Desde que começaram as especulações sobre o interesse do então candidato à presidência do Inter Alessandro Barcellos em contar com Miguel Ángel Ramírez para ser o treinador na temporada 2021, a expressão jogo de posição passou a fazer parte do vocabulário do futebol gaúcho. Ela já havia aparecido outras vezes, é verdade, especialmente no período em que Domenec Torrent foi técnico do Flamengo, e suscitou debates país afora. Trata-se de um conceito relativamente novo no país e que, por várias razões, pode ser mal interpretado.
Uma das razões para essa leitura equivocada está na origem: existe um certo preconceito quando se teoriza o futebol. Por ser uma manifestação popular, há uma resistência a explicá-lo como esporte e não só como paixão ou entretenimento. Mas também é verdade que o uso de palavras rebuscadas passa um ar pretensioso, que afasta a compreensão. A hora é de buscar um meio termo, ser didático mas não vulgar.
Outro fator que prejudica é que o jogo de posição não tem um oposto, como o estilo propositivo é antagônico ao reativo. O "contrário" é o clássico: ganhar errando menos (ou acertando mais) do que o adversário, mas sem necessariamente forçar essas situações.
Por isso, jogo de posição é, antes de tudo, uma ideia. Não é um sistema (como um 4-3-3 ou 4-4-2), uma estratégia (como atacar mais pelos lados do que pelo meio, por exemplo). É uma filosofia a ser aplicada em campo, baseada em três pilares: ocupação de espaços, posse de bola e criação de vantagens.
"A bola vai às posições, e não as posições vão até a bola", resume a frase de Juanma Lillo, treinador expoente da forma de jogar, com passagens por Espanha, México e Colômbia, atual auxiliar técnico do Manchester City, usado como referência por todos os estudiosos do futebol.
O conceito existe desde os anos 1950, mas foi aprimorado a partir de Johann Cruyff, primeiro no Ajax e depois no Barcelona. No clube catalão, Pep Guardiola popularizou-o de vez, aliando a beleza do jogo aos resultados (na temporada 2008/09, o time conquistou todos os seis campeonatos que disputou).
Retornando à frase de Lillo. Fazer a bola ir até as posições não significa que os atletas ficarão estáticos, como se fosse pebolim. Pelo contrário, para que haja o segundo item (manter a bola), é necessário que se movam constantemente. O que se pede é que essas movimentações ocorram dentro de um certo padrão. É a partir disso que se criará a vantagem que um time necessita para atacar e fazer gol.
— Um esclarecimento: posse de bola por si só não é sinônimo de jogo de posição. Para ser jogo de posição é preciso que tudo o que se faça tenha como destino criar alguma das vantagens (veja abaixo) — explica o espanhol Agustín Peraita, ex-técnico da base do Barcelona e autor do livro "Espacios de fase" (que chegará ao Brasil no próximo mês).
A ponderação do professor faz sentido. Não é porque um time troca 600 ou 700 passes em um jogo que estará fazendo jogo de posição. Mais: não é incentivado simplesmente entregar a bola a um companheiro, sem que haja o objetivo de criar vantagem.
Mas e o tempo? Uma coisa é implantar esse conceito no Barcelona, que já pensa assim desde a base, ou no Manchester City, rico o suficiente para contratar os melhores jogadores, outra é em um clube que não tem essa cultura nem o dinheiro para grandes investimentos. Peraita faz uma analogia:
— É como aprender português. Para um espanhol é mais fácil do que para um inglês, que vai ter de praticar muito. E vai ser mais difícil ainda para um chinês. Então o tempo vai depender de o quanto eles vão se esforçar e do quanto o professor é capacitado.
No caso do Inter?
— Precisa ter paciência e compreensão. Vocês verão que no início, vão ser alguns minutos do time praticando o jogo de posição antes de mudar para um método mais clássico. Aos poucos, vai aumentar o tempo até que seja rotineiro. Mas os atletas já mostraram capacidade de adaptação, quase foram campeões jogando de dois jeitos diferentes. E o professor é um dos melhores — elogia Peraita.
Vantagens
O jogo de posição consiste em movimentar jogadores e bola para gerar três tipos de vantagem (além da natural que a movimentação traz):
- Numérica: quando há mais jogadores seus do que do adversário, para fazer uma tabela e avançar;
- Qualitativa: quando seu jogador é melhor do que o adversário e consegue ultrapassá-lo no drible ou na força;
- Posicional: quando seu jogador está em posição melhor, seja por ter partido antes ou por estar mais bem colocado.
