A proposta de permitir que crianças de cinco anos possam ser matriculadas no 1º ano do Ensino Fundamental gaúcho, já aprovada pela Assembleia Legislativa, é tomada de controvérsias e ainda tem aplicação incerta para 2020. Isso porque, para se tornar lei, a medida ainda precisa ser sancionada pelo governador Eduardo Leite e, para ser aplicada na rede pública, depende da capacidade de execução por parte da Secretaria Estadual da Educação (Seduc). Além disso, a medida é contestada por especialistas em educação e amplamente questionável juridicamente, podendo acabar nos tribunais.
Atualmente, a legislação federal, refinada em parecer do Conselho Nacional de Educação, diz que as crianças com seis anos completos ou que atingem essa idade mínima até 31 de março devem ser matriculadas no 1º ano do Ensino Fundamental. O projeto do deputado estadual Eric Lins (DEM), aprovado por 32 votos a 16, permite que crianças que vão completar seis anos em outros momentos do ano letivo, portanto ainda mais jovens, também possam ser matriculadas no 1º ano. Na prática, o projeto rebaixa para cinco ano a idade mínima, no Rio Grande do Sul.
— É injusto uma criança que faz aniversário em 31 de março ir para o 1º ano e outra criança que faz no dia 1º de abril não ir — diz o autor da proposta.
O projeto cria estratificações. Para as crianças que completam seis anos entre abril e maio, o ingresso no Ensino Fundamental seria automático, a partir de 2020, a não ser que haja manifestação contrária dos pais, responsáveis ou de um profissional da área.
A segunda regra, que entraria em vigor em 2021, valeria para as demais crianças de cinco anos, que completam seis entre junho e dezembro. No caso delas, o ingresso no Ensino Fundamental também passaria a ser permitido, mas só ocorreria diante de vontade expressa dos pais ou responsáveis e da avaliação de um grupo multidisciplinar de profissionais.
— Cada criança tem o seu ritmo e essa individualidade precisa ser respeitada. A ideia é colocar a criança na idade certa, na série certa. Não estamos adiantando as crianças. As crianças atualmente estão sendo atrasadas — argumenta o autor da proposta.
O ingresso de crianças mais jovens no Ensino Fundamental é visto com sérias restrições pela pós-doutora em Educação e professora da Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS) Maria Luiza Rodrigues Flores. A especialista em Políticas Públicas para Educação Infantil classifica a proposta de redução da idade mínima como um "infanticídio", por reduzir a possibilidade de infância das crianças.
— Eu costumo dizer que é um infanticídio, no sentido de que se rouba o direito de a criança viver a infância, que são só os aninhos iniciais. Porque, no Ensino Fundamental, começa uma vida escolar regular e se acabou o tempo de brincar. Começam as mochilas, os livros, as apostilas, os temas de casa, às vezes a cadeira não é adequada, ela tem apenas 15 minutos de intervalo. É um roubo do tempo da infância que os adultos fazem com as crianças — diz Maria Luiza.
A professora também critica a previsão do projeto de lei de avaliação de cada criança para determinar se ela deve ou não seguir para o 1º ano.
— É ainda mais grave que a gente pegue crianças de cinco anos para avaliar se elas têm ou não condições de entrar no Ensino Fundamental. Além de ser ilegal, é um crime com as crianças, porque elas estão querendo ser felizes, brincar, ter direito à infância. O direito nesta idade é brincar — acrescenta a pesquisadora.
A existência de um ponto de corte nacional, sem variações regionais, conforme a especialista, também faz com que se organize o sistema educacional e se permita que as crianças possam trocar de cidades e Estados sem prejuízos.
Secretária-adjunta apoia mudança
Os bastidores políticos indicam que Leite sancionará a lei, o que fará com que mais crianças de cinco anos troquem a Educação Infantil pelo Ensino Fundamental. Oficialmente, o Piratini informou que fará uma análise técnica do projeto. Há duas semanas a proposta contou com manifestação favorável do comando da Seduc. A secretária-adjunta da Educação, Ivana Flores, em ofício ao Legislativo, afirmou que a proposta respeita a "individualidade e maturidade de cada criança".
