— Ela sempre foi um menina esperta, ligada. Com apenas 5 anos, percebeu que tinha sofrido um tratamento diferente das amigas dela — conta Rosângela de Jesus, mãe da judoca gaúcha naturalizada portuguesa Rochele Nunes, de 31 anos.
— Treino o dia inteiro, me esforço o dia inteiro, para chegar na parada para pegar um ônibus e a pessoa esconder o celular ou sair porque eu estou ali — desabafa o judoca da base da Sogipa João Vitor Alves, de 16 anos.
— Tive a sorte e o privilégio de crescer em uma família estruturada. Meu pai e minha mãe, muito inteligentes e bem informados sobre o racismo, me deram sempre a oportunidade de saber que eu podia mais — confidencia Rochele.
Rosângela, João e Rochele, todos negros, são personagens da série de reportagens Nossa Voz, que se inicia segunda-feira (16). As equipes de esportes de GZH e da RBS TV entrevistaram atletas profissionais, de base, ex-atletas e familiares de atletas para ouvir, sob diferentes perspectivas, como superam barreiras impostas pelo racismo estrutural e se tornaram atletas de ponta em diferentes níveis e modalidades.
Ex-atleta da Sogipa, que hoje defende o Benfica-POR, Rochele é uma das protagonistas deste primeiro episódio. Natural de Pelotas, a atleta foi radicada em Canoas com apenas um ano. No judô, treina desde os oito e, com 13, passou a integrar a equipe do clube porto-alegrense.
Defendendo o Brasil, Rochele disputou quatro Mundiais. Em seu último ano pela seleção brasileira, em 2018, ela ganhou três medalhas de ouro, nos Abertos de Santiago, Lima e Buenos Aires. Em 2019, passou a defender a seleção portuguesa para realizar o sonho de disputar os Jogos de Tóquio — no Brasil, ele era número 3 da modalidade.
Mas foi no final de outubro, que a judoca tornou público um ataque racista que, infelizmente, já virou rotina na vida da peso pesado (+78kg).
Ao perder a medalha de bronze para a brasileira Maria Suelen Altheman no Grand Slam de Budapeste, primeira competição pós-pandemia, no dia 25 de outubro, a peso pesado recebeu uma mensagem privada ofensiva nas redes sociais. O texto, eivado de ódio, dizia o seguinte:
"Foi para a Europa, mas devia ir para o inferno, macaca de merda".
Após o choque, Rochele buscou conforto no colo da mãe, Rosângela de Jesus. Falou para a mãe o que tinha ocorrido e disse: "Bah, está difícil. Hoje eu não segurei". A jovem já havia passado por outros episódios. Mas aquela mensagem, enviada por um brasileiro, havia tocado fundo. Refletiu e disse para si mesmo: "racistas não passarão".
— Ela se sentiu muito mexida porque é um sentimento de ódio. Sabe? Para que isso? Precisa disso? São brasileiros, e isso entristece muito. Ela tem uma história de 25 anos no judô, abriu mão de muitas etapas da vida dela para estar onde está — diz Rosângela, em sua casa em Canoas, na Região Metropolitana, ao recordar dos infortúnios enfrentados pela filha.
Discurso racista que se contrapõe ao legado de Rochele, principalmente em Porto Alegre, onde deixou fãs. Um deles é João Vitor Alves, outro personagem desta reportagem.
— Como atleta mulher, me inspiro nela. Foi uma pessoa que tive contato por um período e comecei a torcer muito quando foi para Portugal. Ela é muito ofensiva, entra muito golpe, e gosto muito do jeito que ela luta. Eu sou fã dela. Quando você chega perto dela, o olho dela brilha. Ela tem uma luz. Onde ela vai, leva essa luz. Sou grato e feliz por poder estar ao lado dessas pessoas — diz o jovem, uma das promessas do clube porto-alegrense.
Quem observa o jovem bem articulado não imagina as experiências de vida já enfrentadas pelo adolescente. Aos 10, teve que sair de casa, deixar sua mãe e morar na rua após problemas envolvendo antigas amizades na Vila Limite, no bairro Teresópolis, onde morava. Encontrou refúgio em um projeto social de jiu-jitsu, depois conseguiu uma bolsa no judô da Sogipa e, hoje, tem pais adotivos. Uma vida "tranquila" para um menino que estaria fadado a ser "um marginal", como o próprio João relata:
— Tive a oportunidade de sair e me tornar uma pessoa boa, com pessoas boas ao meu redor. Sou grato pelo que está acontecendo. Uma vizinha da minha mãe falava para ela: "Teu filho vai ser um marginal". Hoje em dia, o filho dela é marginal e eu estou aqui buscando um futuro e correndo pra dar uma casa para a minha mãe (biológica) e tirar ela de lá (da Vila Limite) — conta o judoca, que é número um do Brasil na categoria até 60kg Sub-18, campeão brasileiro e campeão sul-americano.
Dono de uma história de sentimentos ambíguos, João se diz vítima de racismo. De acordo com o atleta, o preconceito está presente em seu cotidiano.
Quando chego em uma parada, e eu não tenho roupas adequadas às vezes, já aconteceu da pessoa ir embora, esconder o celular e isso me deixa triste.
JOÃO VITOR ALVES
Judoca da Sogipa
— Fui vendo as coisas (racismo) com o tempo. Eu via que as pessoas, às vezes, olhavam com uma cara, não chegavam muito perto de mim. Na rua é natural, sabe. Eu não posso falar que me acostumei, fico mal às vezes quando acontece. Quando chego em uma parada, e eu não tenho roupas adequadas às vezes, já aconteceu da pessoa ir embora, esconder o celular. Isso me deixa triste. Debaixo dessa pele todo mundo tem a mesma coisa. É sangue, é carne, é osso. As pessoas às vezes diferenciam a gente por causa da nossa pele, mas porque fazer isso? — indaga o jovem judoca. — Eu treino o dia inteiro, me esforço o dia inteiro, para chegar ali, pegar um ônibus e a pessoa esconder o celular ou sair da parada... Ela está com medo de ser assaltada sendo que eu sou uma pessoa do bem — desabafa.
É no judô que tanto Rochele quanto João encontram o "seu lugar". Quando indagados, em momentos diferentes, sobre o preconceito em sua modalidade, ambos são certeiros.
— No judô, eu pude crescer sem preconceitos porque o judô é um esporte que abomina qualquer tipo de preconceito. Aqui dentro eu sempre fui respeitada independentemente da minha cor, do meu peso e da minha classe social — descreve Rochele.
— Dentro do esporte, do judô, da Sogipa, nunca (houve preconceito) — complementa João.