Imagens e Reportagem: Cristiel Gasparetto / Edição: Marcelo Carôllo
Há até três anos, se você chegasse à Vila São Jorge, na cidade de São José do Rio Preto (SP), e perguntasse quem era o craque da região, a resposta, provavelmente, seria "Missão". Hoje, Missão é o diferencial técnico da equipe do Grêmio e foi peça-chave na seleção brasileira que conquistou o ouro olímpico.
O apelido, Luan Guilherme de Jesus Vieira, 23 anos, recebeu devido ao primeiro time que defendeu, o Missão Resgate, mantido por um projeto social da Igreja Evangélica Missão Atos. A intenção era tirar meninos das ruas e levá-los para o esporte. No primeiro ano de atividade, a equipe surpreendeu clubes tradicionais da cidade e conquistou o título da categoria sub-13 da Liga Rio-Pretense. Era o cartão de visitas do menino franzino e de habilidade incomum. Como prêmio pela conquista, os garotos ganharam de presente a camiseta do time. Luan a usava com tanta frequência que a alcunha pegou entre os amigos.
Leia mais
Iguais, mas diferentes: gêmeos idênticos brincam com rivalidade para o Gre-Nal
Relembre como foram os Gre-Nais com a ameaça do rebaixamento
Tudo o que você precisa saber para acompanhar o Gre-Nal 411
– Até hoje me perguntam: "Cadê o Missão?" – conta a mãe do atacante, a ex-diarista e agora dona de casa Marcia Cristina de Jesus.
Essa foi uma das histórias que ouvi nas andanças pela cidade onde nasceu e cresceu o destaque gremista. São José do Rio Preto tem cerca de 450 mil habitantes e fica no noroeste de São Paulo. Pela proximidade com Minais Gerais, menos de 70Km, o jeito de falar é mais parecido com o sotaque mineiro. Luan foi criado na Rua Hugg Hammond Benett, Vila São Jorge, zona norte do município. A região é de periferia, mas não pense em uma favela ou algo assim. O bairro é bem estruturado, com ruas asfaltadas e com quase todas as casas de alvenaria. Como me disse um morador, a área tem de tudo: "trabalhador, vagabundo, policial e traficante".
Quando tinha quatro anos, Luan perdeu o pai em um acidente de moto. A mãe, então com 23 anos, teve que se desdobrar para cuidar dos filhos – o jogador tem um irmão mais novo, Lucas. Ela fez faxina, lavou escadas, lutou. Também contou com a ajuda da avó paterna, Dona Cida, que trabalhava com costura. Os quatro residiam na mesma casa, uma moradia simples, pequena, mas em boas condições. Na hora de dormir, a avó ficava em um quarto, mãe e filhos no outro. A casa, agora, ganhou muros altos para proteção e uma piscina, um sonho de infância do atacante. Em breve, também deve ser reformada, para dar mais conforto a Dona Cida. A mãe e o irmão se mudaram para um condomínio de classe alta no outro extremo da cidade. As antigas patroas agora são vizinhas de Marcia.
A paixão pelo futebol surgiu muito cedo.
– Ele nasceu chutando bola – brinca a mãe.
Os vizinhos da São Jorge confirmam. A doméstica Rosângela Araujo, 47 anos, convive com a família Jesus Vieira há anos. Ela é mãe de Wendel, melhor amigo do jogador. Com a doméstica e os filhos dela, Luan participava de festas de final de ano e fazia passeios em um sítio.
– Desde pequeninho, ele só pensava em futebol. O Luan é uma bênção, um coração de ouro – destaca.
Na casa de Rosângela, a paixão pelo Corinthians é estampada em quadros na sala, mas desde 2014, o Grêmio virou o segundo time de todos.
– Somos corintianos e gremistas – sorri.
Os primeiros dribles foram dados na rua e também no campinho do centro comunitário, atualmente tomado por prédios. Em peladas, chamadas de rachas pelos rio-pretenses, o menino esbanjava técnica.
