As 50 posições que separam o líder Brasil do Catar no ranking da Fifa não impedem que os anfitriões da próxima Copa do Mundo causem um pouco de inveja em Tite. O técnico da Seleção suplica pela chance de disputar uma reles amistoso contra uma equipe europeia. Desde novembro de 2019, somente as camisas conhecidas da América do Sul aparecem na frente dos brasileiros. Nos últimos três anos, os catari enfrentaram equipes de cinco das seis Confederações ligadas à Fifa.
Ser sede do Mundial (poder político) e ter dinheiro sobrando resultam em regalias. Nos últimos três anos, o Catar participou de algumas das principais competições entre seleções, inclusive as Eliminatórias da Europa e da Ásia. Como a fase classificatória europeia tem grupos com número ímpar de equipes, o Catar virou um participante “fantasma”. A equipe que folgava na rodada do Grupo A enfrentava os catari em amistoso.
Os petrodólares ajudaram a engordar o calendário em voos mais distantes. A empresa aérea do país patrocinou a Copa América de 2019 e a Copa Ouro, torneio com seleções da Concacaf. Como reciprocidade, o Catar foi agraciado com uma vaga nas duas competições. O dinheiro também foi primordial para a formação do time que representará o país no fim do ano.
Para quem despejou U$ 50 bilhões para construir Lusail, cidade erguida onde antes havia dunas e mais dunas, tirar da carteira U$ 1,4 bilhão é troco. Esses valores foram investidos para construir a Aspire Academy, um centro de excelência esportiva de nível mundial. Os resultados começam a aparecer. No ano passado, nas Olimpíadas de Tóquio, o Catar conquistou dois ouros e fechou o evento com três medalhas ao todo, recorde da história do país.
Fundado em 2004, o Centro de Treinamento desenvolve um trabalho de formação contínuo. Em meio ao clima árido do mundo árabe, os primeiros frutos começam a ser colhidos.
— A ideia da Aspire é trabalhar com o que tem de melhor categoria por categoria. Todas as condições de trabalho são dadas. A metodologia e os processos são bem delineados — explica Leonardo Martins, treinador-adjunto do time Sub-20 do Inter e que trabalhou na Aspire entre 2018 e 2019.
A produção não é apenas dentro de campo. Também é acadêmica. Uma série de estudos científicos é produzida dentro do complexo, tornando o ambiente uma referência dentro do mundo da ciência dos esportes.
Naturalizações
A formação caseira de jogadores facilitou a transição para um segundo estágio na montagem da seleção. Em um primeiro momento, houve uma naturalização em massa de jogadores. Nessa leva entraram brasileiros como Emerson Sheik, Fabio Montezine e Araújo. À época, era preciso viver dois anos em um país para poder se naturalizar e defender a seleção. Hoje, a nova regra da Fifa estipula que o período mínimo seja de cinco anos.
O estágio atual ainda conta com a importação de jogadores, mas com outro perfil. Há a busca por atletas que não nasceram no Catar, mas que possuem algum tipo de conexão, como ser filho de um catari. O novo perfil faz com que os jogadores cheguem jovens na Aspire, facilitando o processo de naturalização.
— A questão de terem parado (as naturalizações) foi devido à mudança de regras. Com cinco anos de residência, é um ciclo maior, fica mais difícil. Então, ela está estacionada, mas não está parada, já que o número de jogadores locais é pequeno — explica Montezine, desde 2005 morando no país.
Com um país pequeno e pouco populoso, falta pé-de-obra para treinar.A prospecção de atletas é parte central do trabalho. O garimpo extraiu uma pedra considerada bastante preciosa. Sudanês, Almoez Ali chegou ao Catar ainda criança e à Aspira aos 10 anos. Em uma década e meia, passou pelo belga Eupen, onde se profissionalizou, e pelo Cultural Leonesa, da Espanha, clubes de propriedade da Aspire.
Ali é o grande nome da equipe que, em novembro, estreará em Copas do Mundo. Foi o principal nome catari na campanha que levou o país ao título da Copa da Ásia, em 2019. Artilheiro do torneio com nove gols, foi às redes de todos os jeitos. Teve gol de cabeça, bicicleta, calcanhar e de cabeça.
