Ele estacionou a caminhonete preta às 15h03min, perto das quadras de saibro de tênis do Hotel Costão do Santinho, no Norte da Ilha de Santa Catarina. O céu estava limpo e a temperatura agradável para bater uma bolinha. Era exatamente isso que faziam, munidos de suas raquetes, cerca de cem garotos, de cinco a 10 anos.
Mas, assim que Guga marcou o solado de seu tênis na terra vermelha, tudo parou. Os olhares surpresos se estenderam ao ídolo de cabelos enrolados. Não só meninos e meninas pararam. Os pais se alvoroçaram bem mais com a inesperada presença de Gustavo Kuerten, que foi ao local prestigiar o torneio da Escolinha Guga.
O "labrador humano", apelido que ganhou durante a Olimpíada do Rio por ser dócil, mexe mesmo com as pessoas.Guga, 40 anos, desceu do carro com sorriso no rosto. Vestido de bermuda e camiseta, o maior nome da história do tênis brasileiro não conseguia dar dois passos sem ser requisitado. Além de participar do evento, ao qual compareceu sem avisar para evitar grande aglomeração, o ex-jogador concederia entrevista para falar, entre outros assuntos, dos 20 anos da histórica primeira conquista do torneio de Roland Garros, em junho de 1997, fato que alçou o brasileiro ao topo do da modalidade.
– Vai passando o tempo e a gente vai tendo mais noção da façanha que foi aquele título. (Foi) Totalmente inesperado – lembra.
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Ao final do bate-papo, Guga, depois de falar de Roland Garros, família, projetos, política e Lava-Jato, caiu nos braços dos torcedores. Melhor: atirou-se no chão para fazer uma foto com a gurizada. Em seguida, foi para a quadra se divertir.
– Dei um sufoco nele – brincou Bruno Hashimoto, oito anos. – Ele é um cara legal.
Verdade, Bruno. Guga é um cara bem legal.
Qual a maior transformação em sua vida desde o título de Roland Garros, em 1997? O que aconteceu nestes 20 anos que o marcou mais?
A vida muda por completo. É inevitável. As pessoas começam a ter uma relação diferente com você devido ao sucesso na carreira. E isso em uma escala de centenas de milhões. A vida imediatamente toma outro rumo, vira de cabeça para baixo, de maneira incontrolável. Para mim foi um pouco mais fácil por entender que, mesmo muito jovem, sabia que era aquilo que eu queria. Desde jovem você pensava em jogar tênis, fazer carreira no esporte?Sim. Só não imaginava ser tão rápido. Eu pensava em ser um tenista profissional, mas ganhar um Grand Slam parecia algo distante. Sempre fui fascinado pelo ambiente do tênis, como esse esporte contagia as pessoas.
Você gosta desse contato com o público? Você sempre foi uma pessoa carismática...
Sempre fui privilegiado com a atenção que recebi. Uma conexão bem carinhosa, mais brasileira, mais profunda. A relação do fã com o ídolo na Europa e nos Estados Unidos é bem diferente, um pouco menos calorosa, mais distante. Faz parte da nossa cultura. É uma grande recompensa esse bem querer que as pessoas têm por mim. Uma satisfação imensa.
Às vezes incomoda?
A dedicação e o empenho de alguns torcedores são grandes. Há pessoas que vivem intensamente essa relação, envolvem-se profundamente, querem uma superatenção. Sempre procurei enxergar o lado positivo, nunca me estressei muito com isso.
Você mudou muito nestes 20 anos?
Mudaram as formas e as perspectivas da vida. Por exemplo: em 1997, eu ainda não tinha noção da grandiosidade de ganhar Roland Garros. Foi uma diversão vencer na França, mas não sabia exatamente o que o torneio significava. Hoje é muito diferente observar a história. É inacreditável a maneira como ganhei a competição. Se não tivessem filmado, ninguém acreditaria. Eu revi o vídeo há pouco tempo. Nossa, era impossível. E aconteceu.
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Você ainda se emociona ao rever os jogos?
