Do fundo, eles se parecem com borboletas, saltando em silêncio no halfpipe e pulando muito mais alto que as paredes, dando giros e voltas, como luzes coloridas em meio ao mar de branco. Só depois que eles param e levantam seus óculos de mosquito é que podemos ver os dreadlocks e as barbichas, os logos da Rockstar e do energético Monster, as capas coloridas e os fones de ouvido onipresentes.
Os snowboarders ficam fechados nas próprias cabeças enquanto competem, sempre acompanhados pela trilha sonora pessoal. Os praticantes levam à sério o estilo de vida e a comunidade, mas nesse halfpipe belo e remoto, ficam mais focados e distantes do grupo.
Todo ano em agosto, os melhores snowboarders do mundo vêm realizar grandes saltos e manobras que desafiam a gravidade nessa cidadezinha escondida pelas montanhas e cercada de ovelhas. Os atletas vêm para cá por uma única razão: Wanaka é o único halfpipe olímpico aberto no mundo todo nessa época do ano.
Isso significa que, especialmente com a chegada do ano olímpico, Wanaka se torna o ponto central dos saltos aéreos e das voltas de 360 graus que seriam improváveis em qualquer outro lugar do planeta.
- Somos uma comunidade e há muito apoio, não importa onde estejamos. Porém, não posso mentir: as coisas estão muito mais intensas do que de costume - afirmou Gretchen Bleiler, vencedora da medalha de prata para os Estados Unidos nos jogos de Turim em 2006.
Os dias começam antes do amanhecer, quando os atletas enchem vans para a viagem de uma hora montanha acima.
Ao fim da tarde, eles retornam para a cidade e enchem as academias, perfeitamente cientes de que os amigos com quem treinam também são seus competidores.
- É como no filme 'O Feitiço do Tempo'. A mesma coisa acontece todos os dias - afirmou J.J. Thomas, americano que ganhou a medalha de bronze em 2002, no Jogos de Salt Lake.
Entretanto, em Wanaka, os dias são interrompidos por passeios a lugares tão incríveis que poderiam ser colocados em um globo de neve. É um espaço de camaradagem, onde os atletas da Noruega e da Rússia, da Espanha e do Japão podem compartilhar as pistas durante a tarde e, com frequência, uma cerveja Speight nos pubs locais durante a noite.
Contudo, esse também é um espaço de competição e muito tensão. Afinal de contas, os Jogos Olímpicos de Inverno estão programados para fevereiro e há mais atletas excepcionais no halfpipe do que vagas em Sochi, na Rússia.
Apesar de toda a beleza natural, o halfpipe é claramente a principal atração do local. É lá que a turma do freestyle revela a mentira por trás daquele papo de diversão e audácia. É lá que um quadril virado ou um pé torcido pode embaralhar a cabeça e comprimir a espinha.
Quando o halfpipe fica barulhento, todo mundo sabe que algo terrível aconteceu. Acidentes ocorrem quase todas as manhãs: ombros deslocados, roxos e pontos. Mas as vezes a coisa fica feia.
Certa manhã, com o sol formando uma aura vermelha na montanha e a neve fresca formando o que parecia ser um travesseiro confortável, o halfpipe ficou barulhento. Tudo começou com um grunhido coletivo e um estampido assustador, quando o americano Luke Mitrani despencou 12,2 metros e caiu de costas, como se tivesse sido atirado de um canhão.
Os atletas ficaram loucos. Alguns foram ver de perto antes de saírem da montanha. Ninguém mais tinha pique para treinar. Quase todos viraram o rosto quando o snowmobile chegou e Mitrani foi colocado gentilmente na maca. Em seguida, um helicóptero chegou e Mitrani, de 23 anos, foi levado em um voo de duas horas até Christchurch.
Bem vindo à Terra Média
Esse não é o país certo para quem sofre de vertigem. Estradas estreitas com ziguezagues sinuosos cortam os Alpes do Sul, o nome dado para esse conjunto de montanhas na Ilha do Sul, na Nova Zelândia, pelo explorador britânico James Cook, em 1770. A estrada não tem grades de proteção e a equipe americana mal consegue olhar os desfiladeiros e as quedas arrasadoras pela janela da van. Muitos deles têm vindo para cá há mais de uma década, mas é difícil se acostumar com essas estradas.
