Nos cinco Mundias ganhos pelos Brasil, sempre houve a presença marcante de negros em campo. A genialidade de Pelé em 1958. A habilidade de Garrincha em 1962. A eficiência de Everaldo em 1970. O faro artilheiro de Romário em 1994. A magia de Ronaldinho Gaúcho em 2002. Os cinco são os personagens deste ano da série Nossa Voz, projeto do Grupo RBS que tem como objetivo ampliar o combate contra o racismo. O personagem desta quarta-feira (16) é Garrincha.
Se o drible não se materializasse em movimento, mas em cor, ele seria negro. Mais do que plástica e uma artimanha para superar o adversário, ele é um ato de obstinação de uma raça, uma teimosia de quem merece participar do jogo sob as mesmas regras dos brancos. Parece simples, mas nem sempre foi assim.
O futebol, esporte elitista em sua origem em terras tupiniquins, não via seus praticantes confortáveis em terem de se ombrear com jogadores de cor. A miscigenação futebolística criou dois regulamentos diferentes, um aplicado para os brancos e outro para os negros.
Especialistas em arbitragem costumam dizer que a regra mais importante é a de “número 18” - o futebol tem 17 regras oficiais. Nela, o árbitro deve aplicar o bom senso, indispensável em um regulamento sujeito a interpretações. No caso dos primórdios da prática no Brasil, o principal dispositivo utilizado era o do mau senso. Os brancos eram intocáveis para os jogadores negros. Tudo era falta. A recíproca não era verdadeira. Quase não eram marcadas infrações nos negros, independemente da força exercida na dividida.
O desequilíbrio da aplicação da lei do jogo desenhou parte importante da personalidade do futebol brasileiro. O drible surge como uma forma de fugir da falta, escapar da violência, de evitar o contato para não contar com a má vontade do apitador. Era preciso encontrar uma maneira de explorar os espaços reduzidos pela impossibilidade do contato físico.
— O drible é uma peculiaridade vinda das condiçoes sociais e históricas das partidas de futebol do início do século passado no Brasil, que criam essa forma de resistência do jogador se manter em campo. Isso tornou o jogo mais interessante também. Agora, chegou o momento do jogador negro driblar fora das quatro linhas e ganhar espaço como técnico e dirigente — avalia Renato Noguera, professor e filósofo da Universidade Federal Rural do Rio de Janeiro (UFRRJ) e estudioso do tema.
O gingado é implementado em campo trazendo outros elementos da cultura afro-brasileira. A criação do drible permitiu que os negros desfilassem em campo e nos sambas.
— Ainda garoto eu tinha medo de jogar futebol, porque vi muitas vezes jogador negro, lá em Bangu, apanhar em campo, só porque fazia uma falta, nem isso às vezes. Meu irmão mais velho me dizia: 'Malandro é o gato que sempre cai de pé. Tu não é bom de baile?' Eu era bom de baile mesmo. Eu gingava muito. O tal do drible curto, eu inventei imitando o miudinho, aquele tipo de samba — relatou Domingos da Guia, craque dos anos 1930, em entrevista para o livro “Futebol, uma paixão nacional”.
O samba, assim bem miudinho, ficou difícil de ser acompanhado pelos brancos. Poucos driblaram tanto quanto Garrincha. Raros dominaram essa arte como Mané. Cada vez que pegava a bola pela ponta, parava como quem não tem pressa para fazer o movimento certo. O ritmo não era dado pela bola nem pelo adversário, mas pelo seu corpo, pelas suas pernas arqueadas. Desse modo, deixava um ou mais joões, como apelidou os adversários, pelo caminho.
Foi na cadência dos movimentos desse mestiço que o Brasil avançou na Copa de 1962. Pelé se lesionou, sendo substituído pelo também negro Amarildo, e Garrincha assumiu a responsabilidade de levar o Brasil ao bicampeonato mundial. A responsabilidade sobre quem era considerado um irresponsável.
Quatro anos antes, ele tinha sido vítima de um dos tantos atos de racismo velado que teve de fintar. Antes do início da Copa da Suécia, o Brasil disputou amistoso contra a Fiorentina. O Anjo das Pernas Tortas marcou um gol antológico. Passou por todo mundo. E quando podia ter feito o gol, esperou um zagueiro retornar para aplicar outro drible antes de marcar de entrar com bola e tudo. Como punição pela ousadia, ele perdeu a titularidade nas duas primeiras rodadas do Mundial.
Esse foi o lance que entrou para a mitologia do futebol. A história, no entanto, foi diferente, segundo o jornalista Fábio Mendes, autor de "Campeões da raça – Heróis negros da Copa de 1958".
— Vendo as imagens do gol, o que fica é que teve algo de preconceito dentro dessa história de que jogador negro era irresponsável, que era indisciplinado. Que ele cometeu um lance de molecagem — comenta.
A filmagem do lance, cedida ao escritor pela TV Italiana RAI, não contempla toda a jogada, porém é possível ver o momento derradeiro. Mendes constatou que o relato do gol virou uma espécie de lenda urbana, um folclore do futebol. Garrincha, de acordo seu relato, veio a dribles e precisou fintar o goleiro, o que deu tempo de um zagueiro que ficou para trás surgir na cobertura e ter de ser driblado novamente.
— Foi um recurso plástico, de habilidade, bonito, mas era necessário. Não foi uma brincadeira — assegura.
Mais do que um habilidoso, Garrincha era um resistente.