Bastante. Hoje até mais. Vai passando essa janela de tempo e a gente vai tendo mais noção da importância e da própria façanha que foi aquele título. Porque no tênis não existe muito isso de um cara desconhecido chegar e vencer um Grand Slam. Sempre são os melhores do mundo, um europeu, um norte-americano. E aí acontece o inusitado: um jogador que nunca chegou a uma semifinal de qualquer torneio, brasileiro, desengonçado, com uma roupa medonha, vai lá e ganha de todos. Isso é totalmente inesperado. Depois que a gente conhece o circuito, percebe que é mais impossível ainda. Mais tarde, joguei como favorito e vi que atletas colocados entre os 20 melhores do ranking mundial têm poucas chances de vencer. Imagina então quem é o número 50. Um jogador que jamais venceu um torneio dificilmente vai conquistar um título desse tamanho assim, do nada. Ele tem de passar por muitas fases antes. É que nem o futebol: precisa ganhar etapas antes, ganhar o Estadual, depois o Brasileiro, a Libertadores e o Mundial.
Mas o futebol reserva surpresas.
Não nessa escala. É preciso subir os degraus, como em todos os esportes. Você pode ganhar uma partida, mas não o campeonato de pontos corridos. Você pega uma Zâmbia, por exemplo. Ela não será campeã do mundo no futebol. Não acontece. No tênis, nos últimos cem anos, aconteceu cinco vezes. Que bom que vivi isso e soube lidar com aquela situação. Lembro que saí de Curitiba, de um torneio que havia ganho na semana anterior à ida à França, com a confiança alta – justamente por conta daquela vitória. Era tipo sair do Campeonato Estadual (de futebol) e ir jogar uma Copa do Mundo contra grandes seleções. Impensável.
E, na chegada a Paris, tomou um susto?
Encontramos (com o técnico Larry Passos) novas situações, tendo de resolver questões que tínhamos vivido. Ganhava um jogo e avançava. O Larry foi muito sábio em controlar minha ansiedade e, principalmente, minha rotina. Ele não deixava eu pensar o que era Roland Garros. Se eu pensasse, naquela época, ia tremer todo e cair duro. O único jeito era não saber bem o que haveria pela frente. Tinha uma montanha para subir a cada jogo. Lembro que estava perdendo para o Muster (o austríaco Thomas Muster, pela terceira rodada), um jogo praticamente perdido no quinto set, 3 a 0, aí o Rafa (Rafael Kuerten, irmão de Guga) berrou "Vai, mano", e consegui vencer o Muster, um cara que era uma fortaleza física contra um garoto magrinho como eu... Foi demais. Na rodada seguinte, venci o Medvedev (o ucraniano Andrey Medvedev), num jogo que começou em um dia e terminou no outro. Você tenta dormir, mas não consegue.
Você não conseguia dormir?
Às vezes, não. Mas, com 20 anos, tranquilo, ia direto. Descansava depois, não era hora de dormir. O segredo é que eu enfrentava os desafios de uma maneira divertida. Porque, se eu levasse a sério, não ia aguentar. O Larry é que suportava a pressão, tinha experiência para lidar com as situações. No dia que ganhei do Medvedev, tive pânico ao entrar na sala de imprensa. Olhei e havia uns 150 jornalistas para falar comigo. Eu estava acostumado a dar entrevista para dois... Perguntaram: "Qual é o maior jogador do mundo?". Respondi: o Jacaré (ex-jogador do Avaí, o time de futebol do coração de Guga). Só de pensar que tinha de falar em inglês dava arrepio. Era assustador, mas, ao mesmo tempo, inspirador. Fui desbravando, brincando, sorrindo, tudo de forma emocionante. Os jogos eram decididos em cinco sets, um absurdo. Por incrível que pareça, na reta final ficou mais fácil. As semifinais e a final foram mais tranquilas. O único campeonato que eu não deveria ter ganho era este... A turma até diz que, no ano seguinte (em 1998), eu fui mal. É uma análise equivocada. É que, naquelas duas semanas em Paris, em 1997, fiz coisas inacreditáveis. Naqueles dois anos deu para perceber que eu tinha qualidades para ter uma grande carreira.
