Como toda utopia, o ideal olímpico volta a se chocar com a realidade: atentados, boicote e propaganda por parte dos regimes ditatoriais fazem parte da história dos Jogos, da mesma forma que os títulos olímpicos e os recordes dos campeões.
A exclusão da Rússia e de Belarus de Paris-2024 e as medidas de segurança excepcionais que serão tomadas pelo risco de atentados são apenas os últimos acontecimentos da relação tumultuosa que os Jogos têm tido com a geopolítica mundial, praticamente desde sua retomada em 1896.
Imaginados por Pierre de Coubertin como um encontro para atletas homens, bem mais elitista, como os Jogos se transformaram em um pouco mais de século em um terreno de confrontos entre países e de causas planetárias?
Na mentalidade Coubertin, "as competições olímpicas são uma espécie de exposição atlética internacional", responde à AFP o historiados Patrick Clastres.
Porém, o que está em jogo vai muito além do âmbito esportivo. Ganhar medalhas ou organizar a competição é um fantástico meio para promover a imagem de seu país no exterior. E internamente, uma maneira de criar uma identidade nacional em torno do "herói" do estádio.
Propaganda nazista
O primeiro a instrumentalizar os Jogos foi Hitler, em Berlim 1936: enquanto os atletas alemães conquistavam medalhas, o "Führer" oferecia ao mundo um espetáculo grandioso a serviço da propaganda nazista.
— Entre as duas guerras, primeiro as democracias e depois os regimes fascistas implementaram políticas esportivas, produzindo potências atléticas: o regime de Hitler fez isso em uma escala desproporcional, seguido mais tarde pela União Soviética, que só entrou em cena em 1952— explica Clastres.
Depois de difamar e boicotar os jogos "burgueses" por três décadas, os soviéticos se deram conta do potencial político oferecido pelo maior evento esportivo do mundo, levando até mesmo alguns de seus países satélites a desenvolver programas estatais de doping em massa a partir da década de 1970 para garantir sua supremacia no quadro de medalhas.
Em 1972, em Munique, a violência eclodiu na Vila Olímpica: 17 pessoas, incluindo 11 atletas israelenses, foram mortas durante uma tomada de reféns por um grupo de comando da organização palestina Setembro Negro.
Os valores olímpicos de universalidade também foram testados pelo racismo. Em 1968, os velocistas norte-americanos Tommie Smith e John Carlos fizeram história ao levantar os punhos, envoltos em uma luva preta, em saudação ao movimento anti-segregação "Black Power" nos Estados Unidos. Esse gesto violou a "neutralidade" do esporte, pela qual o COI sempre foi conhecido. Os dois atletas foram expulsos da Vila Olímpica e banidos dos Jogos para sempre.
O apartheid e a Guerra Fria
Oito anos depois, em Montreal-1976, 29 países, a maioria deles africanos, recusaram-se a participar porque a Nova Zelândia enviou sua equipe de rúgbi para a África do Sul do apartheid. Esse foi o primeiro boicote em massa aos Jogos.
A isso se seguiram os boicotes dos Estados Unidos e de alguns de seus aliados contra Moscou em 1980 (por causa da invasão soviética do Afeganistão) e a resposta quatro anos depois com o boicote do bloco soviético aos Jogos de Los Angeles em 1984, ambos em um período de Guerra fria entre os dois lados.
Para fins de registro, os primeiros movimentos de boicote datam de 1956, quando o Egito, o Líbano e o Iraque não participaram de Melbourne em protesto contra a intervenção militar israelense-franco-britânica no Canal de Suez.
Ao mesmo tempo, a Espanha, a Suíça e a Holanda se recusaram a participar daquela edição para denunciar a intervenção soviética contra o movimento pró-democracia na Hungria, enquanto a China se ausentou devido à presença de uma delegação de Taiwan.
O movimento olímpico sobreviveu a todas essas tempestades, não hesitando nem mesmo em excluir países repudiados pela comunidade internacional. Antes da Rússia e de Belarus este ano, os perdedores da Primeira Guerra Mundial (Alemanha, Áustria, Hungria, Turquia e Bulgária) foram excluídos de Antuérpia-1920 e os perdedores da Segunda Guerra Mundial (Alemanha e Japão) de Londres-1948.
A África do Sul do apartheid (ausente de 1964 a 1988) e a Iugoslávia, devido às sanções internacionais em 1992 durante a guerra dos Bálcãs, são outros casos de exclusão.
Essa prática não é exclusiva dos Jogos modernos. Os cronistas da Grécia Antiga já explicavam que Esparta, em 420 a.C., foi excluída dos Jogos por não respeitar a trégua olímpica, que já naquela época impunha o fim dos combates.
* AFP