O lateral-esquerdo Cristiano usa o celular como microfone e entrevista os companheiros com um vozeirão empostado que não é o seu aos 21 anos. Ninguém fica em paz com ele por perto na concentração do estádio do Gaúcho, em Passo Fundo, ou no ônibus da delegação. De repente, os jogadores dormindo, ele grita goool do "Periquito" e sacode a paz do ambiente. Alegra alguns e irrita outros.
Mas a caminho do Estádio Estrela D'Alva para o primeiro jogo da decisão da Terceirona na quarta-feira, o presidente do clube, Gilmar Rosso, pediu foco e cancelou as brincadeiras de Cristiano.
– Quero atenção geral, não tem nem narrações de gol a caminho do estádio, viu Cristiano? Vamos é fazer gols neles – ordena o dirigente.
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Como repórter, Cristiano é um bom lateral-esquerdo. Nos primeiros minutos do jogo em Bagé, ele avançou como ala e acertou um cruzamento perfeito como raramente se vê no futebol brasileiro – e o lance só não deu em gol porque foi desperdiçado pelo atacante Gabriel ao cabecear nas mãos do goleiro Bernardo, do Guarany.
Para lidar com os seus novatos como Cristiano, Gilmar Rosso instituiu um incentivo animador. Paga R$ 1 mil pelo gol feito fora de casa. Agora, nas finais, o bônus passou a R$ 2 mil. Tem mais. Ao término da competição, quem jogar todas as partidas terá direito ao salário dobrado e retroativo. Esse prêmio é proporcional. Cerca de 30% dos 25 jogadores deverão receber 90% a mais de salário ao final da competição.
Zagueiro receberá o dobro por ter sido o que mais jogou na competição
O incentivo mais curioso é o concedido pelo gol marcado com cruzamento em diagonal, de pé trocado. São R$ 150 pagos na hora, ao final do jogo, em casa ou como visitante. Pode parecer estranho a escolha deste lance tão banal em campo. Por que não gratificar pelo gol na cobrança de falta, de cabeça ou de contra-ataque, por exemplo?
– Acontece que o gol de pé trocado no cruzamento para a área é mais fácil do que se pensa. O goleiro adversário está preocupado com a chegada dos atacantes e não consegue acompanhar a trajetória da bola. Se ela for a gol, entra. É fácil, e ninguém faz. Por isso, eu pago para ver.
A filosofia do presidente é um misto de técnica de futebol e incentivo por produtividade que ele aplica em sua empresa, uma distribuidora de artigos médicos em Passo Fundo. Militar e professor de sociologia e história aposentado, Rosso está no clube desde 2010 e empreendeu uma epopeia que salvou o Gaúcho da ruína.
De um clube endividado, de portas fechadas, que entregou a leilão o histórico Estádio Wolmar Salton, onde jogaram Bebeto, os irmãos Pontes e Luiz Freire e que enfrentou mais de 300 ações na Justiça, o Gaúcho transformou-se em rara agremiação com a certidão negativa de dívidas na Receita Federal, assumiu a concessão do Ginásio Teixeirinha e amarrou parceria com o empresariado local para a construção de sua nova casa recém inaugurada em abril, a BSBios Arena, com capacidade para abrigar 5 mil torcedores. A proeza do Gaúcho foi parar na primeira página de um caderno semanal do jornal Valor Econômico, de circulação nacional.
O zagueiro Bruno é o maior favorecido do pacote de incentivo. Só ele encerrará a competição participando de todos os 20 jogos – a menos que algo inusitado o retire da final deste domingo. Seu salário de R$ 1,5 mil passará para R$ 3 mil, retroativo ao início do campeonato. Não ganhará só isso.
Quando o Guarany vencia por 1 a 0 e dominava a partida da última quarta-feira no Estrela D'Alva, em meio ao frio de 4ºC e sensação térmica de 0ºC, nada indicava reação do Gaúcho antes do final do primeiro tempo.
Então, com a sorte grande, a bola se ofereceu a Bruno na entrada da área, e ele bateu forte, aos 30 minutos de jogo. Ela saiu rascante para o fundo das redes bajeenses. O empate com gol qualificado fora de casa àquela hora era um grande negócio ao Gaúcho. Melhor ainda para Bruno. Ele garantiu aliR$ 2 mil, voltou para casa com a gratificação.
Mas o Guarany fez 3 a 1, e levaria para a final deste domingo uma vantagem razoável não fosse outra sorte grande do Gaúcho. Já se encaminhando ao final, aos 34 minutos do segundo tempo, o lateral Cristiano, chutou a gol, sem pretensões. A bola bateu na zaga e desviou do goleiro Bernardo. Era o
3 a 2. O resultado manteve vivo o Gaúcho na decisiva da BSBios Arena. E o gol colocou R$ 2 mil no bolso do ala esquerdo. Cristiano passou o restante da volta de sete horas de viagem até Passo Fundo narrando o seu próprio gol, para desespero dos colegas.
O projeto de Passo Fundo sensibilizou o meia Adilson. Ele já havia largado o futebol depois de ter jogado pelo União Frederiquense no segundo semestre do ano passado. Foi trabalhar na empresa de estruturas metálicas que o pai mantém em Sorocaba, no interior paulista. Pilotava empilhadeiras. Mas a família é de Passo Fundo, e ele preferiu voltar.
Aos 30 anos, Adilson se juntou ao grupo. Encontrou um antigo conhecido. O volante Felipe, 10 anos mais novo, costumava entrar em campo nos jogos do Gaúcho carregado pelo ídolo Adilson. Hoje trabalham lado a lado. Felipe é filho de ex-presidente do clube, o conselheiro Otelmo Borowski, que acompanha a delegação por onde vai o Gaúcho.
A região de Passo Fundo vive esse embalo do clube. É uma façanha perseguir o título da Terceirona já no primeiro ano de arena aberta. Por isso, algumas providências foram tomadas nesta final. A começar por evitar a hospedagem em Bagé.
Na semifinal, o Nova Prata hospedou-se na cidade, e seus jogadores mal conseguiram dormir com o barulho de foguetórios. Para fugir deste cenário, o Gaúcho se hospedou em Caçapava do Sul, a duas horas de Bagé. O grupo dormiu tranquilo, jogou carteado, ouviu a palestra do técnico Ricardo Attolini ao fundo do restaurante do hotel e seguiu viagem a Bagé. Pouco antes da primeira final, na quarta-feira à noite, enquanto o técnico Ricardo Atolini falava ao grupo no vestiário, os jogadores davam as mãos com expressões contritas reunidos no vestiário, postados em círculo.
De uma pequena janela basculante, torcedores do Guarany gritavam desesperados para dentro do vestiário do Gaúcho.
– Não adianta rezar. Aqui não tem pra vocês...
*ZHESPORTES