Para o segundo episódio da série de reportagens Nossa Voz é preciso voltar no tempo algumas centenas de anos. Mais precisamente em 1830, data em que o guerreiro Samory Touré, nascido em Miniambaladougou, na atual Guiné, resistiu à invasão francesa. Nosso personagem principal desta terça-feira (16) carrega no nome uma homenagem a luta de um antepassado africano: Samory Uiki Bandeira Fraga, 23 anos, atleta do salto em distância da Sogipa.
Ao lado de seu pai, Dalmir Fraga, o jovem atendeu à reportagem da RBS TV e GZH com bom humor e humildade que lhe são característicos. O patriarca tratou de explicar a motivação para escolha do nome do filho:
— Eu e a mãe dele tínhamos o desejo de homenagear os ancestrais. A gente era de um grupo afro também, a gente sempre esteve ligado ao movimento negro, então a gente foi pesquisar. Os nomes das pessoas hoje são todos europeus, e nós não somos europeus. Nós somos descendentes da África, então a gente achava que era necessário colocar um nome mais representativo da África — revelou Dalmir.
— As pessoas ouvem Samory e acham que é japonês (risos) — completou Samory.
Samory é prova de que oportunidades podem transformar vidas negras. Graças ao atletismo e muita dedicação, o atleta reconhece:
— O racismo sim, afetou minha vida. E da mesma forma que o racismo afetou, o esporte salvou a minha vida!
Aos oito anos, Samory começou a praticar atletismo em um projeto social na Vila Cefer, em Porto Alegre. Após, conseguiu uma vaga na equipe da Sogipa e, por meio de seu talento, conquistou uma bolsa de estudos nos Estados Unidos. Hoje, além de atleta, é formado em Relações Internacionais pela Universidade de Kent, em Ohio, e fala quatro línguas: português, inglês, espanhol e alemão.
— Tive a oportunidade de ascender socialmente e me tornar uma pessoa melhor. Eu convivo em um clube que eu jamais teria condições de acesso. Sempre que posso combato o racismo e tento abrir portas para que outros jovens como eu possam entrar aqui e também mudar sua vida — conta emocionado.
Um desses jovens é Rafael Azevedo, campeão brasileiro sub-16. Filho de uma recepcionista e de um militar, o atleta do salto triplo de 16 anos conta que nunca imaginou treinar ao lado de seus ídolos.
— Nunca imaginei que eu estaria aqui dentro (da Sogipa), pra começar. Porque era um sonho pra mim entrar aqui. Eles servem muito de inspiração porque eu sei, tanto o Almir (Júnior) quanto o Samory, o quanto eles sofreram pra estar aqui. Sei das histórias deles. Isso me inspira cada vez mais pra continuar no meu objetivo — destacou Rafael.
O menino da base do atletismo da Sogipa já sente na pele, ou por causa dela, o racismo estrutural em seu cotidiano e se emociona ao relatar um caso que já ocorreu mais de uma vez:
Nesse dia eu entrei no ônibus e tinha dois lugares. Tinha uma mulher branca, usando celular e senti que ela olhou pra mim, guardou o celular e eu sentei do lado dela. Ela se sentiu meio desconfortável e isso me deixou magoado.
RAFAEL AZEVEDO
Atleta de salto triplo da Sogipa
— Eu saio do colégio, pego ônibus e vou pra casa. E nesse dia eu entrei no ônibus e tinha dois lugares. Não escolho lugar, mas tinha uma mulher branca, usando celular e senti que ela olhou pra mim, guardou o celular e eu sentei do lado dela. Ela se sentiu meio desconfortável com minha presença ali. Isso me deixou magoado... o pensamento das pessoas... (segura o choro) — relatou o tímido menino com a voz embargada.
São episódios assim que, de acordo com Dalmir, infelizmente vão sempre existir. Segundo ele, a sociedade faz com os negros desistam de si mesmos.
— A sociedade leva nós negros a nos desvalorizarmos como seres humanos. Sempre tem alguma coisa pra nos humilhar, pra nos desmerecer. E o Samory aprendeu que ele tinha condições, potencial, tinha tudo pra não sofrer esse tipo de coisa como a gente sofreu. Infelizmente, a gente sempre precisa elevar a autoestima e se auto reconhecer como negro — finalizou Dalmir.
Até sexta-feira (20), dia da Consciência Negra, as equipes de esportes de GZH e da RBS TV reproduzirão entrevistas de atletas profissionais, de base, ex-atletas e familiares de atletas para ouvir, sob diferentes perspectivas, como superam barreiras impostas pelo racismo estrutural e se tornaram atletas de ponta em diferentes níveis e modalidades.