Para diminuir o tédio, os snowboarders transformaram as tardes de agosto em um acampamento extremo, espalhando-se pelos quatro cantos da Terra Média - ou, ao menos, a versão cinematográfica do universo ficcional de J.R.R. Tolkien. As florestas tropicais encantadas, as piscinas geotérmicas e as geleiras etéreas tornam a região o local perfeito para o neo-zelandês Peter Jackson e sua trilogia "O Senhor dos Anéis", além de um parque de diversões irresistível para a turma do snowboard.
Na equipe americana, Arielle Gold, de 17 anos, e o irmão Taylor, de 19, foram pular de paraquedas. Louie Vito é um veterano do bungee jumping e Elena Hight andou de caiaque e paraglide no Lago Wanaka.
A outra integrante da equipe, Kelly Clark, que ocupa o topo do ranking mundial do halfpipe feminino, foi andar a cavalo com duas mulheres da equipe suíça. A equipe canadense foi surfar e observar os pinguins a três horas dali, em Dunedin. Thomas estava em uma pista de golfe com Kim-Rune Hansen da Noruega, algo que fazem todos os dias.
Certo dia, Vito, de 25 anos, e Hight, de 24, pilotaram as vans americanas e lideraram uma expedição montanha abaixo até Queenstown para que todos andassem de skate, jogassem disc golf e visitassem uma casa assombrada. Vito e Hight vêm para cá todos os anos em agosto desde os 13 anos de idade - e reconhecem as contribuições da Nova Zelândia para o esporte.
Todos os snowboarders influentes - como Craig Kelly, o padrinho do free-riding; Terje Hakonsen, o norueguês mais famoso; e Shaun White - passaram pela Nova Zelândia em agosto. Vito e Hight querem incluir seus nomes à lista.
Um dia ansioso no Benny's
O sol ainda não havia se posto no Benny's Cafe, e o cheiro dos bolinhos se misturava com o chiado da chaleira. As pranchas estavam sobre o balcão, onde haviam ficado desde a uma da manhã, quando Ryan McDermott, o americano cheio de dreads que é dono da loja, havia decidido que todos estavam devidamente encerados e ajeitados e que era hora de curtir a noite.
Entretanto, naquele dia o acidente de Mitrani pairava sobre o Benny's como a neblina da manhã. Era um lembrete muito contundente de quão perigoso o snowboarding pode ser quando alguém tenta fazer algo espetacular.
- Foi a C5, mas a cirurgia foi bem - afirmou Vito, citando qual vertebra havia se partido.
Em pouco tempo, Vito e os outros já estavam de volta à montanha, voando pelo ar e trabalhando suas manobras arriscadas.
- Ele vai ficar bem - afirmou Hight, torcendo para estar certa.
Mitrani chegou à equipe americana de snowboard aos 12 anos de idade, a pessoa mais jovem a alcançar esse feito. Seu ano havia sido bom e ele torcia para chegar à primeira Olimpíada de Inverno.
Agora, os membros da equipe esperam por novidades sobre seu futuro.
Porém, certamente Mitrani está fora dos jogos de 2014 e provavelmente de todos os outros. Seu pescoço foi imobilizado por no mínimo 12 semanas, para que o osso possa cicatrizar. Ele afirma que tem sorte de poder andar.
Mitrani não consegue falar sobre o acidente sem que o coração dispare e a voz vacile. Ele estava no meio de uma espiral frontal dupla quando percebeu que tinha ido longe demais e cairia longe do halfpipe. Ele se esticou inteiro para evitar mais um giro e caiou de costas como um disco de chumbo.
Quando saiu da cirurgia, Mitrani foi informado de que tudo correu bem e de que voltaria a andar, mas, ainda assim, ele se negou a dormir por dois dias.
- Eu estava assustado demais para relaxar. Tinha certeza de que acordaria paralisado - afirmou.
Mitrani não tem ideia do que o aguarda no futuro. Ele não sabe o que fazer com a vida que deixou para trás. Sozinho no helicóptero, ele descobriu que uma coisa era verdade.
- Pensamos que tantas coisas são importantes, quando isso não é verdade. A família e os amigos são o que importa. Eu queria viver mesmo que ficasse paralisado. Para mim, perder a vida não valia a pena - afirmou.