SITUAÇÕES
As imagens a seguir foram captadas no confronto Liverpool x Manchester City, pelo Campeonato Inglês, realizado em 7 de fevereiro em Anfield Road, casa do Liverpool. O time de Guardiola venceu por 4 a 1.
Saída de trás
Por ser baseado em ficar com a bola, o jogo de posição evita "sortear" a reposição. Até por isso os goleiros colorados passaram a participar dos treinamentos com os pés. Não quer dizer que não possa haver um passe longo, ao contrário: se o adversário pressionar muito, facilitará o lançamento direcionado, ainda mais no caso colorado, no qual Guerrero é um especialista nesse tipo de duelo.
Na imagem acima, o Liverpool põe três atletas para atrapalhar saída de bola do Manchester City, cortando os passes na linha de defesa O goleiro tem opções para começar a jogada antes de sua intermediária. Como os zagueiros estão pressionados, cabe ao atleta próximo à meia lua a missão de dar opção para receber a bola. Ele é chamado de "terceiro homem". Deverá ser acionado e, por estar de costas, já passar a outro companheiro, provavelmente o lateral, de preferência de primeira. Por isso exige-se tanto que esse jogador, normalmente o volante, tenha no passe e na leitura do campo suas principais virtudes.
Esse passe será fundamental para que haja a vantagem e permita a movimentação de todo o time em direção ao campo de ataque. Sempre em frente. Aquela chatice de bola do lateral para o zagueiro, para o outro zagueiro, para o lateral não é aconselhável.
— Isso apenas facilita a marcação do adversário — resume o técnico uruguaio Camilo Speranza, com passagens na base e como auxiliar de diversos clubes sul-americanos, em seu podcast Vantagem Numérica.
Campo de ataque
Thierry Henry, um dos maiores atacantes da história do futebol francês, contou que Guardiola disse aos jogadores nos tempos de Barcelona:
— Minha missão é conduzi-los até a última parte do campo. Depois é com vocês.
Essa última parte é chamada de terço final. Ou, basicamente, a região próxima à área do adversário — se preferir uma opção folclórica, radialistas antigos narravam "na zona do agrião".
Nessa região, os jogadores são estimulados a improvisar. Podem driblar, concluir, tabelar, agir livremente. E quanto mais espaço tiverem, mais vantagens terão.
A imagem mostra o Manchester City chegando nessa zona. O jogador está com o controle e tem quatro opções de passe para a frente. Dois permanecem abertos, quase na linha lateral. É o que se chama de amplitude. Outros dois correm em direção ao gol, para dar profundidade.
Todos têm pelo menos um tipo de vantagem. Os dois abertos (especialmente o da direita) têm a numérica (ele contra ninguém), a posicional (está em uma zona de definição) e a qualitativa (talento suficiente para progredir, no caso fazer o gol). Os centrais buscam a vantagem posicional para poder aplicar a qualitativa. Resta a quem estar com a bola tomar a melhor decisão e acertar o passe.
Sem a bola
Pois, basta ver pelo tempo de jogo da imagem que o passe foi errado. Seis segundos depois da chegada do City ao campo de ataque, é o Liverpool quem tem a bola.
A mudança de posse se deu por um erro e não por um desarme. O atleta que interceptou apenas conseguiu desviar a trajetória, e o rebote foi apanhado pelo volante de vermelho. Percebendo que ele não está equilibrado, não tem muitas opções de passe e já partiu em situação ruim, os jogadores de azul sobem a marcação e pressionam. E não fazem isso apenas para dificultá-lo. Não. Eles querem tirar a bola, recuperar a posse. Se der, ali mesmo, próximo ao gol, com oito jogadores na intermediária.
Assim, atacam, dão bote, desequilibram. São três em cima e um cortando a linha de passe. O jogador só consegue correr na direção da linha lateral, e em seu campo de visão não tem companheiro. Para não perder a bola, precisará chutar para cima ou para fora.
— O ideal é sempre pressionar, mas se os jogadores percebem que não vai ser possível, devem reagrupar e se posicionar para não estar em desvantagem em um contra-ataque — finaliza Peraita.