— Naquela hora, eu era o Grêmio e devia fazer alguma coisa, reagir contra o que considerava uma injustiça.
A frase é de um jovem Renato, 20 anos, em um difícil momento da curta trajetória até ali. Pouco antes, foi apontado como vilão da perda do título gaúcho de 1982, em um Gre-Nal no Olímpico. Na ocasião, foi expulso por reclamar excessivamente do árbitro.
Em tom de desabafo, a entrevista a Zero Hora carregava algo de premonitória. Mesmo que ainda não fosse a lenda que se tornou, Renato já era capaz, à época, de vestir a camisa a ponto de sentir que "era o Grêmio". Trinta e cinco anos depois, o clube e o ídolo parecem se fundir. O camisa 7 de cabelos esvoaçantes e meias arriadas, investindo a dribles contra a defesa adversária, é a imagem que vem à mente quando se fala do Grêmio.
Há um gol que é símbolo dessa amálgama entre o clube e seu maior herói. Em meio à mítica Batalha de La Plata, contra o Estudiantes, na Libertadores de 1983, Renato encara o campo esburacado, não se assusta com marcadores de intenções bem menos nobres do que lhe tomar a bola e faz, quase sozinho, o terceiro gol. Um lance de brilho técnico misturado à entrega. De talento combinado ao destemor. Nada pode ser mais gremista.
O possível tri da Libertadores só tornará a ligação ainda mais intensa. Renato pode se juntar a um grupo seleto de oito personagens da América do Sul ou Europa que venceram títulos continentais como jogadores e técnicos pelo mesmo clube. Poucos dessa lista foram protagonistas como atletas nas conquistas. Talvez apenas Zidane no Real Madrid.
Me chamou a atenção que ele tinha corpo de um jogador de defesa, mas habilidade e talento para ser atacante.
VALDIR ESPINOSA
Técnico campeão do mundo em 1983
Curioso é que a idolatria resiste ao fato de que o personagem foge ao estereótipo do gremismo. A paixão pelas praias e os chopes gelados do Rio (sem colarinho, como sempre frisa), o futevôlei e a malandragem, poderiam destoar em um clube que ganhou a imagem, especialmente nos anos 1990, de um representante do Sul que luta contra o poderio do centro do país. Mas não é assim.
— É uma relação forte demais e, quando é assim, a paixão se adapta e aceita. Isso é até algo que contribui para estreitar essa relação porque mostra que o Renato não faz média, é sincero — avalia Rui Costa, executivo de futebol da Chapecoense que trabalhou com o ídolo em 2010 e 2013.
Mesmo com a marra tipicamente carioca, há um lado de Renato bem alinhado com o Grêmio raçudo que habita o imaginário do torcedor. É o mesmo que enfrenta a Batalha de La Plata, e para o qual, na época de jogador, ele tinha ferramentas para por em prática.
— De cara, me chamou a atenção que ele tinha corpo de um jogador de defesa, mas habilidade e talento para ser atacante — recorda-se Valdir Espinosa, que o treinou na base do Esportivo e o trouxe para o Grêmio em 1980.
A autoconfiança já era uma característica marcante naqueles tempos, além, é claro, da personalidade um tanto atípica.
— Ele pedia a bola. Pedia que a gente "desse" nele quando as coisas estavam complicadas. Sempre foi assim — lembra o ex-zagueiro Baidek, hoje empresário de futebol.
— Quando ele começou a jogar no time de cima, o pessoal estranhava que, depois dos jogos, ele entrava no vestiário contando o dinheiro do bicho, se exibindo daquele jeito dele — diverte-se Antônio Carlos Verardi, superintendente do clube há mais de 50 anos que ganhou a alcunha de "papai" do maior ídolo gremista.
Verardi é quem conta uma das anedotas mais divertidas de outra faceta bem conhecida de seu "filho": o mulherengo. Em 1982, ainda era um menino em busca de espaço no time principal. A equipe viajou em excursão à Europa para disputar amistosos, e ele ficou no Brasil. Mas quando Paulo Isidoro e Baltazar foram convocados para a Seleção, a delegação ficou desfalcada, e Ênio Andrade, então técnico gremista, mandou chamar a promessa. Verardi foi buscá-lo no aeroporto de Barcelona e se apavorou ao ver que os passageiros desembarcavam, um a um, e o menino não aparecia. Até o comandante deixou a aeronave, o que convenceu o dirigente de que havia algum problema. Mas não:
— Quando vi, ele saiu conversando animadamente com as aeromoças.