— Todas as leis são cumpridas. Podemos ter alguma dificuldade (para implementar), pode não ser imediatamente. Mas, faremos a nossa parte. Acredito que, de imediato, não tenha alto impacto. Vamos avaliar, nos articular e respeitar o que foi determinado — diz a secretária-adjunta.
A secretária-adjunta também argumenta que "a lei está propondo o respeito às pessoas" e que "enxerga os alunos com altas habilidades". A secretaria, conforme Ivana, não fez análise jurídica do projeto, destacando que isso cabe à Assembleia.
O presidente do Sindicato do Ensino Privado do Rio Grande do Sul (Sinepe-RS) critica a aprovação do projeto sem a devida discussão e argumenta que a proposta torna subjetivo o ingresso das crianças no Ensino Fundamental. Para Bruno Eizerik, a mudança aprovada pela Assembleia causará prejuízo às crianças.
— A Educação Infantil já é um espaço de aprendizagem, com brincadeiras. Me preocupa tirar esse espaço da criança de brincar. Tudo tem que acontecer a seu tempo. A criança tem o tempo de brincar e tem o tempo de aprender. Na Educação Infantil, o tempo de brincar é muito maior. No Ensino Fundamental, se inverte essa lógica — pondera Eizerik, destacando que a medida seria "inexequível" em 2020, pois a maioria das matrículas já foi realizada.
O Conselho Estadual de Educação também é contrário à medida, por unanimidade. A presidente do conselho, professora Sônia Veríssimo, afirma que está ocorrendo uma "diminuição da infância" e argumenta que o fato de uma criança ser alfabetizada "não quer dizer que ela tenha maturidade completa para entrar no Ensino Fundamental".
— Na maioria das vezes, os pais acham que os filhos são superdotados — diz Sônia.
A idade de início no Ensino Fundamental já foi rebaixada, nacionalmente, em 2006. Naquele momento, a idade mínima passou de sete para seis anos, adiantamento que, na avaliação da professora aposentada da UFRGS Carmem Craidy, especialista em Educação Infantil, já foi equivocado.
— O projeto é um absurdo, pura demagogia. Do ponto de vista pedagógico, está mais do que provado que o importante é que a criança aprenda de forma lúdica. Essa mudança (proposta) corta uma dimensão da infância e prejudica o desenvolvimento. Qual a vantagem de adiantar? A criança chegar com 16 anos para fazer vestibular? Só há prejuízo. A ideia ideal seria iniciar o Ensino Fundamental aos sete anos, não aos seis. Agora querem baixar a idade para cinco? — aponta Carmem, que tem histórico de pesquisa em legislação e políticas de educação infantil.
Estado não pode legislar sobre a idade mínima, dizem especialistas
A idade mínima de seis anos para cursar o Ensino Fundamental está estabelecida na Lei de Diretrizes Básicas da Educação (LDB). O refinamento da lei foi feito por uma resolução de 2010 do Conselho Nacional de Educação, que é vinculado ao Ministério da Educação (MEC), e determinou a data de 31 de março como limite de aniversário de seis anos para ingresso no 1º ano. A ideia é que as crianças atinjam a idade mínima até o início do ano letivo.
Em 2018, depois de uma série de regras estaduais divergentes e decisões variadas de Tribunais de Justiça, o Supremo Tribunal Federal (STF) julgou o tema e considerou constitucional a resolução do Conselho Nacional de Educação.
Na Assembleia Legislativa, a proposta de lei não foi analisada pela Comissão de Educação, graças a um acordo entre a maioria dos líderes partidários. Na Comissão de Constituição e Justiça (CCJ) da Assembleia, o parecer favorável do deputado estadual Frederico Antunes (PP) foi aprovado, sem fazer menção à decisão mais recente sobre o tema, tomada pelo STF.
— Admito que existe um debate jurídico em aberto, mas estou convicto de que é a lei mais adequada — reforça o autor do projeto.
