Nos cinco Mundiais ganhos pelos Brasil, sempre houve a presença marcante de negros em campo. A genialidade de Pelé em 1958. A habilidade de Garrincha em 1962. A eficiência de Everaldo em 1970. O faro artilheiro de Romário em 1994. A magia de Ronaldinho Gaúcho em 2002. Os cinco são os personagens deste ano da série Nossa Voz, projeto do Grupo RBS que tem como objetivo ampliar o combate contra o racismo. O personagem desta quinta-feira (17) é Everaldo.
No auge da ditadura militar no Brasil, quando uma suposta democracia racial era propagandeada pelo governo, uma seleção repleta de negros encantou o mundo e conquistou a Copa de maneira brilhante em terras mexicanas. Entre os campeões, o gaúcho de Porto Alegre Everaldo Marques da Silva, que anos mais tarde seria imortalizado com uma estrela dourada na bandeira do Grêmio. O lateral-esquerdo criado em uma pequena casa de madeira no bairro Glória, filho de um estivador e de uma empregada doméstica, não era rei como Pelé ou genial como Garrincha, mas tinha talento, determinação e eficiência.
A luta dos negros era assunto na casa do campeão de 1970, garante a filha de Everaldo, Denise Helena Silva da Silva, 54 anos, sobrevivente do trágico acidente que matou o jogador, a esposa dele, a outra filha do casal e uma irmã do lateral.
— A gente falava muito sobre racismo. Na época dele, era mais mascarado, não se sentia muito o racismo por ele ser ídolo. O ídolo deixava de ter cor. Ele era admirado até pelos colorados — comenta Denise, acrescentando em seguida:
— Ele sempre teve muito orgulho de ser negro, sempre lutou pela causa do jeito que podia. Hoje, com certeza, lutaria muito mais.
Coordenador do curso de Jornalismo da PUCRS e da área de comunicação e mídia da Associação Brasileira de Pesquisadores/as Negros/as (ABPN), Deivison Campos destaca que as manifestações de racismo no começo dos anos 1970 eram desconsideradas ou tratadas como não racismo. Muitos dos líderes do movimento negro foram exilados, perseguidos ou mortos durante a ditadura.
— Pelé várias vezes revelou que foi chamado de macaco e outras formas de desumanização e dizia que era uma coisa normal, que sempre ocorreu no futebol. Por aí se tem uma normalização das relações racistas da nossa sociedade. A situação de opressão sempre se dá dessa forma. O oprimido é colocado nessa condição social e não se dá conta da sua condição, é preciso um debate por pessoas mais esclarecidas no sentido político para se dar conta dessa situação. O racismo sempre ocorreu na sociedade brasileira, não se tinha era uma legislação eficaz contra o racismo, ela só vai existir em 1989, é relativamente recente — argumenta o professor, para logo completar:
— O racismo sempre pautou as relações sociais brasileiras. O que acontece agora é que existe a denúncia, e a população negra de uma forma geral saiu daquele lugar de opressão e passou a exigir cidadania. Aumentaram denúncias e uma onda conservadora se volta contra essas posições para, como diz aquela placa, "quero o meu país de volta". Qual é ele? Aquele em que a pessoa podia ser racista sem nenhum tipo de consequência. A novidade é a denúncia e o confronto.
Se não atuava como um militante racial, Everaldo era apaixonado pelas expressões culturais com origem entre os negros, casos do samba e do Carnaval. Jamelão e Sargentelli chegaram a frequentar a casa do lateral na Vila Assunção. Também era fanático pela Bambas da Orgia, tanto que desfilou por vários anos pela escola.
Apesar do protagonismo em campo, os campeões de 1970 não se tornaram referência para os jovens negros da época, avalia Deivison Campos. Para ele, a tomada de consciência negra só ganha dimensão a partir dos anos 1980, com os cem anos da abolição da escravatura (1988). A exceção foi Pelé, que passou a ser apelido de muitas crianças pelo fato de serem negras ou por terem habilidades futebolísticas. Sobre Everaldo, o professor argumenta que a representatividade dele depende do momento em que for analisada:
— Se for no começo dos anos 1970, claro que vai ser uma pessoa importante dentro da comunidade negra, mas como alguém que ascendeu, que conseguiu excepcionalidade, não no sentido do combate racial, mas no sentido da ascensão pessoal. Por muito tempo, essas pessoas foram usadas como exemplo de que éramos uma democracia racial. "Já que temos o Pelé, o Everaldo, todo mundo é igual". Olhados do nosso tempo, com consciência política, posicionamento, essas figuras ganharam dimensão. Everaldo é hoje a estrela na bandeira do Grêmio, um clube que por muitas vezes esteve envolvido em manifestações racistas. É uma figura emblemática para o próprio clube, que quer desconstruir ou se desligar dessa imagem.
No Grêmio desde os 13 anos, Everaldo era descrito como um atleta de estilo clássico. Jogava simples, mas tinha muita categoria, tanto que, antes de ser lateral, atuou como centromédio (volante). Suas principais virtudes eram defensivas, sempre foi classificado como um grande marcador. Pelo Tricolor, disputou nove temporadas e conquistou três títulos gaúchos (1966, 1967 e 1968). Foram 374 partidas pelo clube, com 212 vitórias, 108 empates e 54 derrotas. Marcou dois gols. Também fez dois gols contra. Seu último jogo com a camisa gremista ocorreu em 8 de setembro de 1974, menos de dois meses antes de sua morte. Pela Seleção, disputou 29 partidas.
No retorno ao Rio Grande do Sul após a conquista do Tri, no México, foi recebido de maneira apoteótica. Zero Hora descreveu assim a comemoração: "Foi uma festa monumental, onde o azul e o vermelho cantaram em paz. Porto Alegre nunca viu uma coisa igual. A cidade estava assistindo, sem dúvida, a maior recepção a uma personalidade. Havia de tudo. Homens, mulheres, muitas crianças, gaúchos a caráter, mexicanos fantasiados. Bandeiras do Grêmio e do Brasil em profusão, e algumas do Internacional. O Marabá (do bairro Glória), seu primeiro clube, estava com dois caminhões lotados de torcedores."
Everaldo perdeu a vida aos 30 anos, quando o Dodge Dart que conduzia colidiu com uma jamanta carregada com 20 toneladas de arroz. O atleta, que estava em campanha para deputado estadual, voltava de um jogo festivo em Cachoeira do Sul.
— Para mim, ele sempre foi uma referência de princípios, pelo caráter. Ele soube correr atrás do sonho. Um homem negro, pobre, que cresceu — conclui Denise, que hoje trabalha como cozinheira e cursa a faculdade de Gestão de Empresas.
O que sonhava Everaldo é o mesmo que deseja a filha dele e o professor Deivison Campos: que tenhamos personalidades negras em todas as esferas da sociedade, não apenas atletas e músicos de sucesso.
— E por que não temos? Não é capacidade, é questão de oportunidade, o que diminui a oportunidade é o racismo. No momento em que tivermos mais oportunidades, teremos pessoas se destacando em várias áreas, não pelo fato de ser negro, mas pelo fato de ser um ser humano capaz como qualquer outro — finaliza o coordenador da ABPN.