Nos cinco Mundiais ganhos pelos Brasil, sempre houve a presença marcante de negros em campo. A genialidade de Pelé em 1958. A habilidade de Garrincha em 1962. A eficiência de Everaldo em 1970. O faro artilheiro de Romário em 1994. A magia de Ronaldinho Gaúcho em 2002. Os cinco são os personagens deste ano da série Nossa Voz, projeto do Grupo RBS que tem como objetivo ampliar o combate contra o racismo. O personagem deste sábado (17), encerrando a série, é Ronaldinho Gaúcho.
O racismo está na ponta da língua. Diversos vocábulos do português são de cunho racista. São expressões corriqueiras do nosso dia a dia e que associam o negro a questões negativas, trazem uma conotação pejorativa ou designam uma atividade ilegal.
A lista é grande. Denegrir, mercado negro, lista negra, ovelha negra, inveja branca, criado-mudo, a cor do pecado, disputar a nega e nhaca são apenas alguns exemplos.
— A língua e os sujeitos estão inseridos nas sociedades e na história que, por sua vez, é marcada pelas relações de poder e opressões. Essas palavras exercem seu trabalho reproduzindo estereótipos históricos, como negro é preguiçoso, negro não faz um serviço bom, negro não é confiável, que funcionam como imagens de controle e que mantém as lógicas e desigualdades coloniais até hoje — explica Larissa da Silva Fontana, doutoranda em Linguística na Unicamp e pesquisadora dos grupos Mulheres em Discurso (UNICAMP) e Discurso e Tensões Raciais (UESC).
Outro termo que segue a mesma linhagem é magia negra. Em terras brasileiras a expressão ganhou cunho racial durante o período da escravidão. A ideia desenvolvida na Europa medieval atrelava a expressão a rituais que utilizavam forças sobrenaturais para interferir negativamente na vida mundana, utilizando-se da sombra e não da luz. Aqui o sentido foi deturpado.
A feitiçaria se tornou uma extensão do medo real dos brancos em relação aos negros escravos. Após a proclamação da abolição da escravatura, o temor de que os negros se rebelassem arrefeceu, mas o estigma social permanece até a atualidade.
— Magia negra é uma expressão que historicamente mobiliza sentidos pejorativos, em especial, ligados às práticas religiosas e àquilo que não corresponde às práticas do cristianismo. Ela circula, muitas vezes, como forma de deslegitimar e estigmatizar as religiosidades de matriz africana, cujos templos são constantemente violados no nosso país. A expressão magia negra, nesse contexto, faz parte do discurso do racismo religioso — explica Larissa.
Mas por que magia negra não pode ser o que Ronaldinho Gaúcho fazia em campo? Por que o gol sobre a Venezuela, em seu segundo jogo pela Seleção Brasileira, não pode ser obra de feitiçaria? Vai dizer que aquele gol de falta sobre a Inglaterra, nas quartas de final da Copa do Mundo de 2022, não foi pura magia. Não à toa, o guri de Porto Alegre foi apelidado de Bruxo.
O gol por cobertura sobre os ingleses garantiu o time de Felipão nas semifinais e colocou o nome do meia-atacante gaúcho entre os mais importantes na conquista do penta. Contra a China, ainda na primeira fase, havia marcado outro gol, este de pênalti.
Seus dribles e malabarismos com a bola deixaram para trás os melhores defensores de sua geração, mas foram insuficientes para driblar o racismo. O ataque mais notório sofrido pelo filho de Dona Miguelina ocorreu em 2014, quando foi jogar no México para viver o crepúsculo de sua carreira.
Sua apresentação pelo Querétaro causou grande alvoroço na cidade homônima ao clube. A região do estádio estava tão congestionada como tantas retrancas que Ronaldinho superou em seus anos de glória. Político conservador e branco, Carlos Manuel Treviño não teve a mesma habilidade para desviar dos carros que atravancavam o seu caminho. Preso no tráfego, despejou sua frustração sobre o recém-contratado. “Tudo isso por um macaco. Um brasileiro, mas um macaco. É um circo ridículo”, esbravejou em sua conta no Facebook.
Em um primeiro momento, Ronaldinho fez ouvidos moucos sobre o tema. Yasser Corona, companheiro do gaúcho no clube mexicano, relatou que durante o treino, no dia seguinte, o brasileiro apenas sorriu e disse já ter passado por outras situações semelhantes.
Semanas depois, o silêncio foi quebrado em entrevista coletiva.
— Basta. Estamos todos cansados disso. É um assunto que fere, que vai além da cor da pele ou da nacionalidade. Espero que em breve tudo isso acabe — disse o brasileiro.
Ronaldinho só queria fazer uso da sua magia negra, a verdadeira magia negra.