Mais de 150 páginas de documentos da Secretaria Municipal de Educação de Porto Alegre (Smed) analisadas pela reportagem de GZH revelam que, entre 2022 e de 2023, servidores da pasta fizeram reiterados pedidos para a contratação de centenas de monitores que prestassem auxílio nas instituições de educação infantil e fundamental aos alunos inclusivos, o que é garantido por lei. Atualmente, a rede municipal tem cerca de 3,3 mil estudantes com necessidades especiais.
E para ilustrar essa realidade, a reportagem de GZH acompanhou a rotina da arquiteta Michele Muller Moncks, que fica em casa durantes as tardes com Pedro e Otávio, porque a instituição em que as crianças estudam não tem monitores o suficiente.
Nos ofícios, o setor de recursos humanos da Smed relatou que a carência de monitores ameaçava o funcionamento de turmas e causava o descumprimento de decisões judiciais que determinavam a presença do profissional para auxiliar alunos, sobretudo os que estão dentro do Transtorno do Espectro Autista (TEA). Entre setembro de 2022 e maio de 2023, em três ocasiões a Smed solicitou autorização do governo Sebastião Melo para nomear 158, 208 e 277 monitores. Entre as justificativas, constavam um estudo mostrando que havia espaço fiscal para contratar e um apelo: "Nossa obrigação legal está sendo negligenciada", registrou um dos ofícios da Smed.
Apesar disso, a Secretaria de Administração e Patrimônio (Smap) e o Comitê Municipal para a Gestão de Despesa de Pessoal, integrado pelo gabinete do prefeito, autorizaram a contratação de 15, 11 e 10 monitores.
A defasagem de profissionais e o silêncio da Smed após tentativas de contato levaram Andreia Paz Rodrigues, dirigente do Núcleo de Defesa da Criança e do Adolescente da Defensoria Pública (Nudeca), a ingressar com ação judicial para que a prefeitura fosse condenada a providenciar monitores. No curso do processo, diz a defensora, a própria Smed estimou que faltavam cerca de 600 auxiliares para atender os alunos atípicos.
— Houve violação de direitos, é inegável. E isso acontece há anos — afirma Andreia.
Ela menciona consequências dramáticas da falta de monitores na rede municipal de Porto Alegre. Uma delas, o fato de alunos especiais terem horário reduzido.
— A criança não tem como aprender em uma ou duas horas por dia. A segunda questão é sobre o familiar que cuida. Como ele vai trabalhar se a criança sai mais cedo da aula? Traz consequências financeiras — diz Andreia.
Um terceiro impacto alcança a escola, os professores e os demais alunos. Quando o docente precisa dar mais atenção ao aluno inclusivo pela falta de monitor, os demais estudantes ficam menos assistidos. A situação costuma se agravar quando os autistas, maioria na educação inclusiva, se "desorganizam". Na linguagem clínica, isso significa que o autista perdeu o controle. Sem um monitor que possa lhe oferecer uma atenção mais individual, as consequências são imprevisíveis.
— É desesperador. Há casos de alunos que se desorganizam a ponto de tentar quebrar tudo, de ter de chamar a SAMU — diz Rosele Bruno de Souza, diretora da Associação dos Trabalhadores na Educação no Município de Porto Alegre (Atempa).
Impacto na rotina em sala de aula
A criança não tem como aprender em uma ou duas horas por dia. A segunda questão é sobre o familiar que cuida. Como ele vai trabalhar se a criança sai mais cedo da aula? Traz consequências financeiras.
ANDREIA PAZ RODRIGUES
DIRIGENTE DO NÚCLEO DE DEFESA DA CRIANÇA E DO ADOLESCENTE DA DEFENSORIA PÚBLICA (NUDECA)
A carência causou outro desenlace preocupante: a judicialização. Pais de alunos com diagnóstico de necessidade especial, principalmente o TEA, passaram a ser avisados nas escolas de que não havia monitores suficientes.
