pesados, mas abriu uma vantagem ainda mais confortável para seu perseguidor mais próximo no Brasil, Igor Morishigue, que é apenas o 103º do ranking.
Mesmo compartilhando a condição de tranquilidade na corrida olímpica e convivendo no tatame do clube e da seleção, os dois colegas apresentam estados de espírito distintos. Enquanto Macedo está empolgado com a aproximação dos Jogos, Cargnin tenta deixar para trás oscilações de humor e problemas físicos que o acompanham desde o ano passado. Nos últimos meses, já quebrou um costela e teve uma estiramento na coxa direita, lesões que o afastaram de treinos e competições. Agora, convive com as dores de um dedo torcido.
- É esquisito. Na pandemia, parece que o meu corpo passou a sentir mais, antes não me lesionava tanto - afirma.
A cabeça também foi uma preocupação do judoca nesse período de distanciamento social e restrições, tanto que Daniel buscou apoio de um psicólogo.
- No início da pandemia, teve dias em que queria treinar, estava motivado, tinha disciplina. Em outros dias, não conseguia ter a menor vontade de treinar. Era um sentimento de vazio. Parecia que a Olimpíada já tinha acontecido. Ainda sinto isso, chamam de ressaca olímpica. Mas os Jogos não aconteceram ainda - explica.
A conquista da medalha de ouro no Campeonato Pan-Americano de Guadalajara (México), em dezembro, ajudou a melhorar seu ânimo, mas derrotas prematuras em duas competições recentes (Masters de Doha, no Catar, em janeiro, e Grand Slam de Antalya, na Turquia, há duas semanas) lançaram dúvidas ao judoca gaúcho:
- Vi novos atletas surgindo com força, e senti que meu nível caiu na comparação com antes da pandemia.
Já Macedo avalia que as restrições sanitárias prejudicaram principalmente o intercâmbio entre os atletas, acostumados a viajar e fazer campings de treinamentos com representantes de outras escolas do judô. Prata no Pan mexicano em dezembro, o paulista de 26 anos voltou nesta semana a Guadalajara para disputar a edição 2021 do torneio, que distribui pontos importantes no ranking (foi prata novamente nesta sexta-feira).
Assim como Cargnin, o meio-pesado ainda vai disputar o Mundial de Budapeste (Hungria), em junho, mas já faz planos para Tóquio:
- Tive um ano a mais para me preparar, chegar mais forte. Estou bem motivado e confiante. Meu objetivo é melhorar meu ranking e entrar nos Jogos como cabeça de chave.
Meio-fundista corre em busca de pontos no ranking
Uma lesão que já levou ao departamento médico jogadores de futebol como os ex-gremistas Giuliano e Luan praticamente estava enterrando qualquer esperança de Jaqueline Weber de participar dos Jogos de Tóquio. Mas veio a pandemia, e a meio-fundista ganhou tempo de sobra para tratar de vez uma fascite plantar, inflamação da membrana que reveste a musculatura da sola dos pés.
Especialista nos 800m e nos 1.500m, a corredora nascida em Teutônia e radicada em Santa Cruz do Sul lesionou o pé direito justamente num momento especial para a atleta. Pela primeira vez, em maio de 2019, Jaqueline conseguiu competir no circuito europeu. Estava na Espanha, disputando um meeting em Huelva, quando teve de abandonar a prova.
- Foi a lesão mais séria da minha carreira. Fiquei seis meses sem poder treinar, perdi o Troféu Brasil daquele ano. Consultei vários especialistas em Porto Alegre. Só consegui voltar em 2020, mas fascite é uma lesão crônica. Com o adiamento dos Jogos, consegui me recuperar de vez - conta.
A paralisação do calendário esportivo deu mais fôlego à atleta da Associação Medalha de Ouro (AMO), mas não reduziu o desafio de conseguir a vaga para Tóquio. Como dificilmente obterá o índice olímpico em sua prova preferida, os 800m (sua melhor marca é 2min6s14, mais de seis segundos acima do tempo exigido), a aposta da gaúcha é o ranking de pontos, outro critério de qualificação que premia a regularidade dos atletas.
Assim, para estar bem posicionada na lista da World Athletics (antiga Iaaf, a Federação Internacional de Atletismo), à frente de suas concorrentes no país, precisa acumular bons resultados. Em novembro, teve de fazer uma tomada de tempo especial, correndo sozinha na pista de brita da Unisc para conseguir o índice exigido pela organização do Troféu Brasil de 2020, em dezembro. Liderou a corrida por 790 metros, mas perdeu fôlego no final e fechou em terceiro lugar.
O objetivo agora é ficar entre as duas melhores do ranking nacional para disputar o Sul-Americano, em maio, em Buenos Aires. Para isso, os dois próximos domingos serão decisivos. Jaqueline competirá de duas provas em Bragança Paulista (SP) com outras 11 atletas para conseguir a vaga na equipe brasileira que viajará a Argentina, em uma competição que distribuirá pontos valiosos para a corrida olímpica.
Ginasta faz séries simuladas de olho em convocação
A temporada 2019 marcou uma virada importante na carreira de Luis Guilherme Porto. Depois de começar o ano - que até então antecedia ao da Olimpíada - cercado de dúvidas, ainda se recuperando de uma grave lesão no tendão de Aquiles direito, o ginasta do Grêmio Náutico União conseguiu voltar às competições em alto nível, com direito a pódio inédito. Em julho, juntou-se a campeões mundiais e medalhistas olímpicos como Arthur Zanetti e Arthur Nory e conquistou o ouro por equipes nos Jogos Pan-Americanos de Lima.
Da baixa expectativa de conseguir um espaço na seleção que representará o Brasil em Tóquio, o gaúcho de 23 anos hoje não esconde a inquietação com a possibilidade de ser chamado para preencher uma das quatro vagas da equipe.
- Estou muito ansioso. Quero que a confederação divulgue logo a lista. Estou na expectativa da convocação.
A concorrência é forte. Os dois Arthurs, claro, são referências da ginástica artística brasileira e dificilmente ficarão de fora dos Jogos. Para ter mais chance de ser lembrado, o ginasta precisa dominar o maior número possível de aparelhos. Generalistas, por isso, são mais cotados. Porto enxergou na paralisação do calendário a possibilidade de se credenciar nessa disputa. Como eventos da modalidade foram cancelados, nos últimos 13 meses restou aos ginastas treinar, treinar e treinar. O especialista no salto e no solo aproveitou para aprimorar a técnica nos outros quatro aparelhos do programa das competições masculinas: argolas, cavalo com alça, barra fixa e barras paralelas. No período em que os clubes estavam fechados e os atletas só podiam treinar em casa, por exemplo, Porto até levou para casa uma cavalo com alça.
- Vejo que hoje estou melhor tecnicamente do que antes da pandemia. Treinei mais exercícios novos, com notas de partida mais altas - afirma.
Enquanto as competições não são retomadas, os ginastas brasileiros vêm sendo avaliados por vídeo e em torneios simulados pela confederação brasileira. Em março, Porto permaneceu por quatro semanas no Rio de Janeiro, onde "competiu" com os colegas no CT do Time Brasil. O mesmo foi feito por meio do Zoom (sistema de videoconferência que ganhou notoriedade em meio à pandemia) em duas oportunidades nos últimos dias, em que o gaúcho apresentou suas séries para juízes e técnicos da seleção.