O futebol mudou e, hoje, jogar bem com os pés é quase uma obrigação para qualquer goleiro. Os números, inclusive, provam isso. Em média, na edição de 2020 do Brasileirão, os "camisas 1" deram 26 passes por partida. Enquanto isso, dificilmente precisam fazer mais do que quatro ou cinco defesas durante os 90 minutos. Nas intervenções, os goleiros da dupla Gre-Nal, por exemplo, tiveram média de apenas 2,7 por jogo. Ou seja, eles participam até mais com os pés do que com as mãos.
As observações acima foram feitas por treinadores de goleiros. Cada vez mais, eles sabem da importância de estimular e preparar esses atletas, que antes eram lembrados apenas pelas defesas, para que tenham qualidade e possam fazer parte da construção ofensiva das equipes.
— Os times estão rifando a bola cada vez menos, então é fundamental que o goleiro saiba jogar com os pés, que tenha essa tranquilidade e possa ajudar o time a criar desde a defesa — ressalta Cláudio Taffarel, treinador de goleiros da Seleção Brasileira.
Na época em que era jogador, entre o início da década de 1980 e o começo dos anos 2000, a participação dos goleiros com os pés era mínima. Taffarel recorda que os treinamentos eram voltados quase que exclusivamente ao jogo com as mãos e, no máximo, os camisas 1 trabalhavam domínio, passe curto e reposição de bola.
— Na minha época não se trabalhava isso. Joguei no Inter, no Parma, no Atlético-MG, no Galatarasay e em nenhum desses clubes os goleiros trabalhavam com os pés. Mas quando virei treinador de goleiros lá na Turquia (em 2011), já se fazia esse trabalho. Na Europa começou antes, mas agora o futebol brasileiro passou a buscar esse modelo nos últimos anos — destaca Taffarel.
Boa parte dessa importação de conceito está associada à mudança na regra do tiro de meta, adotada pela International Football Association Board (IFAB) no início da temporada 2019/2020 do calendário europeu. No país, essa novidade começou no Brasileirão de 2019 e mudou a mentalidade de alguns técnicos e a participação dos goleiros em campo.
— No momento em que o tiro de meta passa a ter saída curta dentro da grande área, o goleiro é obrigado a ter controle e domínio de jogo com os pés. Antes os defensores tinham de estar fora da área, então o adversário poderia marcar pressão com mais facilidade. Agora, os atacantes têm de ficar fora da área e os defensores podem receber a bola curta. Isso muda o comportamento do jogo. Se o goleiro não souber sair jogando, dará o chutão e estará "sorteando" a bola — alerta Rogério Maia, treinador de goleiros do Atlético-MG.
Na temporada passada, Maia trabalhou com o argentino Jorge Sampaoli, que gosta de contar com goleiros que joguem bem com os pés. Não à toa, o clube contratou Everson, do Santos, que se destaca por essa qualidade. Contra o Grêmio, inclusive, ele deu uma assistência para um gol de Keno ao repor a bola em jogo com um lançamento perfeito com o pé. Mas, na avaliação do treinador de goleiros do Galo, é preciso que o camisa 1 seja visto como mais um integrante da equipe e não apenas uma peça defensiva.
— É muito importante que o goleiro tenha uma boa reposição de bola, um bom gesto técnico, mas só isso não é suficiente para dizer que ele joga bem com os pés. Requer domínio do espaço-tempo, consciência tática, de posicionamento — afirma.
Treinamento e evolução
Os treinadores de goleiros garantem que é possível, sim, evoluir com os pés. Até mesmo os mais experientes, que não têm tanta qualidade na saída de bola, podem aprimorar essa fase do jogo se treinarem bastante. O imprescindível é estar disposto a desenvolver os fundamentos.
— O trabalho que o treinador de goleiros faz é mais de automatização do movimento, do passe, para pegar a distância, a força para bater na bola, o domínio. É tentar simular situações de jogo e colocar os goleiros em alguns treinos junto com os jogadores de linha, especialmente naqueles em que ele terá de dominar e tocar a bola rápido, porque exercita a velocidade de raciocínio — explica Taffarel, que cita os goleiros Alisson e Ederson, da Seleção Brasileira, como bons exemplos de qualidade com as mãos e com os pés.
No Atlético-MG, Rogério Maia trabalhou com um velho conhecido da torcida gremista: o experiente Victor, que se aposentou no início deste ano. Apesar de ter sido um grande goleiro, com passagem pela Seleção e ídolo do Galo, não tinha tanta qualidade na saída com os pés. Com o trabalho do dia a dia, porém, evoluiu neste quesito.
— O Victor encerrou a carreira agora e trabalhamos muito com ele esse jogo de pés. Foi uma satisfação muito grande vê-lo utilizando essa saída curta que trabalhamos com ele. Então, se o atleta está aberto a desenvolver esse tipo de capacidade, não tem idade. Vai da capacidade de entender o jogo e saber a importância desse fundamento. Hoje as categorias de base estão dando ênfase a esse tipo de ação. Os goleiros que estão subindo têm mais facilidade, porque essa mudança é muito recente — garante Maia.
—Hoje o goleiro tem de começar a treinar isso nas categorias de base, a ter essa facilidade para jogar com os pés. Já precisa entrar no cronograma de trabalho. Isso não se fazia antigamente, mas hoje virou uma obrigação — complementa Taffarel.
