Decidida a voltar ao trabalho, Michele matriculou, neste ano, a duplinha de filhos no turno integral da Escola Municipal de Ensino Fundamental Neusa Goulart Brizola, no bairro Cavalhada, em Porto Alegre. Contudo, os pequenos frequentam a escola somente pela manhã, das 8h às 12h. Eles se ausentam todas as tardes e perdem os conteúdos e atividades do turno. O motivo: a instituição não dispõe de monitores suficientes para absorver a demanda de Pedro e Otávio.
Nas quatro horas em que frequentam a escola, estão sempre acompanhados de duas Assistentes Terapêuticas (ATs) contratadas pelo plano de saúde privado, uma para cada gêmeo, que os acompanham em todas as atividades, inclusive dentro da sala de aula.
— A escola recebeu eles muito bem, só que, desde o primeiro momento, disse que não teria monitores. Não deixam eles ficarem um minuto sem estar com as ATs. Eles são muito ativos e têm de sair da sala às vezes para se regular. São as ATs que acompanham nesses momentos — narra Michele.
Para o portador do TEA, se regular é o equivalente a retomar o controle. Isso é necessário quando a pessoa se "desorganiza", ou seja, perde a tranquilidade. Diariamente ao meio-dia, assim que se encerra a carga horária das ATs, Michele tem de buscar Pedro e Otávio e levá-los para casa.
No início, a direção da escola pediu um tempo para avaliar o impacto das ATs dentro da sala, já que elas não possuem vínculo com a instituição. Um dos temores era de que as profissionais pudessem atrapalhar o aprendizado dos demais alunos, mas, até o momento, o resultado é considerado positivo.
A mãe relata que, além da regulação, as ATs são fundamentais para o foco nas atividades pedagógicas. Mediante negociações, como a promessa de intercalar a realização de uma tarefa com a recreação, conseguem prender a atenção dos agitados meninos.
No dia 24 de outubro, no início da tarde, a reportagem encontrou as duas crianças no apartamento em que residem com a mãe, no bairro Tristeza. Enquanto os demais colegas seguiam no turno integral da escola, eles corriam dentro do imóvel.
. Sendo muito sincera, eu quero que eles estejam no meio dos outros, mas entendo o lado dos outros. Os ATs e os monitores são importantes também para os colegas. A professora muitas vezes tem de quebrar a rotina da aula para dar atenção à criança especial.
MICHELE MULLER MONCKS
Arquiteta e mãe de gêmeos autistas
— Eles não param. Sendo muito sincera, eu quero que eles estejam no meio dos outros, mas entendo o lado dos outros. Os ATs e os monitores são importantes também para os colegas. A professora muitas vezes tem de quebrar a rotina da aula para dar atenção à criança especial — comenta Michele.
Antes de matricular os filhos na escola municipal, ela cogitou a rede privada e fez algumas visitas. Diante da limitação financeira, optou por pagar o plano de saúde e aderir ao ensino público. Michele celebra o fato de Pedro e Otávio estarem lendo e escrevendo, apesar de perderem um turno de aula por carência de pessoal. E revela sentir-se acolhida.
— Vejo a escola municipal com muito mais vontade de ser inclusiva. As pessoas entendem a diferença. Na particular, senti uma barreira — conta.
Descumprimento de decisão
Aos 5 anos, Frederico tem diagnóstico de Transtorno do Espectro Austista (TEA) e permanece na Escola Municipal de Ensino Infantil (EMEI) JP Pica-Pau Amarelo, no Centro Histórico de Porto Alegre, por apenas duas horas diárias, das 8h às 10h. Desde o início de 2023, a mãe dele, Karen Aline Perez, foi avisada pela direção de que o menino tem "baixa suportabilidade" e não havia oferta de monitor para dar conta.
A responsável foi à Defensoria Pública e ingressou com ação na 1ª Vara da Infância e Juventude de Porto Alegre requerendo o atendimento especializado, previsto na Constituição Federal. O juiz Charles Maciel Bittencourt teve a possibilidade de tomar como subsídio para a sua decisão um relatório pedagógico de profissional que acompanhou Frederico na escola temporariamente.
Um resumo do parecer foi reproduzido na decisão, destacando tratar-se de "criança sem autonomia", com necessidade de auxílio para "higiene e deslocamento" e "mediação" para cumprir as atividades propostas, solucionar conflitos, crises de desorganização e de choro.
No dia 19 de setembro de 2023, o magistrado concedeu liminar atendendo parcialmente o pedido de Karen. O município recebeu a determinação de fornecer monitor à turma em que estivesse Frederico. O prazo para cumprimento era de 10 dias, mas o mês de outubro correu inteiro sem que a prefeitura de Porto Alegre tomasse providência. Frederico segue desassistido e frequentando a escola em horário encurtado.
São direitos que estão no papel, mas nada é cumprido. É um ano inteiro que o meu filho poderia estar melhor assistido, permanecendo por quatro horas no ambiente escolar. O sistema é falho e sobrecarrega a família.
KAREN ALINE PEREZ
Mãe do Frederico, criança de 5 anos autista
Karen, agora, está na etapa pela qual outros pais já passaram: orientada pela Defensoria Pública, recolheu três orçamentos de pedagogos que atuam como monitores. Os documentos são entregues na Justiça com um pedido de cumprimento forçado de decisão judicial.
Os magistrados têm atendido e determinado o bloqueio de valores na conta da prefeitura. Se obtiver êxito, Karen receberá os recursos e ficará responsável por contratar e pagar o profissional que vai entrar na escola para fazer a monitoria.
— São direitos que estão no papel, mas nada é cumprido. É um ano inteiro que o meu filho poderia estar melhor assistido, permanecendo por quatro horas no ambiente escolar. O sistema é falho e sobrecarrega a família — lamenta Karen.