Geraldo Bernardes pensou que seu coração de 73 anos havia sido testado ao máximo na segunda-feira, quando sua pupila Rafaela Silva ganhou a medalha de ouro. Estava enganado o seu Geraldo, apesar dos cabelos alvos indicarem uma vida dedicada ao judô. Ao ver o refugiado congolês Popole Misenga no tatame, ele teve a certeza de que gastar com cardiologista, no caso dele, é jogar dinheiro fora.
- Havia ganho a medalha de ouro com a Rafaela, a quem treinei desde os oito anos. Mas agora ... – respirou fundo o técnico, para em seguida continuar, com voz embargada ... – Agora, eu ganhei a medalha de ouro social.
Geraldo foi chamado há quatro meses pelo COI para preparar um projeto de treinos para os judocas refugiados congoleses Yolande Mabika (até 70kg) e Popole Misenga (até 90kg). Os dois fazem parte da inédita equipe de refugiados – ao todo são 10 atletas na natação, no atletismo e no judô - e são alunos no Reação, instituto criado pelo ex-judoca Flávio Canto e de onde saiu Rafaela Silva.
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Yolande perdeu na primeira luta. Mas Popole venceu a primeira, sobre o indiano Avtar Singh e fez um enfrentamento duro contra o coreano Donghan Gwak, simplesmente o número 1 do mundo. Mesmo derrotado, saiu do tatame orgulhoso e falou da importânca de Geraldo em sua trajetória em entrevista ao Sportv:
– Pra mim, ele é um pai – disse o judoca que recebeu de Geraldo apoio esportivo e também financeiro para garantir o pagamento do aluguel de sua casa quando necessitou.
Os dois chegaram para Geraldo debilitados e fracos há cerca de um ano. Estavam no Brasil desde o Mundial de 2013, no Rio. O técnico fugiu do hotel e os deixou sem passaportes e sozinhos. Geraldo precisou fazer com que aprendessem o básico outra vez.
- Eles não tinham nem quimono. Até as regras tivemos de ensinar para eles. Os dois chegaram como dois bichinhos assustados, precisando de amparo e com fome – conta o técnico.
O processo de integração precisou da mão experiente de Geraldo. No Congo, quando perdiam uma luta, os judocas recebiam como punição um período numa jaula e com alimentação pela metade. Por isso, nos treinos não mediam força. Nem mesmo quando era preciso obedecer ao fair play.
- Os meus judocas saíam do tatame, e é quando se interrompe a luta, e eles seguiam e os derrubavam. Isso me causava problemas – conta o técnico.
Como uma compensação do destino depois de tanto sofrimento, os dois congoleses caíram nas mãos preciosas de Geraldo. Está em sua quinta Olimpíada. Em todas saiu com medalha. Quando Aurélio Miguel ganhou a primeira medalha de ouro do Brasil em Seul 88, era ele o técnico.
A preparação dos judocas refugiados para a Rio 2016 foi pouco mais de um ano. Quase nada se comparado ao ciclo dos adversários, de quatro anos. Mas muito para quem nem imaginava lutar numa Olimpíada. O que não impediu que a congolesa provocasse um corre-corre dos técnicos na véspera da estreia.
- Precisamos sair para comprar uma camiseta branca para a Yolande. Mesmo depois desse período de treino, ela não sabia da exigência de vestir uma por baixo. Saímos correndo para comprar – diverte-se Geraldo, o orgulhoso dono de duas medalhas no Rio, uma de ouro e outra de valor inestimável.