Ao retornar de um intercâmbio em Moçambique, na África, o estudante de Medicina Wilson Zatt, 26 anos, tinha uma certeza: queria além de um consultório para si. Seu propósito de vida, percebera na época, era levar saúde ao maior número de pessoas possível. E, para isso, sabia que a tecnologia seria fundamental.
Foi com essa convicção que o aluno da Universidade Federal de Santa Maria (UFSM) fundou, em outubro de 2019, a Lauduz - cujo nome une as palavras laudo e luz, que se referem ao documento associado ao exame médico e às soluções tecnológicas, respectivamente.
— A empresa tenta buscar uma solução para o acesso à saúde. Hoje, temos no mundo mais de 3 bilhões de pessoas que não têm esse acesso. Então, tentamos ajudar as instituições de saúde a se digitalizarem para fornecer atendimento de qualidade para um maior número de pessoas — explica.
Mas a Lauduz não começou exatamente como planejado. Enquanto Zatt mergulhava de cabeça em uma nova graduação - Ciência da Computação, na Universidade Franciscana (UFN), em paralelo à Medicina - e estruturava o primeiro produto da empresa, veio a pandemia de covid-19.
Diante da crise sanitária, o estudante enxergou a oportunidade de lançar uma solução que conectasse pacientes que estavam em casa, em distanciamento social, com médicos que poderiam ajudá-los de alguma forma. Assim, em 21 de março de 2020, um dia após a publicação da portaria que regulamentava as ações de telemedicina para enfrentamento da pandemia, em caráter excepcional e temporário, entrou em funcionamento uma plataforma de teleconsultas com o nome Lauduz.
Conforme Zatt, a iniciativa sem fins lucrativos era destinada a pacientes de Santa Maria com sintomas de covid-19 e atendeu mais de 5 mil pessoas, com a ajuda de mais de 300 médicos e acadêmicos da área saúde voluntários. O serviço deu origem ao braço social da empresa, o Instituto Lauduz, que hoje leva cuidados de saúde de forma remota e online para pessoas em vulnerabilidade social. Além disso, ajudou na percepção de que os médicos precisavam de uma teleconsulta mais completa, fazendo o estudante entender que somente a plataforma de vídeochamadas não bastaria:
— Percebi que tínhamos que trabalhar também o exame físico remoto e que essa solução teria que chegar em pacientes que não têm fluência digital ou acesso a internet. Então, começamos a desenvolver uma plataforma de telemedicina com telemetria, que é a possibilidade de realizar exame físico a distância, somente com a ajuda de um agente de saúde — afirma Zatt, esclarecendo que os equipamentos utilizados nesses exames, como o estetoscópio, enviam dados do paciente à plataforma para que o médico tenha acesso.
Hoje, a Lauduz pode ser definida como uma empresa de telemedicina focada em vender soluções para instituições de saúde, com o objetivo de ampliar o acesso às consultas médicas de diferentes especialidades - isso porque, com a tecnologia, o especialista não precisa estar na mesma cidade que o paciente. Para isso, oferece a plataforma, que também pode ser conectada com um kit de atendimento (maleta com tablet e dispositivos para aferir sinais vitais, como temperatura, pressão arterial, batimentos cardíacos e saturação de oxigênio, auscultar coração, pulmões e abdômen, e examinar ouvido, boca e pele) e com uma cabine, que ainda será lançada e poderá ser instalada em qualquer local:
— Trabalhamos muito para deixar o consultório médico remoto tão bom quanto o que existe hoje de forma física, porque essa é a única maneira de conseguir escalar a saúde e levá-la para pessoas que não contam com uma estrutura física (hospital ou clínica) que comporte médicos especialistas de grandes centros.
Além de Zatt, que é o CEO, a Lauduz tem Carolina Fernandes como diretora médica e Felipe Bolzan como coordenador de tecnologia. Sediada em uma sala da Universidade Franciscana, no Centro de Santa Maria, a startup conta ainda com três prestadores de serviço, que são os desenvolvedores de software.
Empreendedorismo no RS
Com o objetivo de apresentar histórias inspiradoras, a série contará semanalmente as trajetórias de empreendedores que transformaram uma ideia ou um sonho em realidade. Fundadores e sócios de 10 empresas de diferentes cidades gaúchas compartilharão os desafios superados e darão dicas para quem deseja abrir seu próprio negócio nos ramos de tecnologia no campo, saúde, moda, cuidados com o corpo, entre outros.
Custo da tecnologia é um empecilho
A Lauduz contou com um investimento inicial de aproximadamente R$ 100 mil e, em 2021, foi vencedora do Desafio de Saúde Domiciliar de Vitória-ES, que resultou em um prêmio de R$ 200 mil, destinado à melhoria do kit de saúde digital. Já em março deste ano, recebeu investimento anjo de R$ 115 mil e, em agosto, pretende abrir novas rodadas de investimento, com o objetivo de aprimorar a plataforma e conseguir todas as regulamentações dos produtos.
De acordo com Zatt, a startup já tem alguns clientes que usam a plataforma, mas o kit ainda não é utilizado efetivamente por nenhuma instituição de saúde. Algumas vendas, entretanto, já estão sendo negociadas com empresas do Rio Grande do Sul e de outros Estados.
Apesar de unir duas áreas que ganharam muito destaque nos últimos anos, a Lauduz tem avançado a passos curtos - comportamento justificado pela dificuldade em integrar a plataforma com os equipamentos e pela complexidade na regulamentação de produtos de saúde no Brasil, explica o estudante. A tecnologia vem de fornecedores internacionais, o que encarece o desenvolvimento das soluções.