Eles procuraram a Defensoria Pública para ingressar com ações individuais pedindo que a prefeitura fosse obrigada a cumprir a lei e disponibilizar os profissionais. Hoje, a estimativa do órgão de advocacia popular é de que cerca de uma centena de monitores atuam nas escolas por ordem judicial.
Há uma situação mais inusitada, nos casos em que a Smed não providenciou um monitor para atender o aluno atípico. A Defensoria Pública teve êxito ao ingressar com medidas que pediam o bloqueio de valores da prefeitura. O valor é repassado aos pais, que depois prestam contas do uso do dinheiro público no processo. Com isso, psicopedagogos sem vínculo acabam atuando dentro da sala de aula. Eles ficam ao lado dos alunos atípicos, auxiliando na realização de atividades diversas, em meio aos outros estudantes e professores.
A defensora Andreia considera que, diante da urgência, a medida tem trazido mais resultados positivos do que negativos. Também há o caso de famílias que estão conseguindo o direito de que seus filhos frequentem a escola acompanhados por Assistentes Terapêuticos (ATs) contratados de forma privada, ante recomendação médica.
— É um profissional estranho ao ambiente escolar, sem vínculo com a instituição. É mais uma pessoa adulta entre os alunos, fazendo intervenções, o que impacta a rotina em sala de aula — avalia a promotora de Justiça Cristiane Della Méa Corrales, coordenadora do Centro de Apoio da Educação, Infância e Juventude do Ministério Público (MP-RS).
Programa Incluir+POA
A ação civil pública movida pela Defensoria Pública contra o município foi suspensa até julho de 2024, quando uma avaliação deverá ser realizada. Até lá, houve acordo entre as partes de um prazo para implantação do programa Incluir+POA, que prevê a contratação de 421 profissionais para auxiliar a integração e o desenvolvimento dos alunos atípicos nas escolas. O contingente terá 357 agentes de educação inclusiva, nova denominação para o cargo que, até então, era chamado de "monitor". Os outros profissionais serão psicólogos, assistentes sociais, fonoaudiólogos e psicopedagogos.
A política pública será colocada em prática em parceria com a Associação Brasileira de Educação, Saúde e Assistência Social (Abess). A Smed e a organização da sociedade civil assinaram contrato em 20 de outubro. Agora, a Abess fará a contratação dos profissionais para as 98 escolas da rede própria.
A defensora pública Andreia Paz Rodrigues avalia que o Incluir+POA é uma "boa proposta", embora tenha dúvida se será suficiente para dar conta da demanda.
O titular da Smed, José Paulo da Rosa, define a educação inclusiva como um desafio da sociedade. Ele destaca o aumento de crianças especiais na rede pública, sobretudo após o auge da pandemia, com a adesão de alunos que, antes, frequentavam instituições privadas.
Rosa considera robusta a oferta de profissionais pelo programa e acredita que terá capacidade para minimizar a judicialização. Os 357 agentes de educação inclusiva serão somados aos 169 monitores já atuantes – estes últimos contratados via concurso público para atender exclusivamente alunos especiais. Existem outros mais de 400 monitores na rede municipal que atendem a Educação Infantil integralmente, abarcando os demais alunos.
— Temos a expectativa de corrigir a dificuldade que algumas famílias e escolas têm. É uma ótima alternativa. Se demorou um pouco, está corrigido. É um problema que, imagino, não vamos enfrentar no início do próximo ano — diz, confiante, o secretário.
Ele afirma que a Smed terá flexibilidade para fazer revisões periódicas sobre a adequação da quantidade de agentes de educação inclusiva. No atual formato, a previsão é de que cada profissional atenda 10 alunos atípicos no Ensino Fundamental e cinco no Ensino Infantil.
Quando a criança autista se desorganiza, o monitor experiente consegue ajudar a retomar o controle. Algumas gritam, outras choram. Alguns são não verbais e se movem. O profissional consegue identificar e há formas de acalmar a criança para ela se regular e retomar o controle .
