Nesta semana o Manchester City, de Guardiola, foi eliminado em sua casa pelo Tottenham, de Pocchetino, em um jogo inesquecível e marcado por uma decisão do VAR que terminou classificando ao time de Londres para as semi-finais da Liga dos Campeões.
Esse jogo disparou duas discussões candentes ao redor do mundo do futebol: a validade do uso do árbitro de vídeo como ferramenta e como os detratores de Guardiola saíram ao ataque contra o treinador, por ele estar novamente fora da disputa do principal título de clubes do planeta.
E mesmo estando 100% a favor do VAR e do que ele pode trazer para o esporte, quero focar no segundo assunto. Nas redes sociais, a maioria dos comentários era no estilo "treinar o elenco mais caro do mundo é fácil. Quero ver treinar o XV de Piracicaba", ou algo como "só ganhava quando tinha o Messi no time", como se o futebol fosse um esporte individual e não coletivo.
E assim como não se joga futebol sozinho, não se rege uma orquestra sem ajuda dos músicos. O maestro argentino Astor Piazzolla (1921-1992) revolucionou um estilo que estava estagnado e carente de renovação e foi altamente criticado por isso na época. E Piazzolla era extremamente exigente com os músicos que com ele trabalhavam.
O MAL ENTENDIDO
Na biografia "Piazzolla — El mal entendido" dos jornalistas Diego Fischerman e Abel Gilbert, há alguns relatos sobre desentendimentos e brigas do maestro com instrumentistas e intérpretes pelo seu grau de exigência. Piazzolla era um gênio, um visionário, um iconoclasta que demandava de quem trabalhasse com ele um grau de inteligência e qualidade técnica, que era difícil de cumprir. Não era qualquer músico que podia trabalhar com Piazzola.
Assim como não é qualquer jogador que pode trabalhar com Guardiola. O espanhol também representa uma ruptura na cultura do esporte, e dentro da sua genialidade específica, transformou o futebol que se joga atualmente. Isso faz dele imbatível como treinador? Claro que não. Mas só jogadores extra classe, com inteligência de jogo diferenciada, conseguem corresponder às suas ideias.
E aí entra outra questão difícil de ser aceita no futebol brasileiro: Guardiola não abre mão do seu jeito de jogar. Prefere cair sendo fiel aos seus conceitos do que ganhar de qualquer jeito. E, no "país do futebol" há uma crença de que a vitória vale qualquer coisa, qualquer malandragem, inclusive burlar a arbitragem ("abaixo o VAR", eles dizem).
Piazzola se negava a tocar o tango como se tocava anteriormente. Não por desrespeito ao estilo, bem pelo contrário: por amar o tango profundamente, ele não abria mão do seu estilo e da sua leitura do gênero. Preferia não ser aceito e morrer de fome, do que ceder à pressão do mainstream.
E isso é algo que nós meros mortais temos imensas dificuldades de compreender: o abismo inconteste que existe entre a visão do gênio — e sua filosofia — e a realidade da grande maioria que tenta fazer algo parecido. Piazzolla jamais teria chegado onde chegou se não tivesse se cercado de músicos extra classe e fenomenais que compreendiam a sua visão.
Guardiola não conseguiria exercer sua visão e ideias inovadoras com atletas de baixa qualidade ou em clubes sem condições de trabalho e competitividade. Ele teria que fazer o que faz a maioria dos técnicos no mundo: abrir mão das ideias e ceder à pressão dos resultados. E quem sabe aí, defender o fim do VAR no futebol.