Recomeçar: esse é o lema, neste início de ano, na Escola Municipal de Ensino Fundamental Leo Joas, em Estrela, no Vale do Taquari. A instituição – a maior do município, com mais de 700 alunos – viveu momentos de angústia no início de setembro, quando a água da enchente dominou todos os seus espaços, seguidos por dias de união da comunidade para limpar os espaços e retirar o que havia ficado inutilizável. Nos últimos meses, o empenho é na recuperação estrutural, mas não só. Muitos funcionários e estudantes foram diretamente afetados pela tragédia ambiental, que deixou como legado traumas e vazios.
Lana Muniz, 14 anos, é de São Paulo, e mora no município desde 2021. Na vida, nunca tinha passado por uma situação como a de setembro.
— Eu só via enchente pela TV. Eu não gosto muito de ficar lembrando, porque a gente quase perdeu tudo. Graças a Deus, deu para recuperar algumas coisas, mas ver toda aquela água quase tampando o teto da escola, foi horrível. Foi triste demais — recorda a aluna do 9º ano da Leo Joas.
De manhã cedo, quando começou a entrar água em sua casa, Lana estava dormindo. Seus pais acordaram com o barulho do ralo sugando o líquido. A família, então, passou a subir o que podia para o segundo andar. Quando percebeu que a enchente avançava, rumaram para o ginásio municipal, onde esperaram o rio baixar. Com viagem marcada com sua equipe de futebol para o Uruguai nos dias seguintes, a menina foi, por insistência da mãe, que temia que ela pegasse alguma doença vinda da água. Quando voltou, se assustou com o cenário.
— Me deu um aperto no coração entrar em casa e ver que não tinha mais os móveis. Ao mesmo tempo, me diverti na viagem, mas não conseguia tirar tudo aquilo da cabeça — revela Lana.
A adolescente lembra de acordar com muito medo em outros momentos do ano, ao ouvir o barulho da água, oriundo da máquina de lavar roupa que sua mãe usava. O trauma dela e de outros colegas tem sido acompanhado pela escola.
— Os professores deram muito apoio, porque viram que a gente ficou assustado, com medo de dar outra enchente. O professor Ricardo, de Educação Física, falava “ó, a gente perdeu tudo, mas a gente vai recuperar”. Ele estava sempre ali, para a gente sempre continuar. A coordenação também, a direção, todos nos ajudaram muito — elogia a estudante.
Com o apoio de doações de empresas e instituições, além de recursos do governo federal, a escola conseguiu recuperar boa parte do mobiliário, trocar portas, fazer reparos no telhado e reaver equipamentos eletrônicos – 60 Chromebooks, por exemplo, foram inutilizados pela água. Ainda falta trocar o piso parquet de todos os espaços e, gradualmente, ir recheando a Leo Joas dos livros e brinquedos que ela antes esbanjava.
— O tempo passou e muita coisa foi feita, com a ajuda da comunidade, pais e profissionais. Hoje, a nossa maior necessidade ainda é em relação ao mobiliário, mas estamos felizes por podermos retornar. As pessoas estão aqui e é isso que importa. A gente vai trabalhar esse recomeço com as pessoas e o sentimento que ficou em relação a isso, e fazer de 2024 um ano incrível — promete a diretora da escola, Cleonice Diehl.
Dia inesquecível
Na véspera do dia da enchente, a Secretaria de Educação de Estrela decidiu cancelar as aulas do dia seguinte, por prevenção, então, quando a água começou a subir, Adriana de Fátima da Luz Duarte, que é funcionária da Leo Joas, estava em casa com o marido e três filhos, que, na época, eram alunos da instituição. Normalmente, quando acontece uma enchente, o porão da residência da família alaga. Dessa vez, o nível passou da metade da parede do segundo andar.
Vendo a água subir, Adriana e o marido quebraram o forro da casa e colocaram os filhos em tábuas próximas ao telhado. Foi quando conseguiram retirar algumas telhas que uma pessoa que, até hoje, a família não sabe quem é, cujo apelido é Beto, perguntou se havia criança na casa. Os três foram colocados no barco do vizinho e levados para o abrigo. O casal conseguiu sair horas depois, quando a água batia no peito.
Onde a gente mora está totalmente diferente, os vizinhos não estão mais. Muita gente se mudou e muitas casas foram levadas. A igreja da frente está fechada.
