Daiane dos Santos é um ícone para o esporte brasileiro. Negra e de origem humilde, a porto-alegrense foi a primeira atleta do país, entre mulheres e homens, a conquistar um título mundial na ginástica artística — o ouro no solo em 2003, no Mundial de Anaheim, nos Estados Unidos. A ex-ginasta, que começou "velha" para os padrões da modalidade e serve de inspiração para milhares de crianças, mesmo depois de sete anos longe dos ginásios, é a figura principal do quinto e último episódio da série de reportagens Nossa Voz.
— Às vezes, ser a pioneira é muito difícil. Mas é muito necessário, por uma questão de representatividade e de transformação deste meio, que precisa ser mudado — reflete Daiane.
Ao lado de sua irmã mais velha, Deise dos Santos, a ex-atleta de 37 anos destacou algumas das diversas barreiras que teve de enfrentar em um esporte que, na época, era praticado por pessoas brancas e de classe média alta. Após ser descoberta com 11 anos, brincando em uma praça na zona sul de Porto Alegre, Daiane foi treinar no Grêmio Náutico União (GNU), clube da Zona Norte.
Conta que, lá, era a única negra na equipe e que olhares de reprovação, tanto de crianças e pais quanto de treinadores, eram comum. Mas nunca ligou. Deise descreve a irmã como uma menina sempre muito evoluída sobre o preconceito racial desde criança.
— A Daiane sempre foi atrevidinha. Eu já choro, e a Daiane não. Na escola, ela brigava. Isso foi muito importante para ela, porque na época que ela teve o boom (da carreira), a gente até via aquele racismo velado, mas ela nunca deu bola — relembra a irmã.
Daiane vai além: ela vê sua carreira como uma grande oportunidade para as gerações futuras. Ela sabe da sua importância no esporte em relação a gênero, cor e condição social, e explica:
— O talento não está na cor da pele. Se tu és bom ou se tu és ruim, não está na condição social. Mas, sim, se tu vais trabalhar duro, se tu tens persistência, se és dedicado, se és disciplinado e se tu vais ter oportunidade de estar ali. A partir do título mundial, muitas outras meninas e meninos puderam olhar e dizer: "Se ela chegou, também posso chegar". É a questão da representatividade — analisa a ex-ginasta.
E Daiane conseguiu inspirar. Alice Ferreira, de seis anos, é absolutamente fã da campeã mundial de 2003. É Deus no céu, Daiane na terra. Tímida em frente às câmeras, a pequena ginasta do GNU precisou de uma ajudinha de sua mãe, a personal trainer Analu Ferreira, 36 anos, para falar sobre a figura a quem segue.
— A Daiane é uma inspiração. Pra ela, a visualização nessa idade é muito importante, além de saber que é possível. A Daiane negra, ela (Alice), negra. E ela diz que a Daiane é uma heroína para ela — conta Analu. Na sequência, a menina corrobora:
— Eu espero fazer as mesmas coisas que ela quando ela era pequena. Nunca vou esquecê-la, ela é minha heroína.
Aos quatro anos, Alice passou em um teste do GNU para entrar na ginástica. Ao saber da história da menina, Daiane tratou de mandar um recado para ela e todas as crianças negras.
Eu espero fazer as mesmas coisas que ela (Daiane dos Santos). Nunca vou esquecer ela, ela é minha heroína
ALICE FERREIRA, 6 ANOS
Ginasta do GNU
— Digo pra Alice e para todas: acreditem nos seus sonhos. Que não deixem pessoas que não evoluíram barrar esse sonho. Que ouçam a voz interna delas. Vai ser fácil? Não vai. Vai ser difícil. Eu lembro que ouvia do meu pai: "Às vezes, vai ser três vezes mais difícil. Você vai ter de ser três vezes melhor do que as outras". Minha treinadora também falava isso, e é verdade. Mas eu acreditei no que eles estavam me dizendo. Não só que vai ser, mas que eu posso. Que eu posso estar ali, que tenho condição de estar ali — finalizou a ex-atleta.