Para a doutora em Direito Constitucional e consultora da Organização das Nações Unidas para a Educação, a Ciência e a Cultura (Unesco) Alessandra Gotti, o julgamento do STF encerrou o debate jurídico e não há margem para interpretações. Pesquisadora do tema, ela cita trecho da tese fixada pelo STF, de que "é constitucional a exigência de seis anos de idade para o ingresso no Ensino Fundamental, cabendo ao Ministério da Educação a definição do momento em que o aluno deverá preencher o critério etário".
— É uma decisão que não dá margem à dúvida. Na minha visão, esse projeto de lei já nasce com vício, porque o STF já definiu essa questão. Juridicamente não existe espaço para outro entendimento. Tratando-se de uma questão geral, de âmbito nacional, não compete ao Estado ou ao município disciplinar. O ideal é que o governador vete a lei — pondera Alessandra.
A constitucionalista diz que, se a lei for sancionada, pode ser questionada na Justiça, por órgãos como o Ministério Público Estadual.
— É preocupante esse projeto de lei, porque está completamente dissonante do que foi definido pelo STF e pode se tornar uma nova frente do litígio — acrescenta Alessandra.
O Ministério Público gaúcho tem entendimento jurídico semelhante. Em nota, o Centro Operacional da Infância, Juventude, Educação, Família e Sucessões afirma que os promotores "entendem, em síntese, que deve ser observado o entendimento do STF (…) que reconheceu a competência do Ministério da Educação (…) para a definição do momento de efetivação das matrículas".
Carlos Kremer, presidente da Comissão da Criança e do Adolescente da Ordem dos Advogados do Brasil no Rio Grande do Sul (OAB-RS), entende que se trata de um caso em que o direito coletivo prepondera sobre o direito individual, não cabendo à Assembleia deliberar sobre o assunto.
— Do meu ponto de vista, o STF colocou uma pá de cal na questão. A decisão do ano passado reafirmou o entendimento do Conselho Nacional de Educação que estabelece a idade mínima. É uma decisão em que prepondera o direito coletivo sobre o direito individual. O ponto de corte serve para a organização nacional da educação — destaca o representante da OAB-RS.
Cezar Miola, conselheiro do Tribunal de Contas do Estado (TCE) e presidente do Comitê Técnico de Educação do Instituto Rui Barbosa, referenda o entendimento jurídico.
— Eu tenho o mesmo entendimento do STF, que julgou constitucional a fixação da data de 31 de março para que seja completada a idade mínima de ingresso no Ensino Fundamental — avalia Miola.
O entendimento do autor da lei e do relator na Comissão de Constituição e Justiça da Assembleia, contudo, é de que a resolução do Conselho Nacional de Educação, que determinou a linha de corte de 31 de março, teria valor legal inferior à decisão dos deputados estaduais.
Apesar de ser contrário ao projeto, o Sinepe-RS entende que a decisão do STF permite que o tema seja definido pelos Estados:
— O STF decidiu que é possível que seja fixada uma data de corte, mas não decidiu se a competência competência é privativa do Conselho Nacional de Educação ou se pode ser executada pelos conselhos estaduais. Agora, se a Assembleia poderia deliberar sobre o tema, é outra questão — diz Bruno Eizerik.
Juridicamente, o autor da lei e o relator do tema na Comissão de Constituição e Justiça da Assembleia defendem que a Assembleia pode deliberar sobre o assunto, uma vez que a resolução do Conselho Nacional de Educação, que determinou a linha de corte de 31 de março, tem valor menor que as leis estaduais.
— O que o STF julgou é que o Conselho Nacional de Educação teria aptidão para completar o vazio da lei. Mas o Conselho Nacional de Educação é um órgão regulador, e a deliberação dele é infralegal. Já os parlamentos têm competência legal e, portanto, superior à do conselho — argumenta Lins.
Quadro dias antes de ser votado e aprovado pelos deputados, o projeto foi alvo de uma nota de "repúdio" e "indignação", assinada pelo Fórum Gaúcho de Educação Infantil. A entidade avaliou que o "projeto desconsidera a decisão do STF" e "antecipa a entrada da criança a uma etapa de ensino que não é adequado a ela". O texto ainda destaca que "a criança pequena requer espaços adequados nos quais possa brincar e experimentar assegurando-se, assim, a forma como desenvolve suas aprendizagens, quais sejam, pelas interações e pelas brincadeiras".