Na semana em que o Grêmio completa 120 anos de vida, GZH apresenta uma série de matérias especiais para comemorar a data. O material apresenta várias facetas da trajetória tricolor. Hoje, confira a história e os descendentes de fundadores do clube.
O Grêmio é um fenômeno da multiplicação. Uma única bola foi capaz de unir 31 homens para fundar um clube de futebol que hoje representa milhões de torcedores. Um clube que multiplicou seus anos de vida e nesta sexta-feira (15) completa 120 anos muito bem vividos.
A construção da história de uma agremiação desse tamanho acontece por meio de uma sucessão infinita das interações entre pessoas que comungam da mesma causa através do tempo. Para os tricolores espalhados nos mais distantes rincões, o Grêmio é o mundo. Por ele que 31 rapazes se reuniram na Rua 15 de Novembro, no centro de Porto Alegre, no Salão Grau. Desde o 15 de setembro de 1903 a cidade mudou. O clube se agigantou.
A 15 de Novembro foi rebatizada como José Montaury. O local de fundação deu espaço para os fundos da Galeria Chaves. O Grêmio surgiu com tanta força que um 32º nome foi adicionado à primeira ata dias depois. Para ser tão grande necessita-se de coragem e dinamismo. O que não faltou nas andanças tricolores pelo planeta bola e em embates capazes de dar alegrias nas conquistas e calejar nas horas de dificuldade.
Um curso de uma vida longeva tem seu preço. A construção da memória não é tão simples quanto parece. A cada ano se apagam um pouco as lembranças dos primeiros dias. A cada 90 minutos, o Grêmio reforça a sua imagem, mas o passar do tempo deixou aqueles 32 rostos imemoriais.
São faces de um mundo analógico e anônimas nos tempos atuais. Parte da história, teve apenas registros orais. E, ao passar dos anos, as vozes se dissipam em partículas que em muitas situações se tornam impossíveis de se unirem novamente para contar o todo de uma vida mais que centenária.
Aconteceu um pouco com o Grêmio. Parte daquele cenário dos fundadores se esvaiu. GZH procurou descendentes de três dos homens que tiveram papel fundamental no início da história tricolor. Através deles, se contará um pouco dos primórdios dos 120 anos de vida do Grêmio Football Porto-Alegrense.
O artilheiro
Era apenas mais um dia de trabalho quando Leandro aprendeu a força do sobrenome Kallfelz. O empresário de 47 anos foi fechar negócio com um cliente quando foi surpreendido.
— Ele disse que me recebeu só por causa do meu sobrenome. Disse isso e tirou da carteira um papel com a escalação do Grêmio do primeiro Gre-Nal. Falou que a partir dali, eu era o ídolo dele — conta, às gargalhadas, Leandro.
O time do retumbante 10 a 0 começa com um Kallfelz. O goleiro gremista daquela tarde de 1909 era Guilherme Kallfelz Filho, tio do avô de Leandro. A partir deste ponto a história dá um nó nas memórias da própria família.
Leandro procurou outros membros do clã para conseguir mais detalhes sobre seu célebre ascendente. A octogenária Tia Lucinha não conhecia nenhum Guilherme da família. Falava apenas de um tal de Willy que tinha jogado no Grêmio. Donde, no meio do papo, se descobriu que o guarda-redes do clássico número 1 chegou ao Brasil vindo da Alemanha e trocou o Wilhelm pelo equivalente em português. Confusões linguísticas à parte, a linhagem de gremistas dos Kallfez segue a todo vapor.
— Meu vô sempre disse que por causa dele não tinha como não sermos gremistas — lembra Leandro.
A história de Kallfelz vai muito além daquele jogo histórico. Não se sabem as razões que o levaram a jogar no gol naquele dia. Guilherme seria nos tempos atuais um camisa 9 matador, além de ter sido treinador e dirigente no mesmo período. Os primeiros gols marcados pelo Grêmio são de autoria desconhecida. Mais de século depois, soa poético que o tento inaugural seja anônimo, como se fosse um gol de todos. Um gol de todos que já jogaram ou torcera pelo clube. Um gol do Grêmio.