ADRIANA DE FÁTIMA DA LUZ DUARTE
Funcionária e mãe de aluno da Escola Municipal de Ensino Fundamental Leo Joas
— Tudo foi um pavor, eu vendo as crianças saindo, indo embora e pensando que eu ia ficar. Eu arrumei os documentos deles e disse para o meu guri de 15 anos, que é bem esperto: leva e condiz teus irmãos, porque só Deus sabia o que iria acontecer conosco. Eu não gosto muito de lembrar. A gente viveu um terror, porque a gente não esperava aquilo ali: as casas se deslocando, os bichos passando — cita Adriana.
No fim, todos da família se salvaram, inclusive as duas cachorrinhas, e, agora, lutam para recuperar o que conquistaram a muito custo – uma TV grande, por exemplo, para os pequenos verem Netflix. O caçula da funcionária, Vitor, de nove anos, iniciou o 3º ano na Leo Joas em 2024 e se anima em falar sobre o que gosta na escola – estudar informática, ir às aulas de Educação Física. Sobre a enchente, se cala. O menino, após a cheia, tinha muito medo de que um novo sinistro acontecesse, mas, agora, está mais tranquilo.
— A gente vai levando. Tentamos esquecer, mas não tem como. Onde a gente mora está totalmente diferente, os vizinhos não estão mais. Muita gente se mudou e muitas casas foram levadas. A igreja da frente está fechada. Tem o movimento de uma creche e de uma outra vizinha e só. Está um deserto — conta Adriana.
Conforme a diretora da escola, muitos estudantes apresentaram sintomas de transtorno pós-traumático depois da tragédia.
— O adolescente se fecha, não quer dizer que aquilo incomoda. Então, às vezes, entra em atrito com o colega e nem sabe o porquê. Aí, às vezes, chegava uma dupla que se desentendeu e a gente perguntava “como está em casa? Como foi para vocês?”, e eles desabavam. Aí, se acalmavam um pouco. É importante ter esses momentos, até para eles entenderem que são coisas que acontecem e que eu posso dizer que aquilo foi ruim, ou que na minha casa não está bom agora — observa Cleonice.
As gêmeas Brenda e Sophia Henicka, oito anos, têm a sorte de morar em um prédio em que a água só entrou no corredor, mas não no apartamento delas. Lá, onde moram com a mãe, as meninas receberam famílias e animais desabrigados durante aquela noite, e, nos dias seguintes, ajudaram os avós, que tiveram a casa invadida pela água. Quando a escola voltou a funcionar, viram um cenário um pouco diferente do que conheciam.
— Acho que na sala não mudou muita coisa. Só os armários que não têm mais. Tinha um guarda-livro que guardava os livros para a gente ler depois das atividades e esse armário foi embora — diz Brenda.
A irmã lembra que depois da enchente, sem luz, a amiga Tina lhe emprestou um caderninho para pintar.
— A Tina tem um caderninho que tem um monte de desenho e ela deu para a gente brincar. Daí não tinha luz, também não tinha internet. A cada pouquinho, a gente saía do quarto, porque estava chato — revela Sophia.
Para este ano, a dupla espera que “a profe seja boazinha e que os colegas continuem os mesmos”. As gêmeas também desejam aprender mais sobre Matemática, disciplina que adoram e trabalham no contraturno da rede municipal de Estrela.
Investimentos federais
Os municípios do Vale do Taquari tiveram articulação direta com governos do Estado e federal após a enchente. No caso das escolas municipais, muito do recurso para mobiliário e construção de novas escolas veio da União. Foram quase R$ 30 milhões liberados para equipamentos e R$ 50 milhões para fazer essas novas instituições. Estrela é a cidade mais contemplada, com quatro novas escolas, que abrirão 914 novas vagas.
— Daqueles anúncios feitos quando o vice-presidente Geraldo Alckmin foi ao Vale do Taquari com uma série de ministros, temos quase 100% do que foi prometido já cumprido. Quando falamos em equipamentos, é tudo aquilo que o município disse que estragou, e repassamos o dinheiro para eles reaverem. Todos os municípios que encaminharam para nós as suas solicitações na área da educação foram atendidos — relata o secretário nacional de Comunicação Institucional, Maneco Hassen, que coordenou um escritório do governo federal na região para atender às demandas.
Os valores para a construção das escolas também são repassados diretamente para os municípios, que ficam responsáveis pela licitação e execução. No caso de Estrela, a expectativa é de que as novas instituições sejam concluídas em 2025.