Os estudantes que fizeram a prova do Exame Nacional do Ensino Médio (Enem) neste domingo (5) tiveram que desenvolver argumentos sobre os desafios para o enfrentamento da invisibilidade do trabalho de cuidado realizado pela mulher no Brasil. Esse foi o tema da redação no Enem 2023, que trouxe à tona uma problemática fundamental, dizem especialistas.
— Começamos a nos dar conta disso recentemente, mas escutamos por muito tempo que a mulher que é dona de casa não trabalha, como se não houvesse um trabalho implicado ali — argumenta a pesquisadora Milena da Rosa Silva, professora do Departamento de Psicanálise e Psicopatologia do Instituto de Psicologia da Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS).
De acordo com o Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE), as mulheres dedicam, em média, 21,3 horas semanais aos afazeres domésticos e cuidados de pessoas. Os homens, por outro lado, dedicam cerca de 11,7 horas a essas atividades por semana. Os dados são da Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílio (Pnad) Contínua 2022.
Um relatório divulgado em agosto pela ONG Think Olga mostra os impactos dessa sobrecarga de tarefas na vida das mulheres. Conforme o levantamento, elas representam sete em cada 10 pessoas diagnosticadas com depressão ou ansiedade no Brasil. A pesquisa aponta que estresse, irritabilidade, baixa autoestima, fadiga, sonolência, insônia e tristeza são os sintomas mais comuns.
Intitulado “Esgotadas: o empobrecimento, a sobrecarga de cuidado e o sofrimento psíquico das mulheres”, o documento indica que 45% das entrevistadas afirmam ter algum diagnóstico de transtorno mental. O estudo ainda mostra que um em cada quatro mulheres que cuidam de alguém estão extremamente insatisfeitas com sua saúde emocional. Também se destacaram queixas por conta da dificuldade de conciliar as diversas áreas da vida e insatisfação em relação à situação financeira, por exemplo.
Falta de conscientização
Para a socióloga Silvana Maria Bitencourt, esse fenômeno é reflexo de uma sociedade pautada pelo patriarcado, que coloca as mulheres em papeis de cuidadoras do lar e da família, o que limita sua ascensão profissional e faz com que tenhamos políticas públicas ineficientes nesse sentido.
— Historicamente, esse papel é atribuído às mulheres. Precisamos conscientizar as pessoas de que o cuidado é uma responsabilidade social, e não somente da mulher, é algo que permeia toda a estrutura social. E sem o cuidado não se tem sociedade — explica Silvana, que é professora do Programa de Pós-Graduação em Sociologia da Universidade Federal de Mato Grosso (UFMT) e coordena o grupo de pesquisa Saúde do Corpo, Gênero e Gerações.
Faxinar, cozinhar, lavar roupa, dar banho, comprar alimentos, cuidar dos filhos e de outros familiares são alguns exemplos de tarefas essenciais para a saúde e bem-estar de toda família. Geração após geração, ensinamos que essas são responsabilidade das meninas e mulheres, de acordo com a pesquisadora. Além de sobrecarregá-las, isso contribui para minar oportunidades e aprofundar as desigualdades.
Elas sofrem por perceberem que não estão dando conta das tarefas, como se isso fosse possível.
MILENA DA ROSA SILVA
Professora do Departamento de Psicanálise e Psicopatologia do Instituto de Psicologia da UFRGS
— Esses são trabalhos invisíveis para a sociedade, são serviços muito pouco valorizados. Tanto que muitos homens sentem até vergonha de admitir que cuidam, quando exercem essa função em casa. Ao mesmo tempo, as mulheres que cuidam empobrecem. Elas estão deixando de cuidar de si próprias e de trabalhar, deixando de ganhar dinheiro para poder dar conta dessas responsabilidades — destaca a socióloga.
Neste ano, foi criado um grupo de trabalho inédito para a construção da Política Nacional de Cuidados. Também foi lançada uma consulta pública e um formulário eletrônico para ouvir a sociedade sobre a elaboração desse marco normativo. A iniciativa é do Ministério do Desenvolvimento e Assistência Social, Família e Combate à Fome e do Ministério das Mulheres.
Questão de saúde
As imposições sociais fazem com que as mulheres se sintam obrigadas a dar conta de todas as responsabilidades domésticas e do trabalho reprodutivo sozinhas. A professora Milena da Rosa Silva ressalta que, na realidade, é impossível dar conta de tudo. Isso gera frustração e exaustão, a longo prazo, o que tem causado efeitos negativos na saúde mental das brasileiras.
— Os impactos são diversos. Percebemos muita ansiedade, angústia e exaustão, e até mesmo a dificuldade de aceitar a exaustão. Elas sofrem por perceberem que não estão dando conta das tarefas, como se isso fosse possível. Mas são questões que nos ultrapassam enquanto indivíduos. O primeiro passo é tornar esses trabalhos de cuidado visíveis, para pensarmos em como redistribuí-los — afirma.
A pesquisadora destaca o exemplo da pandemia de covid-19, quando muitas mulheres que contavam com uma rede de apoio – como trabalhadoras domésticas e babás – tiveram de administrar sozinhas as atividades de cuidado.
— Elas depararam com o cansaço absoluto que é conciliar o trabalho produtivo remunerado com o trabalho reprodutivo e de cuidado. Antes, de alguma forma, isso era dividido com outras mulheres, e na pandemia essa lógica mudou — explica Milena.