A pesquisa brasileira sobre desigualdade racial e racismo teve um crescimento expressivo em quantidade de publicações nas duas últimas décadas, quando passou de apenas cinco artigos publicados em 1999 para 147 em 2018, um aumento de 28 vezes.
Assuntos diversos figuram entre as publicações, como a repercussão midiática do assassinato de Marielle Franco, discussões sobre o papel da mulher negra em movimentos feministas e na medicina, práticas para inibir o racismo em escolas, discrepâncias na sobrevida de pacientes com câncer de mama de acordo com a raça e até a própria definição do conceito de raça.
O levantamento foi feito pela reportagem a partir de dados da base Web of Science, que congrega boa parte da produção acadêmica global em diversas áreas do conhecimento. Atualmente, o Brasil é o quinto maior produtor de artigos que contêm expressões como "desigualdade racial" e "racismo", com 4% da produção global (os Estados Unidos lideram, com 59%). A produção mundial quase quadruplicou no período.
— Esse crescimento ocorreu porque há mais pesquisadores brasileiros examinando temas sociais do que antigamente, como pobreza, desigualdade e discriminação. Isso também ocorreu entre os economistas, por exemplo. Uma possível explicação é a maior quantidade de pesquisadores jovens pretos e pardos hoje nas universidades brasileiras — afirma Naércio Menezes Filho, economista e professor do Instituto de Ensino e Pesquisa (Insper).
Apesar da expansão do número de artigos, pesquisadores elencam dificuldades na área, como obstáculos para a publicação dos trabalhos. Segundo Roseli Fischmann, da Faculdade de Educação da Universidade de São Paulo (USP), o fato de um brasileiro ser autor do estudo já é entrave para a publicação em periódicos acadêmicos estrangeiros, mesmo que a realidade brasileira seja o objeto da análise.
Isso pode se dar, afirma, "um pouco por falta de conhecimento do contexto em que se inserem os resultados de pesquisa apresentados". Outro problema, diz, é a resistência dos periódicos a autores de fora dos grandes centros de produção acadêmica.
Outra questão é o impacto da pesquisa. Muitas vezes, esses estudos são publicados em português (um total de 71% das publicações de 2018 estão no idioma) e/ou em periódicos ditos de baixo impacto, ou seja, cujos artigos não tendem a ter uma grande repercussão internacional. A maior parte dos artigos difundidos pelos meios acadêmicos vem dos Estados Unidos ou está em língua inglesa, diz Humberto Miranda, professor da Universidade de Campinas (Unicamp) que coordena um grupo que estuda economia africana e afro-diaspórica.
— Podemos dizer que há uma espécie de segregação racial da produção acadêmica, já que a própria forma de valorização científica depende do coeficiente de impacto. Para muitos acadêmicos, só há produção científica de impacto no hemisfério norte ou ao norte da Europa, de população majoritariamente branca, o que prejudica a valorização, a difusão e o mérito científico da produção acadêmica da América Latina e da África — diz Miranda.
Essa seria a razão da primazia dos Estados Unidos, diz o pesquisador.
— Graças ao intercâmbio internacional nossa produção tem crescido, mas ainda de forma limitada — avalia.
Para Fischmann, as pesquisas sobre desigualdade racial e racismo já tiveram maior e melhor apoio, com editais específicos do Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico (CNPq) e da Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior (Capes), agências federais de fomento que sofreram nos últimos anos com congelamento e corte de verbas.
— Quando os estudos mostram o impacto social do racismo, eles tendem a ganhar relevância. É sabido que o incontestável racismo aqui praticado, e comumente denegado, finalmente começou a ser combatido nas últimas décadas, após a Constituição Federal de 1988, o que provoca interesse. Esse interesse é ainda mais forte quando também é claro que o racismo estrutural é um componente fortíssimo da desigualdade que marca nosso país — diz.
Muitas vezes, diz Miranda, as barreiras para a publicação de artigos aumentam por conta da maneira como se dá o financiamento à pesquisa, bastante competitivo — alguns assuntos acabam prevalecendo sobre outros.
— O tema da desigualdade no Brasil foi sendo relativamente bem coberto nas ciências humanas até 2018. A temática racial vinha sempre ocultada na palavra social ("desigualdade social").
Apesar da aparente da coesão entre acadêmicos, há quem tenha ressalvas sobre a maneira como é conduzida a pesquisa sobre desigualdade racial. O antropólogo Laércio Dias, professor da Universidade Estadual Paulista (Unesp), afirma que hoje o conceito de raça, apesar de socialmente relevante, foi esvaziado em seu sentido biológico. Os fenótipos (características físicas), como espessura dos lábios, cor da pele e formato dos olhos, usados para definir raças como grupos sociais, não encontram respaldo no plano genético, diz o professor.
Dias critica o que chama de abordagem reducionista dentro de estudos sobre desigualdade racial, que, diz, muitas vezes tratam questões complexas, como pobreza, nível educacional e diferença salarial, como se derivassem apenas da aparência física dos indivíduos.
— O problema com o reducionismo é que ele perde de vista a totalidade, e, ao mesmo tempo, a especificidade daquilo que se investiga.
Para o professor, o conceito de raça tem sido usado indevidamente para manipular políticas públicas, como a criação de cotas raciais. Mas alterar políticas públicas é justamente o objetivo de boa parte dos estudos realizados no país.
— Nos Estados Unidos, existem pesquisas que detectam comportamento discriminatório na sala de aula na pré-escola, por exemplo. Também mostram o impacto da discriminação na saúde dos negros e a discriminação na seleção de candidatos para entrevistas, comparando respostas das empresas para currículos que usam nomes tipicamente de negros e tipicamente brancos, mas com currículo igual — conta Menezes Filho, do Insper.
A ideia é mostrar a magnitude e a presença da discriminação racial e seus efeitos sobre a saúde, a motivação e a ambição dos jovens pretos e pardos. Sabe-se pouco sobre isso no Brasil, afirma o professor.
— Essa luta (contra a desigualdade racial) tem na população negra (pretos e pardos, segundo o IBGE) um dos seus principais focos, mas envolve também outros grupos discriminados, como populações indígenas, judeus, árabes, imigrantes, refugiados, grupos latino-americanos que se veem trabalhando em condições de escravidão — diz Fischmann, conhecida por sua produção acadêmica sobre a interação entre a laicidade do Estado e as religiões de matriz africana e os sistemas de crença indígenas.
Miranda, da Unicamp, ressalta a importância das pesquisas na área de economia, mas diz que nem sempre os modelos americanos podem ser adequados à realidade brasileira. Para ele, uma maneira de melhorar a produção acadêmica da área seria a criação de disciplinas obrigatórias sobre desigualdade racial e racismo nas universidades e até mesmo o estímulo à contratação de docentes negros.
Mas já há resultados práticos das pesquisas sobre desigualdade racial, contam os estudiosos. Um deles é a política de ações afirmativas (ou de cotas raciais), em vigor em universidades públicas desde 2006.
— As pesquisas sobre as cotas nas universidades públicas têm contribuído para a manutenção e expansão desses programas, com a consequente expansão do acesso e permanência de pretos e pardos nas principais universidades do país — diz Menezes Filho. Em 2018, pela primeira vez, negros são a maioria dos estudantes em universidades públicas.
Para o professor, as cotas aumentam a representatividade de pretos e pardos nas principais profissões, e esses profissionais servem de referência para jovens que estão concluindo o Ensino Médio.
— Esses estudos mostram que as cotas não causaram redução do desempenho dos alunos, nem aumento da evasão nos principais cursos.