Depois de dois anos de aulas prejudicadas pela pandemia, período em que boa parte dos currículos foram lecionados a distância, 2022 marcou a volta do ensino presencial de forma abrangente no país. Mas a falta de um plano nacional para orientar os sistemas educacionais durante a crise sanitária e a exclusão digital das famílias mais pobres deixaram um déficit de aprendizagem que ainda está longe de ser sanado.
O legado nocivo gerado pela combinação entre o coronavírus e a falta de planejamento inclui ainda uma evasão escolar galopante e a queda brutal na procura por vagas no Ensino Superior via Exame Nacional do Ensino Médio (Enem). A boa notícia é que a necessidade de aprender de forma remota estimulou o uso da tecnologia na educação, aproximou as gestões de Estados e municípios em busca de saídas e motivou a implementação de políticas como a busca ativa de alunos ausentes por parte das redes.
— Houve uma retomada das aulas com quase nenhuma coordenação do Ministério da Educação (MEC). Passamos pela maior crise educacional da nossa história recente por conta da pandemia, mas também pela falta de visão do ministério de que era seu papel coordenar a política de educação em resposta à covid-19 — avalia a diretora do Centro de Políticas Educacionais da Fundação Getulio Vargas (FGV), Cláudia Costin.
O MEC, em nota, discorda dessa avaliação e informa que instituiu ainda em 2020 um Comitê Operativo Emergencial integrado por secretarias da pasta, representações de universidades e gestões municipais e estaduais para discutir e coordenar medidas de mitigação ao impacto da pandemia.
O fato é que o déficit na aprendizagem se tornou um sintoma ainda mais agudo dos males da educação brasileira após o coronavírus. Um estudo divulgado neste ano pelo Instituto Nacional de Estudos e Pesquisas Educacionais Anísio Teixeira (Inep) apontou que o percentual de crianças com dificuldade para ler e escrever dobrou entre 2019 e 2021 — saltou de 15,5% para 33,8%.
Passamos pela maior crise educacional da nossa história recente por conta da pandemia, mas também pela falta de visão do Ministério da Educação
CLÁUDIA COSTIN
Diretora do Centro de Políticas Educacionais da FGV
A queda de rendimento não foi o único desafio adicional imposto a escolas e universidades ao longo do ano. O interesse dos jovens em ingressar no Ensino Superior por meio do Enem desabou em 2022: as inscrições para o exame que garante vaga em instituições por todo o país apresentaram o menor número em 17 anos. Somente 3,4 milhões de pessoas se candidataram para prestar a prova, em contraste com o patamar de 8,6 milhões em 2016.
Esse quadro foi agravado ainda mais pela desistência de quem já havia alcançado o sonho de iniciar uma faculdade. No sistema privado, a taxa de evasão superou 36% no ano passado, conforme os dados mais recentes disponíveis. Cláudia Costin observa que, pelo menos, também houve experiências promissoras implementadas pela necessidade de fazer frente ao vírus.
— Houve algo interessante. Na ausência do MEC, o Conselho Nacional de Secretários de Educação (Consed) e a União Nacional dos Dirigentes Municipais de Educação (Undime) ocuparam um pouco esse espaço trocando boas práticas. Uma delas foi fomentar a busca de alunos dos anos finais do Ensino Fundamental e do Médio que saíram das escolas — diz a especialista.
Outra lição aprendida por muitos governos foi a adoção de um regime de colaboração, previsto no texto constitucional, mas até então pouco utilizado, que permitiu o apoio pedagógico e financeiro de administrações estaduais a prefeituras. Essa estratégia já era colocada em prática há alguns anos no Ceará, mas acabou replicada em Estados como Espírito Santo, São Paulo, Goiás e Paraíba. Também houve maior preocupação em promover diagnósticos do nível de aprendizagem dos alunos a fim de monitorar mais de perto os danos provocados pela crise do coronavírus sobre o conhecimento.
Outro passo adiante foi a introdução da tecnologia de forma mais orgânica e integrada nas escolas, com uso de equipamentos em sala de aula em vez do antigo modelo baseado em uma sala exclusiva de informática com horários pré-determinados de uso.
Números que preocupam
- 33,8% é o índice de crianças que têm dificuldasde para ler, segundo estudo do Inep. Antes da chegada da covid-19, o mesmo levantamento havia apontado uma porcentagem bem menor: 15,5%.
- A pandemia também impulsionou a evasão escolar, que conforme dados do IBGE divulgados em meados de 2022 aumentou 171%.
Cortes no orçamento
Mas nem só questões sanitárias interferiram na qualidade do ensino ao longo do ano. Já no fim do ano, universidades de todo o país foram pegas de surpresa por um bloqueio orçamentário de mais de R$ 300 milhões. Reitores informaram que a situação era insustentável e impedia a quitação de contas básicas como segurança, limpeza e auxílio estudantil. O pagamento de pesquisadores bolsistas também ficou temporariamente inviabilizado com o corte, que mais tarde foi revisto, em parte.
O cenário desfavorável ao Ensino Superior e à pesquisa, que se estende nos últimos anos e já havia motivado outros congelamentos de verbas, na avaliação do cientista político e professor da PUCRS Hermílio Santos vem estimulando muitos colegas a deixar o Brasil:
— Dada a incerteza e a mutilação da infraestrutura de pesquisa, muitos pesquisadores de universidades brasileiras desistiram de colocar seu futuro aqui no país. Isso provoca um prejuízo que podemos não sentir imediatamente, mas compromete perspectivas futuras.
Para Cláudia Costin, além de repor os orçamentos de universidades e institutos de pesquisa, fica como tema de casa para o Brasil, a partir de 2023, outras tarefas vinculadas à Educação Básica. Entre elas está a regulamentação do chamado “SUS da educação”, um sistema nacional que deverá definir com mais clareza os papéis da União, dos Estados e dos municípios na organização do ensino.
— Isso será um instrumento para assegurar equidade. Não há desigualdades educacionais apenas entre pessoas, mas entre grupos étnicos e entre Estados — sustenta Cláudia.
A especialista defende ainda como uma medida urgente que as escolas invistam na educação para a democracia, repassando não apenas lições de matemática e português, mas orientando os alunos a aceitarem as diferenças e não mergulharem no ambiente de ódio que também marcou o ano de 2022 no Brasil.
Em novembro, um adolescente vestido com roupas camufladas e uma insígnia nazista no braço invadiu duas escolas no município de Aracruz, no Espírito Santo, e disparou contra estudantes, professores e funcionários. Três educadoras e uma menina de 12 anos morreram e outras 12 pessoas ficaram feridas. O autor, de 16 anos, foi sentenciado a uma pena de três anos de internação — punição máxima prevista como medida socioeducativa para adolescentes que infringem a lei.
O que é o “SUS da Educação”
- Oficialmente denominado Sistema Nacional de Educação (SNE), é parte do Plano Nacional de Educação (PNE), estabelecido em 2014, mas que nunca foi implementado na prática
- Busca, de um modo geral, minimizar as diferenças quanto a estrutura e organização das instituições de ensino, seja da rede municipal, estadual ou federal
- Essas diferenças se tornaram ainda mais escancaradas durante a pandemia, o que retomou a discussão sobre o SNE
- Em março de 2022, o Senado aprovou o Projeto de Lei Complementar (PLP) 235/19, que cria o SNE. Desde então, o projeto tramita na Câmara dos Deputados