Alunos de escolas públicas e privadas do Rio Grande do Sul estão sem aulas presenciais normais desde março de 2020. Nesse período, as retomadas foram pontuais, intercaladas com novos períodos de suspensão. Porém, a volta para a Educação Infantil e os 1º e 2º anos do Ensino Fundamental pode ocorrer se a Justiça decidir a favor das ações do governo do Estado.
A Justiça gaúcha, a partir de um pedido da Associação de Mães e Pais pela Democracia, suspendeu a retomada através de liminar e abriu prazo para manifestações. Porém, o governo do RS, através da Procuradoria-Geral do Estado (PGE), ingressou com Arguição de Descumprimento de Preceitos Fundamentais (ADPF) no Supremo Tribunal Federal (STF) para retomar as aulas. Essa ação será relatada pelo ministro Nunes Marques, que, no final de semana, liberou cultos religiosos durante a pandemia.
Diante desse cenário, GZH ouviu especialistas em saúde para saber se é ou não é hora de voltar ao convívio dos colegas, sobre os reflexos para a saúde física e mental das aulas online e do distanciamento social e sobre os cuidados que serão necessários quando as atividades presenciais forem retomadas.
Quais os riscos com a retomada
O infectologista pediátrico Fabrizio Motta, supervisor do Serviço de Infectologia Pediátrica da Santa Casa de Porto Alegre, diz que os riscos da doença para crianças e adolescentes são muito baixos. De acordo com os dados do governo do RS, foram 46 óbitos (0,21% do total no Estado) e 82.645 casos (9,51%) de coronavírus entre pessoas entre 0 e 19 anos de idade desde o início da pandemia, ressaltando-se que houve uma maior redução de mobilidade dessas faixas etárias sem as atividades escolares.
Ele pondera, no entanto, que o retorno às aulas envolve toda a rede, como professores, servidores de escola e os próprios pais. Além disso, lembra que muitos dos familiares dos estudantes podem estar em grupo de risco.
Para Motta, é preciso colocar como prioridade a vacinação de professores e trabalhadores de escola. Essa retomada, alerta ele, só pode acontecer com controle maior da pandemia e redução nas internações hospitalares. Por isso, ele não considera esse momento adequado para a retomada das atividades presenciais.
— Mesmo todos sabendo dos riscos de desenvolvimento para as crianças, a sociedade deveria estar lutando para que atingíssemos esses pontos — destaca Motta.
Em caso de decisão favorável da justiça de volta às aulas para os pequenos, reforça medidas que precisam ser tomadas nas escolas:
— A primeira coisa que tem que ser feita é todo um rastreio das pessoas que vão à escola. Na entrada da escola, medir temperatura, perguntar sobre sintomas ou contatos com alguém suspeito ou positivo nos últimos dez dias. Ter todo um trabalho de distanciamento dentro da escola. Disponibilidade de álcool gel, trabalhar o uso de máscara na faixa etária que é recomendado. Uso de máscara em todos os adultos — destaca o infectologista pediátrico.
A primeira coisa que tem que ser feita é todo um rastreio das pessoas que vão à escola. Na entrada da escola, medir temperatura, perguntar sobre sintomas ou contatos com alguém suspeito ou positivo nos últimos dez dias.
FABRIZIO MOTTA
Infectologista pediátrico
Segundo Motta, com as crianças voltando às aulas presenciais, os cuidados em casa devem ser redobrados.
— Mesmo dentro de casa, obedeça distanciamento, por causa das pessoas em grupo de risco que vivem junto. E evitar qualquer tipo de aglomeração com pessoas que não morem na residência. Evitar beijos, abraços. Isso precisa ser mantido. Pelo menos até a gente conseguir ter toda a população vacinada, com as duas doses— destaca o médico.