A fama torna difícil acreditar que o herói tem algo de tímido, o que ele costuma repetir nas entrevistas e é confirmado pelos mais chegados. Suas queixas de que fica enclausurado no hotel em Porto Alegre têm a ver com o constrangimento que sente a cada abordagem. Não é que não goste do carinho, muito pelo contrário. Em entrevista recente à RBS TV, quando viu loucuras cometidas por fãs, como os que tatuam seu nome no corpo ou batizam filhos em sua homenagem, deixou escapar algumas lágrimas de emoção. A questão é que os elogios derramados, quando não partem dele próprio, o deixam um tanto envergonhado. E, é claro, há um certo incômodo em ser constantemente interpelado.
No meio do futebol, diz muito sobre alguém a maneira que trata roupeiros, massagistas... O Renato sempre tratou a todos muito bem.
DIOGO AÍDA
Assessor de imprensa e amigo de Renato
— Uma vez eu o chamei para tomar um chope aqui em Porto Alegre. Ele me disse: "Cara, se a gente for, em três horas você vai ter tomado um barril inteiro e eu não vou ter bebido um sequer — conta Diogo Aída, assessor de imprensa e amigo do técnico.
O bon-vivant, que aproveita o menor assédio no Rio para papear com os amigos em animadas mesas de bar, não deixa de se dedicar ao trabalho. Ver partidas de campeonatos nacionais e internacionais é de suas atividades mais frequentes:
— Cansei de assistir a jogos com ele. É um cara que conhece o mercado, que faz boas indicações de jogadores — garante Rui Costa.
Seu diferencial, porém, é a capacidade na gestão dos grupos. O bom humor é uma das ferramentas. Aída conta que Renato tem a mania de repetir sempre as mesmas piadas. Quando o vê vestindo preto, por exemplo, brinca: "Você acha que o preto te emagrece?". De Romildo Bolzan, cobra a estátua com a sua imagem que muitos torcedores defendem após o título da Copa do Brasil no ano passado. E os atacantes do grupo já ouviram, várias vezes, que receberão um DVD com os melhores lances do comandante na época de jogador: "Vocês vão achar que é montagem", arremata. O jeito bonachão também beneficia funcionários mais humildes. A generosidade é uma qualidade apontada de forma unânime pelos mais chegados.
— No meio do futebol, diz muito sobre alguém a maneira que trata roupeiros, massagistas... O Renato sempre tratou a todos muito bem. Não é só ele. Caras como o Romário, o Edmundo, também tinham essa característica — diz Aída.
Conhecedor de futebol, irreverente e bom gestor de grupos, o maior ídolo gremista tem um atributo menos palpável, que costuma acompanhar os competentes: estrela. Assim como a bravura lhe aproxima ainda mais do Grêmio, parece haver sobre ele uma mística que, como diz Rui Costa, faz com que "sempre aconteçam coisas especiais quando está no clube".
Talvez aí esteja a única explicação para que Jael e Cícero, coadjuvantes contestados do grupo, sejam capazes de decidir um jogo de final de Libertadores. Talvez aí se deposite boa parte da esperança tricolor para o jogo da volta.
Quando Renato está envolvido, é prudente acreditar. E crer, até mesmo no impossível, é uma condição quase obrigatória do gremista. Como o jovem Renato ensinou, lá em 1982, não é exagero dizer que ele é o Grêmio.
Campeões continentais como jogador e técnico pelo mesmo clube
Libertadores
Roberto Ferreiro, Independiente
Jogador — 1964 e 1965
Técnico — 1974
Juan Martin Mujica, Nacional-URU
Jogador — 1971
Técnico — 1980
José Omar Pastoriza, Independiente
Jogador — 1972
Técnico — 1984
Marcelo Gallardo, River Plate
Jogador — 1996
Técnico — 2015
Liga dos Campeões (até 1992 batizada de Copa Europeia)
Miguel Muñoz, Real Madrid
Jogador _ 1956 e 1957
Técnico _ 1960 e 1966
Carlo Ancelotti, Milan
Jogador _ 1989 e 1990
Técnico _ 2003 e 2007*
* Ganhou também em 2014 com o Real Madrid
Josep Guardiola, Barcelona
Jogador _ 1992
Técnico _ 2009 e 2011
Zinédine Zidane, Real Madrid
Jogador — 2002
Técnico — 2016