Há divergência ainda sobre o primeiro gol registrado. O autor teria sido, segundo a Gremiopedia, Kallfelz. A conclusão baseia-se em estudo do pesquisador Marlon Krüger Compassi. O Museu do Grêmio não corrobora a informação e deixa sem autoria o responsável pelo 1 a 1 com o Fussball em março de 1906, na sexta partida da história.
Nos alfarrábios tricolores, o primeiro gol com nome e sobrenome é de Álvaro Brochado no ano seguinte, na goleada por 4 a 1 sobre o mesmo Fussball. Era a oitava vez que o Tricolor entrava em campo. O segundo gol daquela tarde saiu com Grünewald. Os dois últimos foram do goleador Kallfelz.
"Meu vô sempre disse que por causa dele não tinha como não sermos gremistas"
LEANDRO KALLFELZ
Familiar do autor do primeiro gol registrado do Grêmio
Esses quatro gols estão descritos em uma das atas do clube. O primeiro marcado por Kallfelz foi contado assim (a grafia original foi mantida): "Voltando a bola ao centro é dado signal de sahida que logo é levada pelos nossos Halfs aos Forwards passada para Kallfelz este com certeiro shout novamente faz um goal." O segundo recebeu o seguinte relato: "Collocada a bola no centro, e dado o signal travou-se d'esde um principio forte ataque de parte a parte foi pelo nosso valente Kallfelz feito outro goal, dando o Snr. juiz por terminado o jogo visto já ter decorrido o tempo precizo."
Kallfelz teve vida ativa na infância gremista. Para época, a bola era artigo de luxo. Para manter a do Grêmio quicando, doou uma bomba para enchê-la. O último registro de seu nome nos arquivos do clube data de 1912, quando propôs que fossem expedidos diplomas de presidentes e sócios honorários a Augusto Koch e Oswaldo Siebel.
— Apesar de termos esse orgulho, as histórias que temos dele são muito vagas. Mas quase todos torcemos para o Grêmio na família, só minha irmã que se perdeu no caminho. Meu pai era daqueles torcedores que se irritava muito. Quando o time ganhava, era o "meu Grêmio", mas quando perdia ele dizia que "o teu time" — relata Leandro, pai e avô de gremistas.
Não se sabe a razão do afastamento de Kallfelz da vida do clube. Morto em 1938, ele entrou para a história do Grêmio sem deixar descendentes diretos. O que não impediu que a proliferação de gremistas entre os Kallfelz acontecesse.
O dono da bola
Os registros sobre Candido Dias da Silva não são muito diferentes. A bola que se manteve redonda graças à doação de Guilherme pertencia a ele. Eram inseparáveis. Tanto que no primeiro jogo de futebol em Porto Alegre, do primeiro contra o segundo quadro do Rio Grande, oito dias antes da fundação do Grêmio, o paulista foi assistir à partida carregando consigo a sua pelota de estimação.
Salvou o dia. A esfera de couro do match furou e Candido ofereceu a sua para que a partida fosse concluída. A partir daí, uma lista de interessados em fundar um clube circulou pela Praça XV para angariar interessados.
A bola que deu origem ao Grêmio teria sido enviada de São Paulo por um dos irmãos dele. A família era dona de um curtume e de uma loja de material de couro. Junto chegou um livro didático sobre futebol. Aqui a história fica nebulosa. Não se sabe a origem do manual e da bola. Supõe-se que ela tenha sido enviada por um de seus irmãos que moravam na Inglaterra. O livreto, especula-se, foi dado a outro irmão dele por Charles Muller, o responsável por implementar o futebol no Brasil.
O protagonismo de Candido foi fugaz. No dia da fundação, foi eleito Guarda Esporte, responsável pelos materiais esportivos do clube. Uma função importante, mas ainda assim vista como secundária. Depois, foi batido na votação que definiu as cores do clube. Ele queria as da bandeira de São Paulo. O paulista teria ficado desgostoso com as decisões. Logo em seguida, seu nome escafedeu-se da história do Grêmio.