O impacto no desenvolvimento de crianças e adolescentes
GZH ouviu dois pediatras sobre o tema. Um avaliou os impactos desse um ano de aulas online e isolamento social nos bebês e crianças pequenas, e outro analisou os prejuízos aos pré-adolescentes e adolescentes. Ambos sustentam que já existe comprometimento no desenvolvimento dessa faixa etária, mas ressaltam que ele pode ser revertido. Há uma divisão dentro da própria pediatria se esse é o momento ou não de voltar.
Bebês e crianças pequenas
O médico pediatra do Desenvolvimento e Comportamento Renato Santos Coelho, integrante do Comitê de Desenvolvimento e Comportamento da Sociedade de Pediatria do Rio Grande do Sul, vê mais benefícios do que prejuízos ou riscos na volta às aulas.
— É uma questão de equilíbrio, de balança. Quanto mais tempo a gente ficar fora da escola e em casa, vai ser pior. Colocando na balança prós e contras, nós temos que chegar num ponto de equilíbrio onde o risco lá fora não é tão grande. E o risco aqui dentro (em casa) está ficando pior do ponto de vista do comportamento, desenvolvimento, a parte de aprendizagem. Eu acho que chegamos ao ponto que ficar em casa está ficando prejudicial — avalia Renato, ao também reforçar o seu posicionamento de que os professores precisam ser vacinados o quanto antes.
Em relação aos bebês e crianças pequenas, Renato analisa que o período em casa trouxe repercussões importantes no desenvolvimento e comportamento dessa faixa etária. Lembra que antes existia a rotina dos pais que saíam cedo para trabalhar, deixavam seus filhos na escola e voltavam a se reunir com eles à noite, fazendo com que a escola tivesse o papel educativo na vida dos pequenos.
Quanto mais tempo a gente ficar fora da escola e em casa, vai ser pior. Colocando na balança prós e contras, nós temos que chegar num ponto de equilíbrio onde o risco lá fora não é tão grande
RENATO SANTOS COELHO
— E essa função passou a ser executada pelos pais. E é como se os pais, hoje, estivessem sem essa habilidade. E, consequentemente, os pais também se depararam com ideias como "eu não sei ajudar meu filho a estudar, eu não sei ajudar meu filho a fazer suas atividades." Essas crianças tiveram que se adaptar com modelo de aula virtual.
O pediatra lembra que o ambiente doméstico não é preparado para as atividades educacionais. Diz que percebeu nos bebês com menos de três anos que eles passaram a ter uma rotina muito excessiva de uso de telas como as de celulares, tablets e computadores.
— Se a gente olhar o desenvolvimento infantil no seu processo principal, que são os primeiros três anos, onde há várias áreas do cérebro que estão se transformando e evoluindo, o bebê acaba tendo contato com essa tecnologia eletrônica muito cedo. E o cérebro não está pronto para entender todo aquele processo. A imagem que a criança tem de uma tela é bidimensional. Nos nossos olhos, a gente tem visão tridimensional. E a tela não interage com a criança. A criança tenta interagir com a tela, mas a tela não interage. Como a tela não responde, a criança acaba ficando no mundinho dela – alerta.
Renato sugere que os pais aceitem que esse momento excepcional está ocorrendo e conversem com outros pais para saberem como estão reagindo. Também que busquem ajuda com pediatras e professores. E lembra da necessidade de rotina, mesmo ficando em casa.
— É preciso que os pais tenham uma lista de atividades que eles têm que ter em casa e estabelecerem uma regra com a criança desde cedo. Em relação às crianças menores, dentro do possível, não colocar na frente das telas. Até os dois anos, as sociedades Brasileira e Americana de Pediatria recomendam que as crianças não tenham acesso a essas telas eletrônicas. Que os pais não utilizem os desenhos na televisão, nem no celular como forma de entretenimento para as crianças — destaca o médico, observando que as exceções são possíveis.
Conforme Renato, mesmo com esse atraso no desenvolvimento, a tendência é de que a criança consiga uma recuperação ao longo do seu crescimento, mas faz um alerta.
