À beira-mar de Cidreira, no Litoral Norte, duas irmãs dividem o tempo entre porções de violinha, o preparo de pastéis e os estudos. Com um objetivo definido: se tornarem médicas. Giovana da Silva Cardoso, 18 anos, e Gabrielle da Silva Cardoso, 23, trabalham em um quiosque no verão e estudam em Porto Alegre nas demais estações. As duas farão a prova do Exame Nacional do Ensino Médio (Enem).
— Aqui, juntamos dinheiro para estudar lá no inverno — afirma Giovana.
Com a ocupação em massa da faixa de areia e dos locais para comer na rua, as duas têm hora para começar, logo cedo da manhã, e o expediente se encerra apenas à noite, variando conforme o movimento. Já chegaram a trabalhar até as 22h, afirmam.
Giovana vive com a família do namorado, próximo do local onde concluiu o terceiro ano, a Escola Estadual de Ensino Médio Itália, no bairro Jardim Itú-Sabará, zona norte da Capital. Nos semestres letivos de 2020, afirma ter tido um número muito grande de trabalhos, demanda que tomou boa parte do tempo dedicado à prova de acesso à universidade. Ela vai prestar o Enem pela primeira vez, e lamenta a chegada da pandemia justamente quando mais precisava dos professores presentes.
— Como quero Medicina, eu ia usar esse último ano ao máximo. Mas em casa, fazendo um monte de trabalho, foi complicado. Não por culpa dos professores, que fizeram o máximo que podiam, muitas vezes sem estrutura — ressalta.
Entre as ações dos educadores, Giovana destaca as aulas de matemática do professor Áureo Leandro de Andrade, 46 anos. O docente desenhou os cálculos nos azulejos da parede, com o notebook apoiado sobre as cadeiras da cozinha. Sem um tripé, escorou o computador sobre três almofadas. Utilizou ainda brinquedos para ensinar geometria espacial de forma lúdica, tudo transmitido em uma live para os estudantes.
— A aula online não é obrigatória. A importância (da pandemia) é que mostra quem teve interesse, e fará esses alunos pessoas melhores — avalia o professor.
Na tentativa de reforçar os estudos, Giovana se inscreveu em um curso online, pago em prestações de R$ 25. A mãe das jovens mora em Cidreira, onde trabalha como carteira, nos Correios.
Gabrielle também vive na praia, e encara o terceiro Enem para Medicina. Enquanto não ingressa na concorrida graduação, cursa um técnico em Enfermagem em Porto Alegre, qualificação que está prestes a ser concluída. Para as aulas, aos sábados, percorria o caminho do Litoral à Região Metropolitana em uma van de transporte seletivo, regressando no mesmo dia.
Se o objetivo não for alcançado em 2021, o sonho das irmãs será adiado, mas não deixado de lado. Trabalhando em ritmo intenso, principalmente aos finais de semana — quando o Quiosque do Neneco fica lotado —, elas pretendem poupar o suficiente para pagar um pré-vestibular preparatório para Medicina. E esperam não ter as mesmas dificuldades de 2020.
— Este ano não tive como me preparar para o Enem, e, como meu dindo tem quiosque, a gente veio trabalhar com ele para bancar um cursinho mais em conta (nos próximos meses). Este ano a gente vai fazer o Enem na cara e na coragem mesmo, porque não tive como me preparar no inverno — diz Gabrielle.