Conta a história que os ingleses inventaram o futebol moderno, no século 19. Sem a pretensão de revisá-la, quero apenas incluir, com o aval da Conmebol, um asterisco ao fato: o futebol de verdade emergiu na foz do Rio da Prata. É nesta orilla del mundo (orelha do mundo) que habitam as entidades desportivas mais míticas do continente: Boca Juniors e River Plate.
O que pulsa no sul da América do Sul é um sentimento raro. Italianos, ingleses, espanhóis, gaúchos e índios formaram uma mistura explosiva e passional sem igual. O hincha porteño, produto futebolístico da fusão, tem um comportamento totalmente distinto dos outros torcedores. Os clássicos envolvendo esses clubes deixam as pessoas enfermas. O drama chega às raias do surreal.
Pois quis o destino que a última Copa Libertadores raiz, com finais em casa e fora, fosse definida justamente entre Boca Juniors e River Plate. É o ápice de uma fascinante rivalidade entre irmãos que nasceram no mesmo bairro e, apesar de terem tomado caminhos opostos, jamais deixaram de se amar e odiar com a mesma intensidade.
Originários da foz do Riachuelo, Boca e River já ficaram separados por somente 800 metros, se enfrentando no então Clássico Boquense. O River, fundado em 1901, quatro anos antes do Boca, acabou se mudando para a região norte de Buenos Aires, mais desenvolvida e rica, enquanto o rival permaneceu ligado às suas raízes operárias e humildes. Com o tempo, estabeleceu-se a disputa entre o time do povo e o time da elite, os Xeneizes (Genoveses) e os Millonarios (Milionários).
Seus dois estádios, La Bombonera e Monumental de Núñez, fazem aniversário no mesmo dia — 25 de maio —, que também é a data de criação do River, cujas cores são referências à bandeira de Gênova, de onde vieram os imigrantes que deram início a tudo isso. A divisão ocorreu quando os Millionarios, que não pretendiam ser um clube de bairro, deram adeus ao berço e ascenderam, a partir da década de 1930.
Quase um século depois, os dois irmãos voltam à cuna de origem para um duelo que transcende o esporte. Não existiu e dificilmente existirá uma final como essa. É como se o futebol tivesse um reencontro com si mesmo, com sua alma.
O vencedor será eternamente superior ao derrotado. Não importa se o time perdedor, ali na frente, conquistar outros grandes certames. Ele jamais conseguirá conter as lágrimas de dor e desespero que escorrerem na noite de 24 de novembro de 2018 no Monumental. A mística pulsa entre La Boca e Núñez, para o bem do futebol. Que inveja dos Xeneizes e Millonarios que escreverão, nas antigas arquibancadas de suas velhas canchas, este lendário conto.