Mas a guinada se deu a partir de Paris.
Sim. Mudou da água para o vinho. Tudo simplesmente aconteceu. A tua vida passa a ser vivida por outras pessoas, na casa de centenas de milhares de pessoas. Naquela época, eu ia a um torneio e havia 50 mil pessoas querendo me ver, se aproximar, tirar uma foto. E ainda não tinha celular. Hoje está mais difícil, tem autógrafo, selfie, snap, vídeo... Vão aumentando as demandas.
Você é ligado em rede social?
Pouco. Sou uma cara de "alma social". Gosto disso aqui (aponta para o ambiente cheio de crianças). Mas meus filhos (Maria Augusta, de cinco anos, e Luiz Felipe, quatro) lidam muito bem com essas ferramentas. Minha filha mexe no celular melhor do que eu. Tem muita coisa boa na tecnologia. A vida corrida de hoje está um pouco lá dentro (da internet). Mas eu dedico pouco tempo para entender esse processo. Sou de uma época em que se mandava carta, cartão-postal, ligava-se de orelhão para casa. As possibilidades hoje são gigantes, mas eu só faço o básico: sei mandar um e-mail, postar uma foto no Instagram, enviar uma mensagem no WhatsApp. E não passa daí. Mas tenho uma turma que me ajuda.
Você ainda continua viajando muito para participar de eventos pelo mundo. Como é ficar longe da família?
Tive a experiência de conviver apenas oito anos com o meu pai (Aldo Amadeu Kuerten morreu aos 41 anos de ataque cardíaco quando arbitrava um jogo de tênis infantil em Curitiba) e a minha mãe (Alice Kuerten) viajava muito. Em uma semana, ela ficava três a quatro dias fora por causa do trabalho – ela era técnica que atendia pela Telesc em outras cidades. Mas, vou te dizer, ela nunca esteve ausente. Quando estava próxima, gastava muito carinho e energia comigo e meus irmãos. Hoje eu vejo bastante os meus filhos, minha família, ao contrário de quando eu estava no circuito: ficava nove meses fora de casa durante o ano. Mas não é a presença física que importa, muitas vezes. O que vale é o que a gente troca quando está junto. Tem de fazer render estes momentos.
Como vocês se divertem?
A simplicidade move tudo, ainda mais com crianças. É preciso manter a essência. Um exemplo de que tudo pode ser fácil com eles: no fim de semana, pegamos os pequenos e fomos à beira-mar catar conchinhas. Eles adoraram. Não gosto de planejamento com eles. Quanto mais orgânica for a relação, quanto mais momentânea for a decisão, melhor. O desafio é oportunizar encontros em ambientes bons, que eles possam estar livres.
Você pensa em ter mais filhos?
Eu não penso em muita coisa, não. Acho que dois está legal. Três seria bom, quem sabe quatro? Não sou de planejar essas coisas. Hoje temos dois, está formidável. O maior desafio da minha vida é ser um exemplo para eles, como meus pais são para mim. Fui criado assim. Minha missão é proporcionar a outras pessoas os sabores, as experiências que eu próprio tive ao longo da vida. Pense bem, os títulos são importantes, é claro, mas a história de vida é que me traz orgulho. É isso que é mais fascinante. O empenho dos meus pais em formar três filhos... Isso é demais. Tive sorte de ter um irmão que se dedicou à minha carreira, abriu o espaço para eu ser protagonista. E ainda tive uma experiência de ter um irmão deficiente físico (Guilherme Kuerten, nasceu com lesão cerebral e morreu em 2007). Ele me deu chance de ver a vida mais clara, em outro prisma.
Seu amadurecimento acabou vindo rapidamente?
Você acaba encontrando-o (risos). Fiquei atento rapidamente. Mas encontrei a felicidade muito rápido, também. A diversão e o bom humor são meu canal para a vida. São o que me dá fôlego para viajar, fazer essa integração com as pessoas.