— Se tu tens uma criança com até um ano e meio com privação de convívio social ou um atraso no desenvolvimento por causa do excesso de telas, se tu reverte isso numa fase ainda precoce, seria até uns 3, 4 anos, a chance de retornar ao estado anterior é grande. Agora, quanto mais tempo ficar nessa condição, claro que tu aumenta as chances de trazer prejuízos na parte, principalmente, cognitiva. Que é a capacidade de poder aprender.
O pediatra também observa que o uso excessivo das telas pode dificultar questões alimentares e físicas nos pequenos.
— Principalmente na hora de comer. A gente não recomenda comer assistindo televisão. Quanto menos atividade física, mais a parte muscular e esquelética não tem o estímulo. Quanto mais em casa tu está, menos atividade física natural tu faz – observa.
Saúde mental
Em relação aos pré-adolescentes e adolescentes, o médico pediatra e integrante da Sociedade de Pediatria do Rio Grande do Sul José Paulo Ferreira, usa uma metáfora ao dizer que estamos em estado de guerra e que em situações como essas, não há quem não saia sem cicatrizes.
— A indefinição provoca um pouco de ansiedade. A gente tem registrado vários distúrbios alimentares, de sono, casos de depressão em crianças e adolescentes. A gente está enfrentando muito mais questões emocionais do que questões clínicas. No caso de gripes, resfriados, asma, bronquite, como as crianças não estão circulando, então diminuiu muito isso. Então, sobraram essas questões emocionais que são bastante intensas no consultório.
Um dos motivos pelos quais essas dificuldades mentais aparecem está na mudança constante de rotina, segundo Ferreira.
— A rotina é importante para a criança se situar na cultura dela, na comunidade dela. Saber qual é o papel dela naquele momento. Então, agora a gente tem criança e adolescente que a gente diz: não pode sair. Sai. Não mexe no celular, larga. Vai brincar, volta. Então, isso eles ficam muito perdidos.
Precisamos principalmente de um sistema de saúde mais organizado e com mais vagas, que é o que não está acontecendo hoje. Ainda temos uma fila de espera longa para leitos de UTI. Isso precisa dar uma melhorada
JOSÉ PAULO FERREIRA
Médico pediatra
Sobre as aulas online, para ele, assim que houver segurança sanitária, é preciso retomar as atividades presenciais o quanto antes.
— Os colégios estão bem organizados, mas precisamos principalmente de um sistema de saúde mais organizado e com mais vagas, que é o que não está acontecendo hoje. Ainda temos uma fila de espera longa para leitos de UTI. Isso precisa dar uma melhorada – ressalta.
Contra a retomada: "Uma vida perdida não se recupera"
A ex-reitora da Universidade Estadual do Rio Grande do Sul (Uergs) Arisa Araújo da Luz, doutora em Educação, considera um risco muito grande a retomada das aulas neste momento.
— Retornar às aulas em nome de uma pseudodificuldade de aprendizagem específica da escola é, na verdade, um crime que estamos fazendo com uma geração inteira, de expor crianças, famílias inteiras, a uma situação pandêmica que estamos vivendo e na qual ainda não temos vacinas para toda a população.
Para ela, o prejuízo educacional aos pequenos já ocorreu, mas ele pode ser facilmente revertido.
Precisamos fazer com que tivéssemos no mínimo duas semanas de lockdown real no nosso Estado, para cessar a circulação do vírus, e aí sim daria para podermos voltar com segurança para as escolas.
HELENIR SCHURER
Presidente do Cpers
— Nós professores e professoras temos essa condição de pensar como vamos recuperar esse prejuízo. Mas uma vida perdida não se recupera.
Para Helenir Aguiar Schürer, presidente do Cpers, além da vacinação de todos os professores, é preciso que as escolas estaduais tenham a garantia dos equipamentos de proteção em quantidade e qualidade suficientes.
— Por isso, nós acreditamos que precisamos fazer com que tivéssemos no mínimo duas semanas de lockdown real no nosso Estado, para cessar a circulação do vírus, e aí sim daria para podermos voltar com segurança para as escolas.