— Minha interpretação é de que ele foi o centro do grupo por ser o dono da bola, mas deixou de ser. Também teve a questão do uniforme. Isso deve ter deixando-o desgostoso — argumenta Carlos Eduardo Santos, coordenador do Museu do Grêmio.
Como consequência, a família cortou o cordão umbilical com o clube. As cores da bandeira desejadas por Candido para serem as do Grêmio foram mantidas no coração de seus descendentes. Quase todos são torcedores do São Paulo. Parte deles reside em Sorocaba. Outra, em Santo. No litoral paulista, alguns se desgarraram. Caso do advogado e santista Fernando Barboza Dias, bisneto do dono da bola. Apesar do distanciamento, ele nutre carinho pela equipe gaúcha.
— É um time simpático para nós. Quando era adolescente, tive um colega de colégio, meu amigo até hoje, que era gremista. E tinha essa história do Candido. Então, minha mãe me perguntou se não dava para eu trocar de time (e virar gremista). Disse que não dava mais — lembra.
Nas ramificações da família, se soube há pouco tempo que Candido se envolveu com a fundação de um clube de Porto Alegre. Sobrinha-neta dele, Zaira Pelegrini Dias tomou conhecimento dos vínculos em uma reportagem de jornal em 2012.
— Sabíamos pouco sobre ele. Mas tenho um neto que adora futebol, quem sabe ele não jogue no Grêmio? — indaga Zaira, vislumbrando que a família faça parte da multiplicação de gremistas iniciada pela bola de seu tio-avô.
O primeiro presidente
O Grêmio tinha a bola de Cândido. Faltava onde jogar. Os comerciários e comerciantes fundadores do clube percorreram a ainda bucólica Porto Alegre em busca de uma cancha para jogar e treinar. Um dos que estava à frente da missão era Carlos Luiz Bohrer, o primeiro presidente gremista. Enquanto o clube não definia a Baixada como sua casa, os treinos foram realizados em pontos diversificados da cidade, entre eles na região perto de onde se encontra a Arena e nas proximidades da Gruta da Glória, onde está o Hospital Divina Providência. Alfaiate na Andradas na época da fundação, Bohrer também foi um dos goleiros dos primórdios do time.
A participação dele não se estendeu muito além disso. Por volta de 1910, a relação dele com o Grêmio deixou de ter laços visíveis, com seu nome não constando mais em documentos oficiais. A conexão com o clube prosseguiu. Ele levava o filho Gastão para assistir aos jogos. Em entrevista à ZH antes do centenário, contou que acompanhou os últimos dias de vida de Lara, o goleiro cujo nome está no hino composto por Lupicínio Rodrigues.
— Lembro dele magrinho, fraco, mas sem reclamar de nada nem de ninguém. Ele ficava naquelas peças de madeira da Baixada. Íamos lá visitá-lo. Eu o visitava quando estava doente — contou ao então repórter Diogo Olivier.
A linhagem de gremistas na família se manteve com os três netos de Carlos Luiz. Mas segundo um deles, pouco era contado sobre o avô.
— Sabemos pouca coisa do Carlos. Ele e meu pai casaram muito tarde, então a história ficou muito para trás. Ele contava que aos domingo eles (fundadores) iam de bonde jogar na Glória. Iam de manhã e voltavam só à tardinha — relata o economista Gastão Bohrer, homônimo do pai.
Tímido, Gastão relembra um dia em que esteve no Olímpico, almoçou na churrascaria Mosqueteiro e conheceu a direção do clube. Mas, um tanto constrangido, conta que pelas andanças da vida ainda está por ver um jogo do Grêmio no estádio.
Ele não tem filhos. Um dos dois irmãos tem uma filha, a responsável por dar sequência à linhagem dos Bohrer e à multiplicação dos gremistas pelo mundo.