O Brasil tira o seu bom humor? Já pensou em ir morar fora do país?
Seriamente, nunca havia pensado em sair daqui. Mas, hoje, focando nos meus filhos, acabo tendo dúvidas em permanecer. Vivo em diálogo interno constante. Quando bate forte essa dúvida sobre permanecer ou sair, tento ver uma forma de como posso gerar oportunidade e experiências saudáveis para eles aqui no Brasil. Temos um sabor como povo, temos relações que não vejo repetirem-se lá fora. Mas, se for analisar infraestrutura, segurança, educação, toda a gama de possibilidades sociais, eu não sei o que poderei dar aos meus filhos. É isso que faz a gente pensar mais a fundo. Mesmo tendo uma vida privilegiada... Por isso eu tento, por intermédio do Instituto Guga, mobilizar as pessoas. É uma pena o desperdício que vemos no Brasil, em todas as esferas. O país é um gigante falido. Hoje viver no Brasil é só para quem realmente quer. Tem de gostar muito. Se pensar um pouco, o cara pega as malas e vai embora.
Lá fora, as pessoas questionam você sobre o Brasil?
Bastante. São curiosas sobre tudo o que acontece aqui. Desde a época que surgi para o tênis. Ainda hoje querem saber. Já houve fase que o país era admirado lá fora, mas agora foi tudo abaixo de novo. Já foi a galinha dos ovos de ouro e agora é patinho feio. É cíclico. Há cinco anos, era o grande querido do mundo. Mas esse é o Brasil que estamos acostumados, nunca foi diferente. Sempre esmagou as pessoas boas. Gerou pouca oportunidade e sobrevive quem tem uma condição mais favorável. Leva muitos a desistir e buscar outros caminhos. Esmaga os grandes transformadores, pessoas que pensam em trazer bens coletivos. O país praticamente os expulsa, não dá espaço. É o país do oportunismo.
O que o irrita no cenário político atual?
No Brasil, ou você é favor ou é contra, e isso não é bom. É preciso trabalhar de forma mais densa para melhorar, ser mais comunitário. É preciso ter mais generosidade, o que não se vê mais nos dias de hoje. Em um tempo não muito longe, as pessoas se respeitavam mais, se ajudavam mais. O individualismo tomou conta. As pessoas pensam excessivamente em ter coisas. Pensam só na sua rua, na sua casa, na sua família. E nas dos outros? Nossos exemplos são assim. A colônia de milhões de brasileiros trabalha para sustentar o império que são os governantes, que são os piores exemplos. A caneta de grandes decisões, infelizmente, está na mão deles.
Você não vê luz lá na frente?
O interessante, nos últimos cinco anos, é que as pessoas se mostraram mais inconformadas com essa situação. Querem fatos novos. Não dá para acreditar que o país viva problemas tão graves de violência, de educação e saúde. Mas, é claro, se a cada ano são desviados R$ 50 bilhões, não tem como dar certo. Nem se fosse a Alemanha ou qualquer outra potência mundial.
Nesse contexto, como você enxerga a operação Lava-Jato?
Essa impunidade tem de acabar. O rodízio de pizza está eternizado há 500 anos. Isso não pode ser assim. A gente tem de trabalhar esferas menores, contagiar pessoas com coisas boas. Ainda bem que existe uma corrente paralela, com pessoas persistentes, que continuam investindo e pensando o bem, acreditando. Que tipo de país os governantes pensam em deixar para os seus filhos? Isso me deixa louco. É um Deus nos acuda. Aqui em Floripa estão queimando ônibus, o que é isso! É um rumo desesperador. As investigações da Lava-Jato e as consequentes punições dão esperanças para as pessoas. Recuperar a autoestima é uma ação imediata. Depois, gerar educação e oportunidades decentes. Aqui, no Instituto Guga Kuerten, trabalhamos com 700 crianças. Estamos fazendo a nossa parte, contribuindo de alguma forma. É a vida que cabe a nós.