Alex Corretja aquecia no vestiário da equipe espanhola e mal podia acreditar no barulho que ouvia. O alarido das arquibancadas desafiava as regras de conduta do público em um esporte que preza pelo silêncio. A vibração incontida e as vaias inclementes eram de autoria da torcida porto-alegrense.
Os gaúchos juntavam vozes para empurrar Gustavo Kuerten, então um jovem de 21 anos catapultado às primeiras posições do ranking por seu primeiro título de Roland Garros, conquistado no ano anterior. Depois de perder os dois primeiros sets, ele juntava forças para uma reação emocionante sobre Carlos Moya, no primeiro jogo do confronto com a Espanha pelas oitavas de final do Grupo Mundial da Copa Davis. Há 20 anos, entre 3 e 5 de abril de 1998, Porto Alegre deixava, temporariamente, a dupla Gre-Nal de lado e abraçava a bolinha amarela e felpuda para se transformar na capital brasileira do tênis.
Um tanto aturdido pelo caldeirão que o esperava, Corretja se preparava para enfrentar Fernando Meligeni no segundo embate do confronto. Prestes a completar 24 anos, o espanhol ocupava a sétima posição do ranking mundial. Ainda era um jovem, mas já calejado por sete temporadas no circuito profissional. Não seria qualquer ruído de arquibancada que deixaria uma forte impressão sobre um jogador que, à época, era o melhor de seu país. Mas Corretja lembra bem dos porto-alegrenses.
— Me recordo de estar naquele vestiário, escutar o público e ficar muito impressionado. Foi o ambiente mais duro que eu enfrentei em toda a minha carreira na Copa Davis. Me disseram que há piores na América do Sul, mas eu nunca encontrei — afirma Corretja, em entrevista por telefone a ZH.
— Era um público de futebol, dava para perceber que nem todos estavam muito habituados com o tênis. Roçavam um pouco o limite do aceitável. Lembro de ir pegar a toalha com o boleiro, entre um ponto e outro, e ser xingado por alguns torcedores — complementa.
A cidade respirou tênis
De fato, o público de tênis no Brasil, que nos anos seguintes cresceria na onda de Guga, apenas começava a ganhar corpo. O sucesso daquele "manezinho" carismático, que surpreendeu a todos ao vencer Roland Garros em 1997, atraía atenções para o confronto.
A mobilização da cidade foi evidente desde a semana anterior aos jogos. No final de semana de 28 e 29 de março, as equipes de Brasil e Espanha desembarcaram na Capital. Começavam, ali, a preparação para um embate que os dois lados previam como equilibrado.
Ficou completamente lotado. Já tínhamos feito eventos grandes, mas nada com a dimensão daquele Brasil x Espanha.
ENNIO MOREIRA
Fundador da Protenis, empresa que montou a arena no meio do Parcão
Mesmo assim, havia um consenso de que o favoritismo estava do lado espanhol. Corretja era um top 10, e Moya, então na 17ª posição no ranking, um jovem de 21 anos com inquestionável talento que, no ano anterior, havia chegado à final do Aberto da Austrália. A força dos dois tornou-se ainda mais evidente meses após o confronto com o Brasil, quando protagonizaram um "clássico" espanhol na final de Roland Garros, vencido por Moya. A equipe ainda tinha Javier Sanchez, que fez parceria com Corretja nas duplas, e Julián Alonso, o caçula do time, que não entrou em quadra.
O Brasil tinha Guga na 10ª colocação do ranking, buscando se firmar na elite do circuito após a surpreendente conquista na França, além de Fernando Meligeni (67º), para os jogos de simples. Jaime Oncins atuou junto com Guga nas duplas, enquanto André Sá, assim como Alonso, não jogou.
O palco era um capítulo à parte. A produtora Protenis foi contratada para construir uma arena temporária em cima do campo de futebol do Parque Moinhos de Vento. Batizada de Estádio do Parcão, foi erguida com arquibancadas tubulares. Na época, Zero Hora noticiou que a capacidade era de 8 mil espectadores, mas Ennio Moreira, da Protenis, garante que cabia ainda mais gente:
— Era para 15 mil pessoas e, depois que tivemos de colocar cadeiras em alguns setores, foi para 13,5 mil. Ficou completamente lotado. Já tínhamos feito eventos grandes, como o confronto de Copa Davis no ano anterior, no Costão do Santinho, entre Brasil e Nova Zelândia. Mas nada com a dimensão daquele Brasil x Espanha.
