Na semana em que a Dupla retoma o principal torneio de clubes do continente, GaúchaZH apresentou a série Histórias da Libertadores, ouvindo personagens que marcaram épocas importantes para o futebol gaúcho. Foram textos em primeira pessoa, extraídos a partir de depoimentos dos entrevistados.
Até agora, quatro jogadores relembraram momentos em campo e nos bastidores das principais conquistas da Dupla. No lado tricolor, Osvaldo, meia campeão em 1983, e goleiro Murilo, que atuou no bi em 1995. Das lembranças coloradas, o atacante Michel e o volante Tinga, campeões em 2006 e 2010.
O encerramento é com uma figura neutra: o ex-árbitro gaúcho Renato Marsiglia, 68 anos. Um dos mais importantes árbitros do Brasil, teve seu auge na Copa do Mundo de 1994, ano de sua aposentadoria. Entre 1998 e 2018, foi comentarista da Rede Globo e dos canais SporTV.
Marsiglia escolheu duas histórias dos anos 1990 para relembrar seus maiores perrengues na Libertadores, que serão contadas em ordem cronológica.
Libertadores 1991 — Semifinal — Colo-Colo 3x1 Boca Juniors
"A primeira foi em 1991, semifinal no Estádio Monumental, em Santiago, que tinha sido recém construído. Colo-Colo versus Boca Juniors. O Boca tinha uma equipe de altíssimo nível, com Navarro Montoya, Diego Latorre, Batistuta.
O jogo estava 2 a 1 para o Colo-Colo, que levava a pênaltis, teve um ataque e um jogador do Colo-Colo entrou sozinho com o goleiro. Olhei para o auxiliar, e o Manoel Serapião Filho me fez sinal que tinha condições, deixei correr e saiu o gol. Abre parênteses: depois, olhamos na TV e o gol foi legal mesmo. Fecha parênteses.
Os jogadores do Boca ficaram revoltados, correram para cima do bandeira. Nisso, os fotógrafos chilenos invadiram o campo, não tinha limitação de pessoas naquela época, era uma confusão, ficava difícil de limpar depois. Mas enfim, os fotógrafos entraram e provocaram os argentinos. Os jogadores foram brigar com eles. Então aconteceu o mais incrível: a polícia chilena, que tinha fama de ser muito firme, entrou em campo com os cachorros. E deixaram os cachorros irem para cima dos jogadores. O Navarro Montoya, goleiro, foi mordido.
A polícia chilena, que tinha fama de ser muito firme, entrou em campo com os cachorros. E deixaram os cachorros irem para cima dos jogadores. O Navarro Montoya, goleiro, foi mordido.
RENATO MARSIGLIA
Ex-árbitro
A partida ficou parada por uns 40 minutos. Mas naquele ponto, os jogadores do Boca nem discutiam mais o gol, estavam preocupados com os fotógrafos e com a polícia. O jogo recomeçou, conduzi até o final. Na verdade, tive jogo de cintura para segurar e não expulsar o time inteiro por conduta violenta. Levei em consideração que eles foram provocados e sofreram com fotógrafos e policiais. Expulsei um, que iniciou a confusão.
O jogo acabou, mas aquilo lá, de cachorro em campo com a polícia eu nunca mais vi em campo de futebol."
Libertadores 1994 – Quartas de final — Independiente 0x2 Junior
"A outra foi na Colômbia. Era quartas de final de 1994, entre Independiente de Medellín e Junior de Barranquilla. Isso é o auge dos narcotraficantes, que financiavam o futebol. Tinha muita ameaça contra nós. Na época, colocaram revólver na cara do Juan Carlos Lostau, da Argentina, no Gastón Castro, do Chile, e do Ernesto Filippi, do Uruguai.
A Conmebol tinha muita dificuldade para escalar árbitros. O Juan Londoño, presidente da Federação Colombiana, gostava de mim e queria que eu apitasse. Ele pediu ao doutor Abílio de Almeida, braço direito do doutor João Havelange, para me colocar no jogo. Mas o doutor Abílio não queria. Então o Havelange entrou em ação. Ligou para o Londoño e avisou: "Vou mandar o árbitro da Copa. Mas se encostarem um dedo no Marsiglia, eu risco a Colômbia do mapa da Fifa".
Fomos eu, João Paulo Araújo e o Ed Mauro Detofoli. Pegamos um voo para Bogotá, quando chegamos na conexão, se apresentou um oficial da polícia colombiana com mais meia dúzia de carabineros para nos conduzir até Medellín. Imagina a tranquilidade, né? (Risos)
O Havelange entrou em ação. Ligou para o Londoño e avisou: "Vou mandar o árbitro da Copa. Mas se encostarem um dedo no Marsiglia, eu risco a Colômbia do mapa da Fifa".
RENATO MARSIGLIA
Ex-árbitro
Ficamos no hotel Vera Cruz. Ele ficou famoso porque um bandeirinha (Álvaro Ortega) foi metralhado na porta. O árbitro Jesús Palacios estava junto, foi avisado na hora e conseguiu escapar. Nunca mais apitou. Então era esse lugar que ficamos, com ordens de não atender telefone e não falar com ninguém.
Três horas antes do jogo, o delegado da Conmebol nos chamou para ir ao jogo. Quando descemos, tinha tipo um tanque de guerra para nos levar, com motos na frente e atrás, todo mundo armado até os dentes. No caminho, o João Paulo me perguntou: "Marsiglia, para quê tudo isso?". Respondi: "Para entrar no estádio". Ele: "E para sair, como vai ser?". Disse: "Olha, vai depender da m... que tu fizer na bandeira". (risos)
O jogo em si foi tranquilo, não teve maiores problemas. A única coisa marcante é que, no intervalo, descemos para o vestiário e na Libertadores o pessoal atira coisas na nossa direção, como copos plásticos e coisa assim. No nosso caso, me atiraram um objeto. Me agachei e peguei: era uma bala de revólver."