RUDIMAR RIESGO,
CHEFE DA UNIDADE DE NEUROLOGIA INFANTIL DO HOSPITAL DE CLÍNICAS DE PORTO ALEGRE (HCPA)
A Abess está finalizando o edital para contratar os profissionais que irão atuar nas escolas. Para a função de agente, a exigência é ter no mínimo Ensino Médio completo, com preferência para estudantes de Pedagogia e do Magistério. A contratação será via Consolidação das Leis do Trabalho (CLT).
O objetivo é iniciar o trabalho nas escolas ainda em 2023, embora não haja data definida. A direção da entidade diz que uma das metas é evitar a rotatividade de agentes. Em geral, autistas têm na relação de confiança com os interlocutores um dos pontos relevantes para o seu desenvolvimento.
— Vamos trabalhar a autonomia do estudante de inclusão e teremos muito cuidado para não ter a quebra do vínculo — diz Laura de Andrade, diretora-executiva da ABESS, entidade com sede em Alvorada e que administra, atualmente, oito escolas na Região Metropolitana.
Benefícios do acompanhamento próximo
O especialista em autismo Rudimar Riesgo, chefe da Unidade de Neurologia Infantil do Hospital de Clínicas de Porto Alegre (HCPA), considera o Incluir+POA uma "boa iniciativa". Ele destaca que o agente ou monitor é importante na mediação de atritos.
— Quando a criança autista se desorganiza, o monitor experiente consegue ajudar a retomar o controle. Algumas gritam, outras choram. Alguns são não verbais e se movem. O profissional consegue identificar e há formas de acalmar a criança para ela se regular e retomar o controle — diz Riesgo.
Para os momentos de desorganização, em que parte dos autistas pode se afastar da turma correndo, ele menciona outro valor dos auxiliares que acompanham de perto.
— Crianças autistas frequentemente não têm noção de perigo. Elas podem sair da sala, da escola, podem se machucar no pátio. O monitor é como um anjo da guarda — diz Riesgo.
Ele ainda comenta que o profissional de auxílio, por conhecer melhor o aluno, pode explorar o "hiperfoco" do autista –algo que lhe causa fascínio – para sugerir atividades relacionadas que despertem motivação e engajamento.
Histórico dos processos de contratação de monitores
- 23 de agosto de 2022 - Processo administrativo menciona "grande demanda" por monitores para os alunos de inclusão. É citada a crescente judicialização para acompanhamento individual: eram 157 processos à época.
- 5 de setembro de 2022 - Ofício da Smed solicita a nomeação de 158 monitores para os alunos de inclusão. Documento destaca que estava em aberto o cumprimento de 103 demandas judicializadas.
- 13 de outubro de 2022 - O pedido de 158 monitores tramitou, mas o Comitê Municipal para a Gestão de Despesa de Pessoal, integrado pelo núcleo do governo Melo, autorizou a nomeação de 15.
- 20 de outubro de 2022 - Setor de recursos humanos da Smed faz pedido de nomeação de 208 monitores.
- 25 de outubro de 2022 - A Secretaria Municipal da Fazenda anexa ao processo um cálculo da repercussão financeira mostrando que havia espaço fiscal para contratar.
- 24 de fevereiro de 2023 - Smed pede 208 monitores para atender a demanda.
- 8 de março de 2023 - Secretaria de Administração e Patrimônio autoriza a nomeação de 11 monitores para repor as exonerações.
- 25 de abril de 2023 - Smed "reitera" necessidade de 277 monitores para os ensinos Infantil e Fundamental. Ofício alerta: "Nossa obrigação legal está sendo negligenciada".
- 8 de maio de 2023 - Tramita o pedido de contratação de 277 profissionais, mas a Administração autoriza apenas a nomeação de 10 monitores para repor exonerações.
- 14 de agosto de 2023 - Prefeitura lança o programa Incluir+POA. Objetivo é contratar 421 profissionais para auxiliar os professores no atendimento da educação inclusiva.
- 4 de setembro de 2023 - Diário Oficial de Porto Alegre (DOPA) informa que a Associação Brasileira de Educação, Saúde e Assistência Social (ABESS), de Alvorada, foi a vencedora do chamamento público para fornecer os agentes de educação inclusiva.
- Novembro de 2023 - Previsão de início do trabalho da ABESS nas escolas.