Nos dias que antecederam os jogos, funcionários ainda faziam os últimos ajustes nas arquibancadas enquanto brasileiros e espanhóis se revezavam nos treinamentos na quadra. A Associação Leopoldina Juvenil, onde foi montada a estrutura de imprensa, também era utilizada para os desgastantes trabalhos dos dois times, sob o calor escaldante daquele início de outono.
Segurança apresentou samba e rap brasileiro aos espanhóis
Para os jogadores, não havia muito tempo para atividades de lazer. Os treinos em dois turnos preparavam para as maratonas que viriam quando a bolinha subisse para valer, a partir da sexta-feira, dia 3. Os espanhóis até encontraram um tempo para ir ao CTG 35 saborear um churrasco e assistir a shows de danças gauchescas. A vida dos brasileiros foi só na terra vermelha.
— Fazíamos o treino da manhã, daí tinha o almoço no próprio clube e ali já separaram uma sala com colchonetes onde a gente dava uma dormidinha. Era o jeito de aguentar o treino da tarde — recorda-se André Sá.
Enquanto os brasileiros descansavam, a Espanha queria ouvir música para descontrair o ambiente entre um treino e outro. Só que não havia aparelho de som. Aí entrou o segurança Luciano Miranda, que virou destaque de uma reportagem de ZH na semana do embate. Miranda trouxe o aparelho de casa e, de quebra, apresentou Martinho da Vila e Gabriel, O Pensador para Moya e Corretja.
À medida que o duelo se aproximava, o ritmo de treinos diminuiu. Fernando Meligeni, que se recuperava de uma lesão no joelho, virou personagem de uma reportagem de ZH na edição de 2 de abril. O texto relatava que o tenista "aproveitou um intervalo de seu curto período de folga na tarde de ontem para entrar no chat bar do ZAZ, uma sala de conversa virtual do site da RBS". Na foto, Meligeni tecla em um laptop que, de tão grande, parece ter a espessura de uma velha enciclopédia.
A véspera do início do evento foi dia de trocar camisetas e bermudas pelo terno e gravata. Jogadores, técnicos e dirigentes foram ao Palácio Piratini para o sorteio da ordem dos jogos. Ficou definido que Guga abriria o embate contra Moya, e Meligeni fecharia o primeiro dia enfrentando Corretja. A entrevista coletiva após o sorteio foi marcada pela desorganização. Faltou definir um local para posicionar jornalistas e fotógrafos, que se viravam para registrar a melhor imagem em meio à confusão. Para agravar a bagunça, não havia tradutores, e os espanhóis ficaram sem entender o discurso de boas-vindas do governador Antônio Britto.
Cinco linhas de ônibus especiais a R$ 0,65
Passados os protocolos oficiais, era hora das raquetes e bolinhas. Porto Alegre despertou ansiosa naquela sexta-feira, 3 de abril. A cidade respirava Copa Davis, a ponto de a prefeitura disponibilizar cinco linhas de ônibus especiais que levavam ao Parcão. O preço era o mesmo dos ônibus convencionais: R$ 0,65 (o equivalente, hoje, a R$ 2,92 em valor corrigido pelo IGP-M). Os ingressos, que só podiam ser comprados em pacote para os três dias de jogos, custavam entre R$ 70 e R$ 100 (R$ 314,49 e R$ 449,27, em valores atuais).
O Estádio do Parcão vibrou com a entrada de Guga e Moya, que começaram a disputa às 10h. O primeiro set foi equilibrado, com os dois fiéis ao estilo de fortes golpes do fundo da quadra. O brasileiro chegou a desperdiçar dois set points antes de perder a primeira parcial por 7 a 5.
Ele teve um break-point e arriscou uma bola de devolução de saque. Errou por, sei lá, um centímetro, que a turma "tirou com o olho"(risos).
GUSTAVO KUERTEN
Sobre o momento que considera decisivo para a virada sobre Moya
A situação se complicou ainda mais no segundo set, em que Moya passeou e venceu por 6 a 1. Guga teria de alcançar a façanha de vencer as três parciais seguintes para evitar a derrota.
— O fator diferencial, que transformou completamente a partida, foi a torcida que me incentivou o tempo inteiro e foi fazendo eu pegar no "tranco". Eu olhava para as pessoas que estavam lá e dava para sentir que eles acreditavam muito mais em mim do que eu mesmo naquele momento — diz o ex-número 1 do mundo.
Guga lembra de um momento específico que deu início à virada:
— Aconteceu depois de uma hora e meia de jogo, de tomar um monte de pancada para lá e para cá e estar "praticamente já no vestiário". Ele teve um break-point e arriscou uma bola de devolução de saque. Errou por, sei lá, um centímetro, que a turma "tirou com o olho"(risos). Aquilo foi suficiente para eu botar na minha cabeça que era a chance que ele desperdiçou. Que aquilo era o suficiente para agora vir uma locomotiva e atropelar. De fato, aconteceu.