– Ele sempre foi franzino, a gente dava um jogo de corpo e jogava no chão, mas ele também dava chapéu e fazia graça. Era diferente – recorda Edson Silvério Alves, 50 anos, o Chupim, comerciante do bairro.
Além do campinho, Luan batia ponto em outro local da Vila São Jorge, o Elton Lanches, popular cachorro-quente da Rose.
– Conheço ele desde que nasceu. Lembro que vinham os dois irmãozinhos, os chamava de netinhos da Cida. Às vezes, não tinham o dinheiro para o cachorro-quente, mas nunca neguei – enfatiza Roseli Santoliquido, 56 anos.
A paixão do jogador pelo lanche é tanta que, ao chegar a Rio Preto, liga do aeroporto para fazer uma encomenda. Com uma camisa 7 do Grêmio nas mãos, Rose garante que até para Porto Alegre, por meio de amigos, já enviou cachorro-quente para o atacante.
– Ele é um vencedor, vem de uma família pobre, um menino que merece. Quando ele foi para o Grêmio, disse que iria ser famoso.
De 2000 a 2003, Luan estudou na Escola Municipal José Maria Rollemberg Sampaio, na Vila São Jorge. Depois, concluiu os ensinos Médio e Fundamental na Escola Estadual Yvete Gabriel Atique, no vizinho bairro Eldorado. Professora de Educação Física do agora astro gremista, Valéria Lara dos Santos Gauch, 50 anos, descreve o ex-aluno como um garoto "doce, focado e disciplinado". Nunca se ouviu falar de ter sido chamado na direção por mau comportamento. O semblante acanhado, com dificuldade de encarar as outras pessoas nos olhos, também sempre foi uma característica. Nos treinos, era comprometido. Fominha, mesmo com o braço quebrado, insistiu para jogar uma partida de um campeonato escolar. Usando uma camiseta comprida para esconder a lesão, fez dois gols e decidiu o jogo.
– Ele tem um talento nato de desestruturar o adversário. No futsal, o jeito de pará-lo era só batendo – lembra Valéria, que chegou a organizar uma vaquinha com colegas para comprar tênis novos ao craque do colégio.
Em certo momento dos anos 2000, a professora tentou gravar lances do garoto para enviar ao programa Caldeirão do Huck. Ela tinha medo que o talento não fosse descoberto:
– Pensava: será que a estrela desse menino não vai brilhar? Queríamos que alguém visse o quanto era bom. Hoje, me sinto feliz em ver onde ele está chegando.
E Luan não esquece dos mestres. Depois da Olimpíada, foi visitar as antigas professoras e causou alvoroço entre os estudantes. Nas aulas, Valéria usa o aluno famoso como exemplo:
– Falo para eles: se você acredita em um sonho, você pode chegar aonde você quer.
O futebol entrou, definitivamente, na vida de Luan a partir do Missão Resgate. Acompanhado de outros amigos, o garoto saía da São Jorge e ia, caminhando ou de bicicleta, até o outro bairro, o Boa Esperança, distante cerca de seis quilômetros.
– Ele falava, "mãe, vou correr atrás do meu sonho" – recorda a ex-diarista Marcia Cristina.
Os treinos, sob o comando do técnico Alex Rocha, ocorriam três vezes por semana, sempre no turno inverso ao do colégio. Na última quarta-feira, a pedido de Zero Hora, quatro ex-colegas de time se reencontraram no campo onde tudo começou. O local, que era ponto de alegria e confraternização da garotada, hoje tornou-se uma área perigosa, tanto que, durante a entrevista, eu e os antigos companheiros de Luan passamos por uma intensa abordagem policial, com direito a revista minuciosa.
Passado o susto, os jovens entraram no campo e vieram à mente as recordações.
– Dá uma saudade porque vivíamos aqui. Não víamos a hora de jogar. Se tivesse treino todos os dias, de manhã e à noite, estaríamos aqui – comenta Francisco José Barbosa Júnior, o Chico, que também virou jogador de futebol. Recentemente, ele integrou o time B do Inter.