Uma frase atribuída ao holandês Johan Cruijff, histórico ex-jogador e treinador de Ajax e Barcelona, dizia que "se o goleiro ficar estático no gol, seria muito distante do que aquilo que é jogado pelo resto da equipe. Atuando como jogador, o goleiro dá a sua equipe um jogador extra contra seus oponentes. Na realidade jogamos com 11 jogadores, enquanto os adversários com 10 e meio". Esse é o perfeito resumo da necessidade de os goleiros participarem do jogo com os pés.
Ainda assim, mesmo com toda a importância do trabalho de saída de bola dos goleiros, a parte que define a qualidade do atleta desta posição, o único que veste um uniforme diferente e pode tocar com a mão na bola dentro do campo, está nas defesas.
— A participação do goleiro no jogo é de 80 a 85% com os pés, mas o que define uma partida são os 15%, 20%. Pode parecer contraditório, mas é interessante. Teu goleiro pode participar muito, acertar passes, mas se levar os gols não adianta nada. Ele ainda precisa ser muito bom com as mãos, isso é que define jogo — lembra Maia.
Números no Brasileirão de 2020*
Goleiros que mais jogaram com os pés (média de passes por jogo):
Felipe Alves (Fortaleza) —35 passes/30 certos (87% de precisão)
Santos (Athletico-PR) — 35/30 (87%)
Tiago Volpi (São Paulo) — 33/29 (88%)
Everson (Atlético-MG) — 32/29 (90%)
Jean (Atlético-GO) — 32/28 (86%)
Cleiton (Bragantino) — 29/24 (85%)
Weverton (Palmeiras) — 29/24 (85%)
João Paulo (Santos) — 28/25 (88%)
Wilson (Coritiba) — 28/25 (88%)
Tadeu (Goiás) — 28/24 (84%)
Cássio (Corinthians) — 27/24 (88%)
Hugo Souza (Flamengo) — 26/22 (84%)
Marcelo Lomba (Inter) — 24/20 (83%)
Luan Polli (Sport) — 24/20 (83%)
Fernando Miguel (Vasco) — 23/19 (86%)
Diego Cavalieri (Botafogo) — 22/20 (90%)
Fernando Prass (Ceará) — 22/19 (85%)
Marcos Felipe (Fluminense) — 22/18 (82%)
Douglas (Bahia) — 21/19 (89%)
Vanderlei (Grêmio) — 19/16 (86%)
Chutes defendidos:
Tadeu (Goiás) — 149 defesas (72% das bolas chutadas em gol)
Fernando Miguel (Vasco) — 140 (73%)
Luan Polli (Sport) — 131 (77%)
Cássio (Corinthians) — 125 (74%)
Wilson (Coritiba) — 123 (72%)
Tiago Volpi (São Paulo) — 113 (73%)
Felipe Alves (Fortaleza) — 113 (72%)
Jean (Atlético-GO) — 107 (72%)
Santos (Athletico-PR) — 100 (78%)
Weverton (Palmeiras) — 90 (78%)
Douglas (Bahia) — 83 (68%)
João Paulo (Santos) — 82 (73%)
Cleiton (Bragantino) — 81 (72%)
Everson (Atlético-MG) — 74 (68%)
Fernando Prass (Ceará) — 79 (71%)
Marcelo Lomba (Inter) — 78 (70%)
Diego Cavalieri (Botafogo) — 69 (64%)
Hugo Souza (Flamengo) — 67 (71%)
Vanderlei (Grêmio) — 62 (67%)
Marcos Felipe (Fluminense) — 46 (68%)
Gols sofridos
Por ordem, do goleiro mais efetivo até o que demorou menos tempo entre um gol e outro
Weverton (Palmeiras) — 26 em 2.960 minutos (1 gol a cada 113,8min)
Santos (Athletico-PR) — 29 em 3.140 minutos (1 gol a cada 108,2min)
Marcelo Lomba (Inter) — 34 em 3.657 minutos (1 gol a cada 107,5min)
Cleiton (Bragantino) — 31 em 3.186 minutos (1 gol a cada 102,7min)
Tiago Volpi (São Paulo) — 41 em 3.769 minutos (1 gol a cada 91,9min)
Jean (Atlético-GO) — 41 em 3.566 minutos (1 gol a cada 86,9min)
Vanderlei (Grêmio) — 31 em 2.676 minutos (1 gol a cada 86,3min)
Marcos Felipe (Fluminense) — 22 em 1.874 minutos (1 gol a cada 85,2min)
João Paulo (Santos) — 31 em 2.573 minutos (1 gol a cada 83min)
Felipe Alves (Fortaleza) — 44 em 3.621 minutos (1 gol a cada 82,2min)
Hugo Souza (Flamengo) — 28 em 2.225 minutos (1 gol a cada 79,4min)
Everson (Atlético-MG) — 35 em 2.761 minutos (1 gol a cada 78,8min)
Cássio (Corinthians) — 45 em 3.458 minutos (1 gol a cada 76,8min)
Luan Polli (Sport) — 40 em 3.050 minutos (1 gol a cada 76,2min)
Douglas (Bahia) — 39 em 2.875 minutos (1 gol a cada 73,7min)
Wilson (Coritiba) — 47 em 3.348 minutos (1 gol a cada 71,2min)
Fernando Prass (Ceará) — 33 em 2.167 minutos (1 gol a cada 65,6min)
Diego Cavalieri (Botafogo) — 39 em 2.190 minutos (1 gol a cada 56,1min)
Tadeu (Goiás) — 57 em 3.199 minutos (1 gol a cada 56,1 min)
Fernando Miguel (Vasco) — 51 em 2.167 minutos (1 gol a cada 42,4min)
* Foram considerados os goleiros com mais minutos em campo em cada um dos 20 times
Fonte: InStat