A agressividade e confiança na reação encaminharam o primeiro ponto do Brasil. O ídolo venceu os três sets finais por 6 a 4 e despachou Moya após uma batalha de 3h3min.
Fininho faz uma batalha, mas Corretja prevalece
A disputa pelo segundo ponto seria ainda mais acirrada. Antes do confronto, Manolo Santana havia dito que a Espanha venceria os dois jogos contra Meligeni. Fininho não se incomodou e, até hoje, não guarda rancores:
— Eu sempre fui muito realista. Sabia naquela época que era o quarto jogador entre os quatro de simples ali, o que não era nenhum demérito porque os caras eram muito bons. O Manolo também tinha essa característica de falar um pouco de mais (risos).
Quem não conhecesse o brasileiro e visse a gana com que entrou em quadra poderia suspeitar que a declaração lhe deu motivação extra. Mas Fininho era todo determinação, sempre. Ainda mais na Copa Davis.
— Era sempre muito difícil jogar contra o Fernando no saibro — admite Corretja.
Um ano após aquele encontro, Meligeni venceria Corretja nas quartas de final de Roland Garros e conquistaria, assim, o mais importante resultado de sua carreira ao chegar à semifinal de um Grand Slam. Em Porto Alegre, porém, a luta incessante de Fininho e sua atuação inspirada e inteligente não foram suficientes para garantir a vitória. O brasileiro chegou a liderar por 2 sets a 1, mas Corretja virou e venceu em cinco sets, com parciais de 4/6, 6/4, 3/6, 6/4 e 6/4, após 4h3min.
Com o placar em 1 a 1, vencer o jogo de duplas tornou-se decisivo para o Brasil. No sábado, Guga e Oncins foram sólidos do início ao fim e ganharam em quatro sets, com parciais de 6/1, 7/5, 3/6 e 6/2. Além da excelente atuação, contaram com uma bem calculada "implicância" da torcida com Javier Sanchez, parceiro de Corretja.
— A torcida pegou no pé mesmo. Sentiram que não era o dia dele e gritavam que ele era brasileiro. Acho que ele sentiu um pouco — lembra Oncins.
O domingo foi todo da Espanha
Na frente no placar, o Brasil poderia garantir uma surpreendente vitória se Guga passasse por Corretja no primeiro jogo do domingo. O espanhol, porém, estava inspirado demais.
Ainda lembro como se fosse hoje o último ponto.
ALEX CORRETJA
Sobre a vitória em cima de Guga
Guga sofria para encaixar o saque, enquanto Corretja variava o jogo e arriscava-se mais do que era de costume em seu estilo sólido de fundo de quadra. Logo, abriu 5 a 0 no primeiro set. O brasileiro esboçou reação antes do adversário fechar em 6 a 3. O segundo set foi mais equilibrado, mas ficou ainda com o espanhol, que fez 7 a 5. Guga venceu o terceiro para dar esperanças de uma reação parecida com a que se viu no primeiro dia, mas Corretja fechou no quarto set, com parciais de 6/3, 7/5, 4/6 e 6/4.
— Ainda lembro como se fosse hoje o último ponto, um ace aberto na direita dele — diz Corretja, que considera aquele triunfo como um dos mais importantes em sua carreira na Davis.
Restava a esperança de Meligeni surpreender Moya, o que parecia possível após um primeiro set equilibrado, em que o espanhol venceu somente no tiebreak. Mas o brasileiro não aguentou a "pancadaria" do adversário e perdeu por 3 a 0.
— Sempre foi mais difícil para mim jogar contra o Moya do que contra o Corretja — lembra Meligeni.
Enquanto a Espanha festejava, a torcida se despedia de um final de semana com tênis de alto nível gritando palavras de incentivo aos brasileiros. Os vencedores deram a volta na quadra e, depois da entrevista coletiva, já no Leopoldina Juvenil, atiraram-se na piscina.
Para Guga, Meligeni, Oncins e cia., ficou a dor de ter fracassado após chegar tão perto da façanha, mas logo veio a revanche. Em 1999, o Brasil venceu a mesma Espanha, na casa deles, por 3 a 2, também pelas oitavas de final.
Na Capital, os fãs de tênis nunca mais viram algo parecido com aquele final de semana. Nem mesmo quando a Davis voltou a Porto Alegre, com o confronto contra o Equador, em 2009. Há 20 anos, o tênis parou a cidade, motivou a construção de uma improvável arena no meio do parque e despertou reações apaixonadas que, como bem lembrou Corretja, só o futebol costuma produzir.