A Sociedade de Pediatria do Rio Grande do Sul afirma que, apesar de ser favorável à retomada das aulas presenciais, não acredita que o momento seja "oportuno", segundo o presidente da entidade, Sérgio Amantéa.
— Claro que a escola é importante, que não pode ficar fechada e que essa pausa é ruim para a criança. Mas o momento não é oportuno para a reabertura, diante dos altos índices de infecções e de internação no Estado. Para que a escola realmente possa abrir, as pessoas precisam se sentir seguras. Isso envolve crianças, pais, professores, todos nós.
"Nenhum país do mundo que adotou política de escolas abertas em meio à pandemia o fez com tal cenário de transmissão. Não devemos entrar em discussões vazias de dados, que não traduzem a realidade imposta. Temos exemplos recentes de que isso não se constitui em uma agenda construtiva. Nosso momento é de união", diz a entidade em uma nota enviada, nesta terça, aos médicos que integram a sociedade.
A favor da retomada: "Temos prejuízos para as nossas crianças"
O presidente do Sindicato do Ensino Privado do Rio Grande do Sul (Sinepe-RS), Bruno Eizerik, considera que as aulas para educação infantil e 1º e 2º anos do Ensino Fundamental não deveriam ter sido interrompidas.
— Nós temos prejuízos para as nossas crianças, não só cognitivo, mas também em todo o desenvolvimento socioafetivo. Então esse prejuízo para as nossas crianças vai conseguir ser medido daqui a muito tempo.
Na avaliação de Bruno, as atividades escolares deveriam ser priorizadas em relação a outros estabelecimentos, como o comércio não-essencial.
— As crianças dos pais que estão trabalhando, onde elas estão? Será que elas têm um local seguro para estar?
As crianças dos pais que estão trabalhando, onde elas estão? Será que elas têm um local seguro para estar?
BRUNO EIZERIK
Presidente do Sinepe
Ele classifica como “inexplicável” o fato do judiciário dizer que de um lado o Governo do Estado é que define o que pode ou não abrir e, ao mesmo tempo, o governo estadual não libepoder liberar as aulas.
O coordenador da Vigilância em Saúde de Porto Alegre, Fernando Ritter defende a volta às aulas para essa faixa etária dos menores.
— Isso está abalando psicologicamente muito as crianças, as famílias. Isso vai impactar no desenvolvimento, no aprendizado. Quero reforçar o pedido do prefeito Sebastião Melo de que nós precisamos vacinar os professores e colaboradores de escola – destaca Ritter.
O que impede a volta às aulas
A retomada das aulas presenciais no Rio Grande do Sul está judicializada e pode ter uma decisão liberando ou não a qualquer momento. Na 1a Vara da Fazenda Pública de Porto Alegre, uma liminar movida pela Associação Mães e Pais Pela Democracia foi concedida em 28 de fevereiro impedindo esse recomeço para a Educação Infantil e 1º e 2º anos do Ensino Fundamental.
O governo do Estado, junto com outras entidades, como Sinepe-RS, vem tentando derrubar essa decisão usando como base as normas estabelecidas pelo próprio Piratini no sistema de Distanciamento Controlado, que coloca como atividades essenciais as aulas presenciais para esse público.
A juíza Cristina Luisa Marquesan da Silva abriu prazo para o autor da ação e para o Ministério Público se manifestarem antes de decidir sobre pedido de reconsideração da decisão. Porém, o Estado busca reconhecer a inconstitucionalidade das decisões judiciais que estão impedindo a realização de atividades presenciais de ensino. Por meio da PGE, ingressou na segunda-feira (5) com uma Ação Direta de Preceitos Fundamentais no Supremo Tribunal Federal (STF). Essa ação será relatada pelo ministro Nunes Marques. Ainda não há decisão.
Confira versão em áudio da reportagem:
*Colaborou Bruna Viesseri