Sobre as características de Luan, Geovani Felipe dos Santos, 23 anos, outro que se tornou jogador – seu último clube foi o Ferroviário-CE –, revela que no campo ele ia bem, mas na quadra se destacava mais.
– Sempre foi rápido e tinha o drible curto – conta.
As características, conforme os ex-colegas de time, são as mesmas apresentadas hoje no Grêmio. Inclusive a timidez, fator complicador na conquista de namoradas.
– Sempre foi feio e tímido – brinca Geovani.
Atualmente, os amigos se falam pelo WhatsApp. Conversam sobre tudo, mas a maior parte das mensagens é só "zueira mesmo", diz o soldador Fabiano Rodrigues, 24 anos. Quando está em São José do Rio Preto, Luan gosta de reunir a turma. Há quatro anos, disputam uma pelada de final de ano. Camisetas do Grêmio e chuteiras são presentes do atacante famoso aos antigos companheiros. Durante os Jogos Olímpicos, o atacante também deu ingressos e disponibilizou transporte para a turma assistir aos jogos do Brasil no Itaquerão e no Maracanã.
– Ele não perdeu a humildade. Com a gente, é a mesma coisa de sempre – afirma o soldador Thiago Ferreira, 25 anos, outro companheiro de Missão.
Com 14 anos, Luan chegou ao projeto de futsal Toque de Bola/Smel. Com três núcleos na cidade, a intenção era formar equipes de competição para disputar o Municipal. No primeiro ano, o time já foi campeão invicto.
– Existe o diferenciado e o que resolve. O Luan é o que resolve. Nunca me deu trabalho, nunca foi expulso ou faltou a treino, sempre resolveu, sempre foi a solução dos meus problemas. Ele driblava até o juiz (risos). É gratificante ver onde está – comenta Ademir Correa, o treinador da época.
O técnico define Luan como "um salonista nato", pelo jeito como domina e conduz a bola, sempre próxima ao pé, e também pelo estilo de atuar, como uma espécie de pivô de futsal. Fora das quadras, Correa lembra de um garoto que já tinha a mania de puxar a camiseta e morder, que escutava o funk da banda Hawaianos e que levava para casa os lanches que sobravam das viagens do time.
– É magrelo de ruim – diverte-se o ex-treinador.
Depois do Toque de Bola, Luan ainda passou pelo Rio Preto Futsal. Quando estava prestes a completar 19 anos, trocou as quadras pelo campo. A primeira experiência foi no Tanabi, em 2012, time que disputava a quarta divisão do Campeonato Paulista. No final da mesma temporada, teria a oportunidade de voltar à terra natal para jogar a Copa São Paulo de Juniores de 2013 pelo América. Determinado a ser jogador, Luan nunca desistiu, mas perto de completar 20 anos e sem nunca ter tido chance em um grande clube, chegou a titubear. A mãe o incentivou, assim como o ex-técnico Ademir Correa.
– Falei para ele: são três jogos (da fase classificatória da competição) para mudar a vida da família.
E foi o que aconteceu. No torneio, Luan arrebentou. Fez gols, inclusive contra o Flamengo, deu assistências e chamou a atenção. Semanas depois, desembarcava em Porto Alegre para reforçar o sub-20 do Grêmio. Já no começo de 2014, era titular da equipe comandada por Enderson Moreira e destaque do time na Libertadores. A partir daí, só cresceu. Marcou gols em clássicos, tornou-se a referência técnica do time e, com a seleção, conquistou a medalha de ouro na Olimpíada. Mas falta algo para o camisa 7. Quem conta é mãe de Missão:
– Ele falou para mim que o sonho dele é dar um título ao Grêmio. Ele diz: "os que me criticam não sabem o quanto eu gosto do Grêmio".
O título pode ser a Copa do Brasil. As semifinais começam na quarta-feira, mas antes, bom, antes tem Gre-Nal. E o clássico, mesmo sem taça em disputa, pode ser um complicador para a permanência do rival na Série A. Um motivo suficiente para comemoração.
Acompanhe o Grêmio através do Gremista ZH. Baixe o aplicativo:
*ZHESPORTES