Dos 14 jogadores que atuaram na vitória por 3 a 1 sobre o Japão, na final, seis nasceram em outros locais, mas quase 70% brotaram do chão da Aspire. O crescimento contínuo se deu ao lado do técnico. Espanhol, Félix Sánchez chegou para trabalhar no Centro de Treinamento — onde foi contemporâneo de Miguel Ángel Ramírez — depois de uma década no Barcelona. Logo começou a treinar as equipes de base do Catar, subindo degrau a degrau até a equipe principal.
— Grande porcentagem dos jogadores foram base da Aspire e do projeto europeu. Aconteceu de o Félix Sánchez assumir o time. Sinceramente, no começo, não se acreditava que ele pudesse chegar ao Mundial. Ele praticamente treinou todos os jogadores porque passou por várias categorias. Ele tem um vínculo muito forte com os jogadores — avalia Montezine.
A conexão entre todos é o cerne da estrutura da Academia. Como não há talentos nato vagando pelo país, é necessário um tipo de abordagem diferente, transformando a formação em um trabalho artesanal.
— Tem uma questão humana (na formação). Há uma psicológa que faz uma mentoria com os treinadores para que eles se adequem à metodologia. O nível educacional dos atletas é alto, diferente de outros lugares, como o Brasil. É preciso ter uma outra forma de convencimento. Também é preciso pegar o jogador cru e ensinar tudo. Lá não tem craque — explica Martins.
O nível educacional dos atletas é alto, diferente de outros lugares, como o Brasil. É preciso ter uma outra forma de convencimento. Também é preciso pegar o jogador cru e ensinar tudo. Lá não tem craque
LEONARDO MARTINS
técnico adjunto do sub-20 do Inter, que trabalho na Aspire
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Todas essas características tornam a seleção catari excêntrica. É um time com muitos naturalizados e jogadores que atuam juntos desde tenra idade. Uma equipe campeã continental há três anos, mas que, apesar do título inédito, superando habitués em Copas como Coreia do Sul e Japão, está longe de ser um adversário capaz de preocupar no fim do ano. Ao mesmo tempo, pode não ser tão frágil quanto parece.
Ocupando a posição número 51 do ranking da Fifa, os catari não serão os donos da casa de pior colocação na lista (a África do Sul, em 2010, fica com esse "prêmio" – era a 83ª), nem a pior posicionada desta edição, por ora a honra está com Gana (60º) e ainda pode contar com a Nova Zelândia (101º), que disputa uma das vagas da repescagem.
Na experiência como fantasma na Europa, o time agregou muita experiência e poucas vitórias. Diante de Sérvia (adversária do Brasil), Portugal, Irlanda, Luxemburgo e Azerbaijão, os catari somaram nove pontos. Se os resultados valessem pelas Eliminatórias, o Catar teria fechado sua participação com a mesma pontuação de irlandeses e luxemburgueses, levando desvantagem no saldo de gols, e à frente da ex-república soviética, lanterna com um ponto conquistado sobre o próprio Catar. Também participou da segunda fase das Eliminatórias Asiáticas — a etapa também valeu como classificatório para a Copa da Ásia.
Na Copa América de 2019, somou um ponto em uma chave que tinha Colômbia, Argentina e Paraguai. Em Porto Alegre, levou 2 a 0 dos hermanos. Na Copa Ouro do ano passado, foi líder em uma chave que tinha Panamá, Granada e Honduras. Passou por El Salvador nas quartas e perdeu na semi para os Estados Unidos. Terminou na terceira colocação. Ainda teve a disputa da Copa Árabe no fim do ano passado. No evento teste para o Mundial, o Catar terminou na terceira colocação, ao perder para a Argélia na semifinal e vencer o Egito, nos pênaltis, na decisão do terceiro lugar.
Para uma seleção, o time de Félix Sánchez tem tido um calendário abarrotado nos últimos anos. Em 2021, foram 24 jogos, dois a mais do que os disputados pelos clubes do país na Liga das Estrelas do Catar, o Brasileirão deles. Mas, as possíveis invejas de Tite, param por aí.