— É caro fazer o que a gente faz, então esse é um desafio muito grande para nós e sempre vai ser, porque desenvolvedor não é uma mão de obra muito barata e a gente precisa desses profissionais. Tem uma dificuldade de importação também: hoje temos parceiros nos Estados Unidos, na Europa e na China, então a gente que conversar com eles, mas é difícil visitá-los porque ainda somos pequenos. E pagamos muito imposto para importar coisas para o Brasil, o que às vezes chega a inviabilizar o desenvolvimento e a inovação dentro do país — ressalta Zatt.
Os valores que já entraram na empresa por meio dos contratos para o uso da plataforma foram reinvestidos em pesquisa e desenvolvimento, que também geram um alto custo, mas resultam em novas soluções (kit e cabine) que podem fazer com que a Lauduz cresça ainda mais, conforme projeta o estudante.
A médica Carolina Fernandes, que é sócia da startup desde dezembro de 2021, acrescenta que outro desafio no início de um empreendimento é conseguir conciliar todas as diferentes demandas - entender sobre o mercado, desenhar o produto, estudar concorrentes e ajudar com marketing, vendas e suporte - sem muita renda:
— Precisamos estar sempre nos reinventando e em busca de crescimento, pois o recurso é escasso no início. Muitas vezes é bem cansativo, mas precisamos trabalhar duro e com bastante dedicação.
Aceitação da telemedicina
O fato de a telemedicina ainda ser novidade no Brasil - antes da pandemia, consultas médicas a distância só eram permitidas em situações de urgência, diferentemente do que já ocorria em outros países - também gera empecilhos para a Lauduz. Zatt comenta que, por ter começado a operar assim que a modalidade foi autorizada de forma emergencial, a empresa enfrentou dúvidas sobre o que era realmente possível e permitido.
Essa questão, no entanto, foi superada com a regulamentação da telemedicina pelo Conselho Federal de Medicina (CFM), em maio deste ano, e pelo Ministério da Saúde, a partir do programa Telessaúde Brasil, no início de junho. Mesmo assim, a aceitação da nova modalidade continua sendo um desafio.
— A gente precisava que saísse do emergencial e virasse oficial, para podermos continuar trabalhando, e isso aconteceu. Mas tem essa questão da inovação, de ter essa barreira para as pessoas aceitarem ou acreditarem naquilo que está sendo feito. Esse é um problema que a gente vai continuar enfrentando por um tempo — destaca Zatt.
Ter um propósito claro ajuda a lidar com os desafios
Para ajudar a driblar as dificuldades, o estudante indica que se escolha muito bem as pessoas que estarão ao seu lado no início da jornada, que costuma ser árdua. Ele aponta que, se preciso, vale a pena investir um pouco mais de tempo com esse processo antes de começar a empreender efetivamente. Também ressalta que é necessário entender muito bem o que está fazendo, qual a dor pretende solucionar e se realmente há clientes buscando essa solução.
— Acredito que para se perpetuar no mercado, a empresa tem que ter seu propósito muito claro: por que existe, que dor resolve, o que faz para ajudar a melhorar a vida das pessoas? A partir daí, se consegue entender o que a empresa nasceu para fazer e no que está focada, e é isso que a faz conseguir ter pessoas engajadas para superar os desafios — comenta.
Zatt alerta ainda que uma startup nasce com os dias contados e pouco recurso, então tem que tentar ser assertiva:
— Quanto mais rápido tu errar e quanto mais rápido tu validar o problema que se propõe a resolver, mais chances tu tens de conseguir algo que vai escalar e ter resultados. E, se tu não tens um propósito claro no momento em que precisa tomar algumas decisões, podes errar mais. Na Lauduz, quando precisamos tomar decisões estratégicas importantes, sempre nos apegamos ao propósito dela, porque essa é a nossa essência.
Neste aspecto, o estudante cita que a capacidade de se adaptar é outro ponto fundamental de uma empresa, especialmente se for inovadora. O empreendedor tem que ser resiliente e ter consciência de que pode surgir uma crise inesperada, como a pandemia de covid-19, que afetará totalmente o seu negócio e terá que ser superada.
Espaço para quem quer empreender e planos para o futuro
Zatt avalia que a pandemia gerou muitas oportunidades para a união de saúde e tecnologia e que, no Brasil, há um grande mercado para resolver problemas relacionados à medicina. Apesar das dificuldades envolvendo os custos com tecnologia, ele sinaliza que mesmo trabalhando apenas com software, por exemplo, é possível elaborar diferentes soluções. Ou seja, é um campo que vem amadurecendo no país e abrindo mais portas para quem pensa nesse tipo de investimento.
Para quem deseja empreender nesse ramo, Carolina também aponta a importância de ter conhecimento sobre as áreas de saúde e tecnologia e suas regulamentações, além de avaliar amplamente a forma como as soluções tecnológicas irão impactar a sociedade - ter mentores ou sócios médicos e desenvolvedores pode auxiliar nessa parte.
— Reforço a necessidade de desenvolver e aperfeiçoar habilidades, como a comunicação, para poder construir uma rede forte de networking, que é fundamental para o sucesso de uma startup — diz a médica.
O estudante da UFSM finaliza destacando que o sonho para a Lauduz é ousado: eles querem estar em todas as cidades brasileiras em algum momento e, depois, chegar também a outros países.